segunda-feira, 25 de julho de 2011

AS EXPERIÊNCIAS DE MARIA


TODAS MULHERES SÃO MARIA
Espetáculo escrito e dirigido por Luiz Paixão, produzido pela Companhia de Teatro.
Elenco: Daniela Savaget, Joyce Athiê, Kely de Oliveira, Mariana Bizzotto, Roberta Bahia

Parte I


Parte II


Parte III


Parte IV



 O fenômeno teatral só se estabelece na relação direta ator/público. Todas as transformações que o teatro sofreu ao longo de sua história, estão diretamente vinculadas a essa relação, seja no caráter emocional, intelectual ou ideológico, e o estabelecimento dessas relações passa pelo caráter arquitetônico, que cria as condições mais favoráveis a essa ou àquela estética, pois interfere diretamente na maneira em que se recebe a mensagem. A arquitetura do teatro grego é completamente diferente da arquitetura religiosa medieval, que levou o teatro para a praça pública, que também vai ser diferente do teatro elisabetano, com seu palco envolvido por três blocos de platéia, ou do teatro burguês que lança mão do palco italiano como padrão. Em cada uma dessas formas encontramos, não só uma dramaturgia específica, mas também uma concepção cênica que irá produzir um tipo ou outro de emoção no espectador; não esquecendo, é claro, que a postura o ator se modifica radicalmente de arquitetura para arquitetura - ainda que seja um processo inconsciente, o ator se adapta ao novo espaço. Todas essas possibilidades (e não se discute aqui, ainda, o seu caráter ideológico) são determinadas pela forma do palco e sua relação com a platéia, se mais próxima ou mais distante, se numa determinada inclinação ou noutra, se um palco mais largo ou mais profundo, enfim, tudo vai interferir na estética do espetáculo e, consequentemente, na recepção por parte do público.

Cada espetáculo tem o seu movimento próprio e o seu próprio ritmo de deslocamento e ocupação do espaço pelo corpo do ator, como tem também o seu tom e seu volume de fala, enfim, todo espetáculo tem sua própria dinâmica que é determinada por sua estética. Para cada encenação uma nova estética. A previsibilidade mata o teatro, pois o torna uma fórmula definida e não mais nos surpreende; uma forma que deu certo e que se repete incansavelmente, o mesmo grupo de pessoas fazendo o mesmo gesto, num mesmo ritmo em que só se muda o figurino. Não se pode ir ao teatro sabendo de antemão o que se vai ver, ainda que o espetáculo prime por algum tipo de qualidade. As relações estáticas palco/platéia há muito não respondem às reais necessidades do teatro. Cada espetáculo deve procurar seu próprio espaço, pois é este espaço que vai proporcionar novos vínculos emocionais e ideológicos com a platéia, e esse contato ator/público se estabelece a partir de uma proposta única que não serve para nenhum outro espetáculo.

O primeiro a pensar um teatro que rompesse que a divisão palco/platéia imposta pelas diversas formas de palco, foi Artaud, quando propugnava que “no teatro da crueldade o espectador fica no meio enquanto o espetáculo o envolve”, rompendo até mesmo, no caso do palco italiano, com a própria noção da quarta parede, o envolvimento agora seria direto e real e não mais sugerido como no teatro ilusionista: “Suprimimos a cena e a sala, substituídas por uma espécie de lugar único, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação. Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação , estar envolvido e atravessado pela ação (...) o público ficará sentado no meio da sala, na parte de baixo, em cadeiras móveis que lhe permitirão seguir o espetáculo que se desenvolverá à sua volta.” Artaud não conseguiu colocar em prática o seu pensamento, mas tinha a certeza de que para inaugurar um teatro que rompesse radicalmente com o que ele considerava velho, deveria começar criando uma nova noção de espaço, e mais, esse novo teatro possibilitaria um vínculo emocional que seria fundamental para os seus propósitos. E deixa bastante claro que o seu caminho era por ali: “É a fim de apanhar a sensibilidade do espectador por todos os lados que preconizamos um espetáculo giratório e que, ao invés de fazer da cena e da sala dois mundos fechados, sem comunicação possível, difunde seus relâmpagos visuais e sonoros sobre toda a massa de espectadores”.

Já nos anos sessenta, Grotowski, em seu Teatro Laboratório, rompe radicalmente com a idéia da separação proposta pelo palco italiano e experimenta inúmeras e novíssimas possibilidades, e com isso, permite à platéia condições emocionais específicas e adequadas a cada nova montagem: “Renunciamos a uma área determinada para o palco e para a platéia; para cada montagem um novo espaço é desenhado para os atores e para os espectadores. Dessa forma, torna-se possível infinita variedade no relacionamento entre atores e público”. É preciso saber, e isso Grotowski deixa bastante claro, sua busca não é meramente um rompimento com a divisão espacial do ator e público, o que ele procura vai além dessa tentativa de juntar os dois, pois ele pretende estabelecer, sim, um novo contato entre eles e assim atingir um nível de comunicação mais elevado: “A eliminação da dicotomia palco-platéia não é o mais importante: apenas cria uma situação de laboratório, uma área apropriada para a pesquisa. O objetivo essencial é encontrar o relacionamento adequado entre ator e espectador, para cada tipo de representação, e incorporar a decisão em disposições físicas.”

As experimentações se multiplicam: Julian Beck e Judith Malina no Living Teather, Luca Ronconi, na Itália, e Ariane Mnouchkine, no Théâtre du Soleil, entre tantos outros que se dedicam à pesquisa da transgressão espacial visando estabelecer um novo modo de envolvimento emocional. Não há mais limite para a pesquisa. E as experiências e multiplicam e se radicalizam. Como afirma Peter Brook, “Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu. Um homem atravessa este espaço enquanto outro o observa. Isto é suficiente para criar uma ação cênica”, nos ensinando que o espaço no teatro vai muito além do convencionalismo da arquitetura cênica e é rompendo essa arquitetura que o teatro cria novas e inúmeras possibilidades de manifestação.

O teatro surge da manifestação religiosa que acontecia ao ar livre, numa interação onde a noção palco/platéia praticamente inexistia, só muito depois foi levado para um espaço definido, e este novo espaço delimitou a função de cada um – público e atores – e determinou uma estética, e as lentas transformações deste espaço interferiram na própria transformação estética do teatro. No estabelecimento do contato com a platéia é que está a sua essência, “ator e público necessitam um do outro e ambos sentem que nós fazemos juntos”. Procurando entender e explicar a relação do público com o teatro, Freud  afirma que “o desejo reprimido (do herói) é semelhante aqueles que são reprimidos em todos nós, cuja repressão pertence a um estágio primitivo de nosso desenvolvimento individual, enquanto que a situação da peça rompe, precisamente, com essa repressão. Devido a esses dois aspectos é que nos resulta fácil reconhecer-nos no herói.” A empatia, ou identificação, já nos ensinava Aristóteles, nos aproxima do herói e nos leva a acompanhar sua história, sofrendo com o seu sofrimento, e ficando alegres com sua alegria. Na empatia está a causa primeira da catarse, que para o filósofo grego é o objetivo final da tragédia.
Segundo Ernst Kris, “o público relaciona-se em três níveis dentro da experiência teatral – com o enredo, a experiência da ação, e a personagem; sendo que o público também sintetiza o conteúdo, a intenção, e a coerência da peça”, e devemos ter claro que “a natureza física do teatro influencia o relacionamento entre o público e a encenação – e, consequentemente a natureza da forma de arte dramática”, como nos aponta Richard Courtney, e “a estrutura de uma platéia afeta a natureza da forma de arte”. 

Lançar mão de um espaço não convencional para encenação de um espetáculo, como no caso do nosso TODAS MULHERES SÃO MARIA, é um desafio extraordinário, pois nos coloca diante do inusitado, seja no campo formal ou mesmo no desenvolvimento do conteúdo. Sendo um espaço não convencional, não temos, como no caso do teatro italiano, uma referência objetiva da posição do público em relação ao espetáculo, ou seja, na forma estática do italiano, o ângulo de visão altera muito pouco, portanto, em quase sua totalidade, o público assiste ao mesmo espetáculo, pois é um bloco maciço com sua atenção voltada para o mesmo foco, o palco italiano, com todos os seus recursos obriga o espectador a olhar na mesma direção. A utilização de espaço não convencional nos leva uma relação circular (não confundir com o teatro de arena) e, em cada posição, o espetáculo será visto de uma forma completamente diferente da outra, pois a relação entre os atores se altera profundamente e com isso as próprias relações entre as personagens. Os personagens movem-se nos espaço e revelam de acordo com o seu posicionamento em cena, uma relação de poder, estabelecendo uma superioridade de um sobre o outro, se em cada ponto da platéia eu vejo um espetáculo diferente, em cada ponto da platéia essa relação vai mudar, podendo inverter radicalmente a relação entre as personagens.

TODAS MULHERES SÃO MARIA é uma clara demonstração de que o ângulo de visão é determinante no estudo e consequente ocupação do espaço não convencional, pois suas inúmeras possibilidades interferem diretamente na leitura final do espetáculo. Ao “atravessar” a cena, como queria Artaud, possibilita-se ao público uma nova leitura de uma determinada cena, e essa diferente leitura pode alterar decisivamente o entendimento da fábula. O personagem é apresentado de uma maneira e pode ser entendido de maneira diversa. O meu olhar sobre ele não será o mesmo se ele estiver de frente para mim ou de perfil, ou ainda de costas. Ele poderá ser mais decidido ou mais covarde na exata relação espacial com o outro. Quando ele diz, por exemplo, “eu te amo”, pode revelar um sentimento ou o seu oposto absoluto, se o vejo deste ou daquele ângulo, mesmo que ele não altere a intenção da fala.

Junte-se a isso o fator distância/proximidade e teremos novas implicações: quanto mais próximo da personagem, mais cúmplice é a nossa relação, e essa cumplicidade não está absolutamente sujeita ao fato de eu me identificar ou não com a personagem. A sua história me é contada de maneira muito especial, eu me torno assim meio seu confidente. Eu passo a ter acesso a informações absolutamente exclusivas, pois só eu vi aquele olhar, ele foi dirigido a mim, exclusivamente. Em TODAS MULHERES SÃO MARIA temos experimentado uma reação do público como nunca antes, a manifestação dessa exclusividade tem nos levado a dedicar uma atenção muito especial para saber explorar da melhor maneira esse detalhe que parece insignificante, mas que é de uma força emocional extraordinária. Apenas uma única pessoa, e só ela, vê uma lágrima brotar nos olhos da atriz. Esse momento único e absolutamente exclusivo, provoca uma experiência emocional também única. A pessoa que está ali, ao seu lado, só vê a lágrima escorrendo, não vê o seu nascimento. O marejar dos olhos eu vou guardar para mim, já que me foi dado como dádiva de um momento impar onde nossas emoções, minhas e da atriz, se encontraram e se perpetuaram.

A Casa do Fernando, espaço absolutamente não convencional e que abriga o espetáculo TODAS MULHERES SÃO MARIA, contribui com o seu charme e sua mística nessa experiência que propõe uma reflexão sobre o fazer teatral. A busca de novos espaços que possibilitem a experimentação e a própria disposição em experimentar poderão promover um salto qualitativo extraordinário para o nosso teatro. Abrir mão do lucro aparentemente fácil e partir para um teatro que responda às necessidades do terceiro milênio. E olha que estamos atrasados demais. O teatro morto já está mumificado, é o momento, sim, de pensar um novo teatro que alfinete a todos, que promova uma revolução na cena mineira. A provocação está lançada, que respondam a ela.



sexta-feira, 1 de julho de 2011

A CRUELDADE DO VIVER


Depoimento ao PROGRAMA AGENDA, da Rede Minas


No dia 4 de março, de 1948, Artaud foi encontrado morto, caído ao pé da cama, abraçado a um sapato, no hospício de Ivry. Era o fim de um dos mais inquietos e instigantes nomes do teatro do século vinte. Morria, ali, o criador do TEATRO DA CRUELDADE. Morria, ali, o homem que determinou que era preciso ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS, e cumpriu sua promessa. Morria, ali, o gênio visionário, que deixou sua marca indelével no teatro contemporâneo. Aquele que afirmou, e também cumpriu: “Ali onde outros propõem obras, não pretendo nada além de mostrar meu espírito”. Aquele que, até na hora da morte, deixou interrogações para os que ficaram e para os que viriam: qual o significado daquele sapato abraçado ao peito no seu último instante?

Irascível! Iracundo! Apaixonado! Sofredor de todas as dores do mundo, Artaud levou para o teatro a sua vida, o seu grito inumano de desespero e, para sua vida, o teatro: “A tragédia no palco não me basta mais, vou transportá-la para minha vida”. E assim o fez, num vislumbre que só os gênios e os loucos conseguem. E ele era gênio... e era louco! E fez do teatro a ponte que unia seus extremos. E dessa união rompeu com tudo que era velho, arcaico e conservador. Desprezou as regras! Rasgou todas as cartilhas! Teatro e vida se misturaram e se completaram e o resultado disso é um jorro quase irracional de uma maneira absolutamente nova e revolucionária de pensar o teatro. O visionário tornou-se profeta!

“Perdeu-se uma idéia do teatro”, escreveu Antonin Artaud (1896 – 1948), em maio de 1933. Mas qual “idéia” deveria ocupar o lugar dessa que se perdeu? Que teatro era esse que deveria como a peste, varrer tudo, para novamente recomeçar, e recomeçar pisando os escombros deixados por aquele teatro morto, que há muito já definhava e nem tinha se apercebido. Para Artaud, “o jogo teatral é um delírio e, uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido”.

Quando publica O TEATRO E SEU DUPLO, propõe um confronto radical com tudo que estava sendo feito na Europa, a começar pelo rompimento com as obras clássicas: “as obras primas do passado são boas para o passado; não servem para nós”, além da total “rejeição do teatro como divertimento”. Seu teatro seria construído por imagens, sons e gritos, onomatopéias, jogos de linguagem a partir da sua própria desarticulação, além de um sistema de códigos corporais e gestuais, “constituindo com as personagens e os objetos verdadeiros hieróglifos”, organizado para que o espetáculo lembrasse as “imagens do sonho no cérebro”.

 Artaud não foi um teórico do teatro, ele teve “visões”. E essas “visões” não tiveram a aplicação necessária para serem aprofundadas e se tornarem uma metodologia, um conjunto de técnicas e proposições que pudessem servir de guia para o exercício prático cênico, tanto para o ator quanto para o encenador. São lampejos que estimulam a criatividade, que provocam o desejo de experimentar o que seja Artaud. Nada mais que isso. Mas isso não diminui o valor dos seus escritos e do seu pensamento sobre o fazer teatral. No Primeiro Manifesto do Teatro da Crueldade, como de resto em todos os seus textos, ele não nos deixa uma formulação, mas apontamentos sobre a utilização dos diversos mecanismos cênicos.

Artaud pensa o teatro voltado à sua essência ritual. Uma experiência única e transformadora. Rompendo com o realismo/naturalismo, traz para a cena imagens e impressões que devem provocar novas sensações na platéia e, com isso, estimular transformações e tomadas de posições, tirando o espectador da inércia contemplativa em que estava atolado.

Dentre as várias propostas para atingir esse objetivo, trata da relação palco/platéia, ponto fundamental em seu pensamento. Propõe a utilização de um novo conceito de espaço cênico, até então nunca utilizado, onde atores e público não estejam mais separados por “dois mundos fechados, sem comunicação possível” e, para que isso se efetivasse na prática, seriam suprimidas “a cena e a sala, substituídas por uma espécie de lugar cênico, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo e que se [tornariam] o próprio teatro da ação”. Público e atores vivenciariam uma experiência diferenciada e quase única para os dois e, dessa nova relação, em que se rompia a estratificação arquitetônica do chamado “palco à italiana”, o mais usado ainda hoje em todo o mundo, deveria ser “restabelecida uma comunicação direta entre espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e atravessado pela ação”.

Hoje sabemos que Artaud, em sua intuição, estava certo, mas ele não teve tempo nem condições para aplicar seus pensamentos sobre o teatro. Essa proposta absolutamente inovadora e revolucionária só voltaria a ser considerada e colocada em prática a partir dos anos sessenta, por nomes como Grotowski, Peter Brook, Julian Back e Judith Malina, dentre tantos outros que herdaram Artaud, embora alguns, como é o caso de Grotowski ou mesmo Peter Brook, só entrarem em contato com o pensamento artaudiano depois de trabalhos já realizados. Mas Artaud já estava presente em suas obras e tinha se antecipado, como se antecipou em quase tudo que propôs, seja na relação direta com o texto dramático e sua abordagem, seja, por exemplo, na utilização de “manequins, máscaras enormes, objetos de proporções singulares [que] estarão em cena na mesma condição das imagens verbais”, vemos claramente nisso os bonecos gigantescos do grupo Bread and Puppet.

Artaud não se permite conceber “uma obra como separada da vida”, mas ao mesmo tempo não admitia o teatro onde o que estava em cena era apenas um reflexo, ou uma cópia quase que fiel da realidade cotidiana, o que acaba se esgotando em si mesmo. O teatro não como diversão, mas “no qual imagens físicas violentas trituram e hipnotizam a sensibilidade do espectador que se vê no teatro como uma presa de um turbilhão de forças superiores”. E, para atingir esse objetivo, cria o conceito de Duplo (ainda que não muito bem definido, pois permite várias leituras diferenciadas!) e estabelece novos parâmetros para o encontro teatro/vida, em que o mágico, o ritualístico, o extraordinário, são determinantes dessa nova relação, “se o teatro é um duplo da vida, a vida é um duplo do verdadeiro teatro”. Para Artaud, o teatro “deve ser considerado como um Duplo não desta realidade cotidiana e direta, da qual ele, aos poucos, se reduziu a ser uma cópia inerte, tão vã quanto adocicada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, na qual os Princípios, tais como os delfins, no instante em que mostram suas cabeças se apressam em retornar à obscuridade das águas”.

Já o conceito de Crueldade foi muitas vezes percebido erroneamente como sangue ou sadismo, mas para Artaud a Crueldade está vinculada com a própria renovação que propunha no que diz respeito ao “rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta”. Artaud pretende uma nova santificação do teatro e uma pureza só encontrada nos rituais, onde a honestidade está acima de meros valores comerciais. Crueldade também quer dizer sofrimento da alma exposta e triturada do ator perante uma platéia que também deve expor e deixar triturar sua própria alma, em retribuição. “O Teatro da Crueldade foi criado para devolver ao teatro a noção de uma vida apaixonada e convulsa; e é nesse sentido de rigor violento, de condensação extrema dos elementos cênicos, que se deve entender a crueldade sobre a qual ele pretende se apoiar”. Mas quando necessário a Crueldade poderá e deverá ser “sangrenta”, “a afirmação de uma terrível e, aliás, inevitável necessidade”, pois o seu teatro é uma resposta dura e implacável a todo sofrimento a que foi acometido, seu teatro transporta para o palco “a miséria do corpo humano”. Artaud se explica: “a guerra que pretendo fazer provém da guerra que fazem a mim”.

A obra de Antonin Artaud, seja no teatro ou na poesia, seja como ator ou encenador, seja mesmo como artista plástico, é uma obra que traz dentro de si a marca do sofrimento. Já em 1915, portanto, aos 19 anos de idade, é acometido por uma crise de depressão e destrói vários de seus textos. Pela primeira vez é internado em um sanatório. Daí até sua morte, são inúmeras curtas internações e diversos tratamentos para desintoxicação. A partir de 1938 permanecerá internado até sua morte. “A crueldade consiste em extirpar pelo sangue e até sangrar a esse deus, o azar bestial da animalidade humana inconsciente, lá onde se encontrar”. Internado em Ivry, Artaud sofria de dores terríveis provocadas, provavelmente, por um câncer no ânus. Para se livrar, fazia uso do láudano e cloral, drogas sintéticas que, inevitavelmente provocariam dependência e, em doses excessivas, provocariam a morte. Artaud sabia disso. Teve a liberação do seu medico para usar a droga livremente. Existem alguns biógrafos que defendem o suicídio, embora nada se possa provar. Talvez overdose acidental.

“Artaud continua ainda incompreendido em seu pensamento e em suas propostas para o teatro. Crueldade, magia, duplo, sangue, esperma, hieróglifos, gritos e gemidos... Parece tudo tão simples! Ele tenta explicar: “O teatro da crueldade não é o símbolo de um vazio ausente, de uma espantosa incapacidade para realizar-se em sua vida de homem. É a afirmação de uma terrível e aliás inelutável necessidade.” Como não compreender seu grito desesperado de dor e agonia? Mas Artaud não era assim tão previsível! Ele mesmo havia declarado que era preciso “romper a linguagem para tocar na vida”. O seu teatro foi uma incansável busca por essa nova linguagem que deveria surgir do seu próprio rompimento. Artaud ficou sozinho. Como companhia apenas seu sapato, seus papéis, canetas e as drogas. É provável que tenha se matado? Talvez. Mas com certeza a morte para ele foi apenas o fim do sofrimento. Um mês antes de morrer, a transmissão radiofônica de seu poema PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS, foi proibida pelo diretor da rádio estatal. Mas cópias clandestinas foram feitas e se pôde ouvir Artaud, gritando, gemendo, grunhindo, cumprindo o que prometera.

POST-SCRIPTUM - Quem sou eu? / De onde venho? / Sou Antonin Artaud / E basta que eu o diga / Como sei dizê-lo / Imediatamente / Vocês verão meu corpo atual / Partir em pedaços / E se recompor / Sob dez mil aspectos notórios / Um corpo novo / Onde vocês não poderão / Nunca mais / Me esquecer.