sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O PROFETA DE UM TEMPO PIOR AINDA



 O ano de 1958 viu nascer um dramaturgo que iria incomodar profundamente a tudo e a todos: incomodar a burguesia, que sempre fechou os olhos aos problemas sociais brasileiros; incomodar os militares que, na calada da noite, transformaram o país numa imensa caserna; incomodar o próprio teatro, que nunca antes se vira palco de tanta miséria e revolta. No ano de 1958 nascia para o teatro brasileiro um dos nomes mais perseguidos pela censura e que teve a quase totalidade de sua obra proibida. Proibida porque ousou e desafiou. Ousou porque trouxe para a cena o inimaginável. Desafiou porque rompeu os padrões estéticos e morais determinados pelo pensamento conservador e retrógrado.

Plínio Marcos (1935-1999) jogou no palco todas as mazelas sociais: a fome, a falta de teto, a exploração, o crime, a morte, a loucura, o desprezo pelo ser humano. Abarrotou a cena com todos párias e marginalizados das “quebradas do mundaréu”: prostitutas, cafetões, pederastas, loucos, bandidos, assassinos, proxenetas, gente da pior espécie. Esfregou em nossas fuças mal-lavadas a situação deprimente a que são submetidos os prisioneiros, os meninos de rua, os desempregados, os catadores de papel, as mulheres de vida fácil. Colocou na boca de seus personagens palavrões que jamais imaginamos existir. Expôs, em cada uma de suas peças, a profunda humanidade com que sempre tratou os excluídos.

Plínio Marcos, o mais maldito de todos os malditos brasileiros, conhecia a linguagem do povo e a transformou em poesia; uma poesia difícil de escutar e digerir, que soa mal aos ouvidos mais apurados, de versos mancos e rimas embriagadas e mal-cheirosas, que nos embrulha o estômago, mas que nos escancara a realidade cruel e injusta de pessoas que são nossos iguais. O que, aos nossos olhos, era observado apenas como exótico, torna realidade. Não tínhamos mais como negar. Não podíamos mais olhar aquelas pessoas na rua como aberrações sociais e considerar natural a sua existência, passando por elas e evitando, a todo custo, o contato físico. Lutando, internamente, contra nossos maus pensamentos, mas justificando-os. Plínio Marcos retira aqueles seres das três dimensões físicas e lhes dá uma nova existência numa quinta ou sexta dimensão, em que outros sentimentos serão aguçados em nós, além da aparente piedade que talvez manifestemos. Somos, então, confrontados com personagens que ganham vida e, rompendo a noção tempo-espaço, nos transportam para dentro de sua miserável existência. Sentimos na carne sua dor, sua carência, sua revolta, sua imensa solidão. A vida, sem deixar de ser cruel (e por isso mesmo acentuando sua crueldade) atinge a dimensão da poesia.

Engana-se quem não vê uma poesia extraordinária em cada palavra vomitada e escarrada por Plínio Marcos. Ele não nos tinha nenhuma piedade ao nos tratar assim, nos expondo perversamente ao contato direto com mentes deformadas e pensamentos destorcidos. A piedade, que negou a nós, ele transformou em palavras de carinho para aqueles seres que chegavam mesmo a duvidar de sua condição de gente. Neusa Sueli (NAVALHA NA CARNE) indaga pateticamente: “Às vezes chego a pensar: Poxa, será que eu sou gente? Será que eu, você, o Veludo, somos gente? Chego até a duvidar.”

Neusa Sueli tinha mesmo motivos para duvidar: como ser gente quando a degradação humana chega aos seus limites extremos e é maior que todas as possibilidades? A única coisa que lhe resta é “prosaicamente” comer um sanduíche de mortadela, para depois dormir e depois acordar e amanhã tornar à vida fácil do michê barato e baixar a cabeça para o seu macho e gigolô, que virá “tirar um sarro” e pegar o dinheiro. Afinal, ele também precisa viver. E se, por acaso, ela não gostar, Vado saberá como resolver a questão.

O universo pliniano é um universo de poder, onde as relações se estabelecem pela força e não pelo convencimento. O sistema opressor gera outros micro-sistemas, também opressores, sejam eles a cadeia ou o prostíbulo, a rua ou a casa de família, e refletem as relações da sociedade capitalista. Seus personagens movem-se num mundo de ameaças e agressões físicas. Opressor e oprimido apenas repetem as relações encontradas do lado de fora. Se Vado é o opressor aqui dentro na sua relação com Neusa Sueli e Veludo, lá fora ele é oprimido pelas forças sociais, que são implacáveis. O mesmo acontece com Giro e as prostitutas Célia, Dilma e Leninha, em O ABAJUR LILÁS; Bereco é o xerife na cela de BARRELA, mas também foi jogado ali dentro por uma sociedade que não lhe permitiu outras possibilidades; os catadores em HOMENS DE PAPEL, ao mesmo tempo em que são oprimidos por Berrão são oprimidos também fora daquele universo, e Berrão, por sua vez, explora a força de trabalho dos catadores no mesmo instante em que é explorado pelo sistema. Um círculo que se forma e não se vê aresta.  E assim o mundo vai girando e determinando quem manda e quem obedece. A correlação de forças não favorece o oprimido. E, nesse jogo, o que importa é o três-oitão não mão. Quem tem a bala no tambor e o dedo no gatilho manda!

Não esperemos que suas peças apontem soluções, elas não se propõem a isso. A solução, nós vamos encontrá-la quando se transformar o sistema e a sociedade. Outra, não há. Aqueles personagens estão ali e ali deverão continuar. O que importa é mostrar uma realidade e nos colocar contra a parede para que, a partir dessa constatação, possamos lutar por uma sociedade mais justa e fraterna, onde essas coisas sejam terminantemente proibidas de acontecer. Única proibição aceitável! Há, aparentemente, um certo conformismo por parte dos personagens; qualquer tentativa de revolta é imediatamente sufocada pela força. Plínio escreveu suas peças em plena ditadura militar e elas vão refletir o estado autoritário e violento em que o Brasil estava afundado por força dos tacões militares. Nesse sentido sua obra deixa de ser “apenas” social e passa a ser, também, essencialmente política. O poder da força é o seu grande tema..

Mesmo (e, sobretudo, por isso!) tratando de temas extremos e distantes da nossa realidade burguesa e acomodada, Plínio consegue imprimir em cada uma de suas obras uma força dramática extraordinária: seus diálogos são concisos e extremamente bem elaborados, não se perde uma palavra, não falta uma vírgula sequer. Precisão, coesão e ritmo alucinante. O seu domínio sobre os diálogos foi sempre comparado ao de Nelson Rodrigues, mesmo quando Plínio ainda não era dramaturgo consagrado. Escreveu BARRELA sem conhecer sequer os princípios fundamentais da dramaturgia. Escreveu com o coração e com o conhecimento humano do submundo. E foi por escrever com o coração que suas peças calam tão fundo na gente. Além de ser um bofetão, nos mostram a profunda carência e humanidade daquelas pessoas tão desumanizadas. Ele mesmo já declarou que escreve rápido porque suas peças traduzem o seu sentimento. Você lê Plínio Marcos como ele escreveu: num fôlego só!

É verdade que suas peças da fase mística não têm tanta força. Parece que ele estava fazendo uma coisa que não era dele. Ao se distanciar do submundo – embora seu JESUS HOMEM se passe num morro – era como se ele perdesse um pouco o cheiro do povo, tão marcante e tão fundamental em tudo que havia escrito até então. Mas aqui não é lugar nem momento adequado a uma análise dessas obras, já que centramos toda discussão em suas peças sociais. Plínio Marcos não se diminuiu, apenas buscou outras formas e outros temas. Não que aqueles estavam superados ou sua obra desatualizada. Elas estão vivas e pulsam como sempre pulsaram. Apenas uma mudança de rumo, que devemos aprender respeitar. Sua genialidade é insuperável!

Desde sua primeira peça – BARRELA, de 1958 –, sua crueza ao tratar a realidade social brasileira foi sobrevivendo ao tempo e provando, mesmo para quem se recusava ver, que a situação não mudara em nada. E como queríamos que ele estivesse errado! Que um dia pudéssemos gritar, em alto e bom som: “Ô, cara, você está ultrapassado, o Brasil mudou e você continua na mesma!” Como gostaríamos!... Mas esse gostinho ainda não nos foi permitido. E ele continua aí, nos atormentando. É verdade: em uma de suas peças foi superado pela realidade – HOMENS DE PAPEL! Hoje, pelo menos em nossa cidade, a realidade do catador de papel mudou. Organizado em uma associação reconhecida e atuante, com um trabalho de reciclagem importantíssimo. Podemos dizer: Plínio, meu chapa, vencemos uma contra o seu teatro. É só uma, mas já é alguma coisa! Pensando bem, e é terrível constatar!, ainda faltam BARRELA, DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA, NAVALHA NA CARNE, O ABAJUR LILÁS, QUERÔ, QUANDO AS MÁQUINAS PARAM, ORAÇÃO PARA UM PÉ-DE-CHINELO... e ainda tem seus romances, pombas!!!

Não! Plínio Marcos não foi, como ele mesmo dizia, o “repórter de um tempo mau”; foi, sim, o profeta de um tempo pior ainda.