quarta-feira, 23 de novembro de 2011

MARTINS PENA E O MELODRAMA




            O melodrama é o gênero teatral que mais sofreu preconceitos ao longo de sua história, e sofre ainda, seja por sua estrutura formal de efeitos mirabolantes e absurdos ou pelo conteúdo, muitas vezes, inverossímil de seus enredos ou do comportamento psicológico de suas personagens. A “má fama do melodrama”, para aproveitar a expressão usada por Eric Bentley, pode ser melhor explicada quando se percebe a sua destinação, já que a tragédia fala ao coração, a comédia à mente e o melodrama aos olhos (entenda-se, glândulas lacrimais).

“... a bondade perseguida pela maldade, um herói perseguido por um vilão, heróis e heroínas perseguidos por um mundo perverso”, - Eric Bentley resume de maneira extraordinária a estrutura dramática do melodrama e é exatamente essa estrutura que se estabelece a partir da eterna luta entre o bem e o mal ou, se preferirem, e talvez seja até mais adequado no nosso caso, do mal contra o bem, que vamos encontrar na singular obra “dramática” daquele que é considerado o “Molière brasileiro”, Martins Pena (Rio, 1815 – Lisboa, 1848).

Poucos conhecem os dramas escritos por Martins Pena. Existe apenas uma edição, datada de 1956, organizada por Darcy Damasceno e Maria Filgueiras que, com muita sorte, pode ser encontrada em algum sebo, fora isso, absolutamente nada! E pouco também foi escrito sobre essa obra, e os destaques que merece em um ou dois livros sobre a História do Teatro Brasileiro, são severamente duros em suas poucas linhas que se dedicam mais a resumir o enredo do que fazer uma avaliação crítica de cada uma das peças:
Fernando ou O Cinto Acusador (1837?)
D. João de Lira ou O Repto (1838)
D. Leonor Teles (1839)
Itaminda ou O Guerreiro de Tupã (1840)
Vitiza, O Nero de Espanha (1840)
Drama Sem Título (incompleto - 1847?)

            Seis obras, sendo uma delas apenas fragmento, de um valor histórico e cultural surpreendente, pois nos revelam Martins Pena investigando um gênero ao qual pouco se dedicaria ao longo de sua brevíssima carreira. Peças praticamente inéditas, pois apenas Vitiza mereceu uma encenação no Teatro São Pedro, em setembro de 1841, “sob um silêncio geral da crítica” e Fernando foi transformada em comédia por um grupo paulista há alguns anos. Para Sábato Magaldi “a falta de uma verdadeira linguagem trágica reduziu muito o alcance dessas experiências”, no que temos que discordar do grande crítico brasileiro: Martins Pena não quis escrever tragédias, isso é bastante claro, sua intenção era escrever melodramas, basta observamos as técnicas utilizadas, que não são técnicas da tragédia. Discordar também quando ele afirma que a montagem dos dramas hoje “não representaria outro mérito senão o de mostrar ao público um documento histórico”.

Martins Pena foi, não em todos que escreveu naturalmente, um bom autor de melodramas. Dominava sua estrutura e, em suas peças mais bem acabadas, vamos verificar, sim, um bom uso dessas técnicas. E mais, a sobrevivência e permanência do melodrama nos dão elementos para acreditar que suas peças são mais do que documentos históricos. Basta ver a produção da telenovela brasileira, que em termos melodramáticos fica devendo muito pouco às mexicanas, obviamente não estamos discutindo as qualidades técnicas, onde a produção brasileira é infinitamente superior. O melodrama está presente em praticamente todos os capítulos das telenovelas e ouso afirmar que isso lhes garante um espantoso índice de audiência. O sofrimento é um bom marcador de pontos no “ibope”.

          O melodrama não se importa em fazer concessões, sejam elas quais forem, para se conseguir um bom efeito. Se no desenvolvimento do enredo as coisas acontecem porque têm que acontecer, no campo comportamental, vamos encontrar personagens absolutamente manipuladas, pois o maniqueísmo é dominante e a bipolaridade entre as personagens se estabelece como impulsionador da trama: o vício e a virtude se confrontam, e as personagens não possuem contradições, movem-se no seu limite mínimo e sua ação fica restrita a momentos que alternam “a extrema desolação e desespero, com outros de serenidade ou de euforia, fazendo a mudança com espantosa velocidade”. A moral das personagens está pré-definida “como forma de indicar a interpretação pretendida, e o faz com clareza inequívoca”. E essa ausência de contradições determina o nível de obstinação da personagem, seja o vilão ou o mocinho, que é absoluta, não restando nenhuma dúvida do que se pretende fazer. Lourenço Da Cunha em D. Leonor Teles, no dá a exata dimensão do que isso significa, quando afirma: “Abandonar minha vingança? Seria mais fácil Deus deixar de ser Deus!”

          É fazendo chorar que o melodrama construiu sua história; o sofrimento é sua mola propulsora: sofrimento pela impossibilidade do amor, sofrimento pela perda de algum ente querido que se deseja ardentemente vingar ou até mesmo a dor do vilão que vê seus maléficos planos ruírem como castelos de areia. Certamente não choramos pelo vilão; os sofrimentos do mocinho e da mocinha são suficientes para estimularem nossas glândulas lacrimais. Sofremos com eles mas, dialeticamente, e até mesmo contra nossa vontade e de seus autores, rimos deles, pois tal sofrimento é tão exagerado que se torna irreal sob o olhar crítico. Então o melodrama encontra-se com a comédia. A súbita e em grande parte das vezes inexplicável mudança no destino das personagens nos apresenta um quadro digno de uma comédia non-sense. Estando tão longe da comédia, o melodrama está muito próximo dela pela utilização de diversos elementos dramáticos e estruturais.

A idéia do choro fácil acompanha o melodrama desde o surgimento do teatro na Grécia antiga: Eurípides, inúmeras vezes, lançou mão de recursos que visavam levar a platéia a um estado de comoção tal que, do seu ponto de vista, facilitaria o entendimento e uma tomada de posição ideológica, por parte do público, em torno do tema tratado. Obviamente não podemos enquadrar uma Troianas ou uma Medéia na galeria dos melodramas, pois suas estruturas pertencem nitidamente à tragédia, mas é também óbvio que laçam mão de efeitos típicos deste gênero que, embora crucificado e às vezes incompreendido, nos acompanha a bastante tempo.

Shakespeare também não escapa a uma escorregadela melodramática. Lionel Abel, em seu Metateatro, é implacável ao afirmar que “quase todas as tragédias de Shakespeare são defeituosas; constituem fracassos de tentativas de se escrever tragédia, mas não tentativas de se escrever melodrama” e, mais ainda, com relação a Hamlet, afirma causticamente: “o miserável melodramazinho prossegue até o seu clímax”. Não queremos a postura ácida de Abel, mas temos que concordar que o bardo inglês se rendeu, sim, em vários momentos a um efeitozinho melodramático. Convenhamos que a perda do lencinho por Desdêmona, que servirá de peça fundamental para incriminá-la definitivamente, é muito frágil, porém Shakespeare precisava disso e lançou mão de um recurso que, se não enfraquece a tragédia, é pelo menos muito suspeito.

Suspeitos também são os vários recursos utilizados por Martins Pena: em Fernando ou O Cinto Acusador, D’Harville, o mocinho da história, é preso no mesmo calabouço onde fora preso o seu pai, também vítima de Fernando, mas o maior efeito se dá quando D’Harville descobre o esqueleto do pai e junto dele o famigerado “cinto acusador”, onde está escrito com sangue as seguintes palavras: “Vítima das perseguições do infame Fernando Strozzi. Um homem de honra viu aqui sua hora suprema. Aquiles, vinga a morte de teu pai”, aí se revela toda a maldade de Fernando e o possível desenlace da trama pérfida. Em Vitiza, surge milagrosamente um certo Eremita, que vai revelar o grande mistério que envolve a trama: Orsinda é mãe de Aldozinda. Só para registrar: Orsinda é apaixonada por Roderigo que é o grande amor de Aldozinda; por ciúme doentio Orsinda mata Aldozinda com um punhal, e esta, misteriosamente, ressuscita na hora de ser enterrada.

            No Brasil, o melodrama não morreu com Martins Pena, no teatro brasileiro contemporâneo vamos encontrar em Nelson Rodrigues, um dos mais melodramáticos de nossos autores. Em todas as suas peças, de Vestido de Noiva a O Beijo No Alfalto, ou de A Falecida a Toda Nudez Será Castigada, o naturalismo, muitas vezes aliado ao expressionismo (e até mesmo em suas farsas), há uma contaminação evidente do melodrama, seja nos recursos, seja na linguagem, na paixão doentia ou nas situações criadas. O confronto entre as personagens é sempre marcado pelo exagero das obsessões, motivações passionais ou revelações surpreendentes. Com sua genialidade, Nelson Rodrigues, utilizou-se do melodrama com mestria sem igual, mas isso não o torna menos melodramático e moralista.

            A derrota do mal, o que não quer dizer necessariamente vitória do bem, acompanha o melodrama como máxima moral: a punição para os crimes é fundamental e dela não se escapa. Há uma definição absoluta: se eu sou mau, eu não sou bom; se eu sou bom, eu não posso ser mau. E nessa relação não há dúvida nem culpa e cada personagem tem consciência do seu caráter. O melodrama é esquemático e não dialético. Fazendo um estudo comparativo com a tragédia, Ivete Huppes em seu excelente e fundamental MELODRAMA – O Gênero e sua Permanência, explica que “a força implacável da escolha, que dilacera a tragédia, é contornada no melodrama. Num certo sentido, este passa ao largo dos dilemas brutais que jogam os heróis trágicos entre duas ordens de razões, ambas aceitáveis. Aqui as personagens se movimentam num mundo muito mais simples. Na há nuanças. O universo das possibilidades humanas está reduzidos a duas alternativas rotuladas desde o começo, uma corresponde ao bem; a outra, ao mal. O conflito é claramente um embate entre campos separados e as personagens – como os espectadores – têm suficiente lucidez para distinguir um ao outro. Tanto o vilão como o herói anunciam sua identidade.”

            Não podemos analisar a obra melodramática de Martins Pena sem entender os parâmetros impostos pelo melodrama; o que temos que analisar é se a partir desses parâmetros ele realizou a contento suas peças. O seu amadurecimento fica patente quando observamos o conjunto de sua obra. Não podemos e nem queremos desconhecer que o comediógrafo superou em muito o autor melodramático, mas isso não diminui o seu valor, apenas acentua suas preferências e melhores habilidades. Tanto para a comédia quanto para o melodrama Martins Pena viveu pouco, mas nesse curto período nos legou um acervo extraordinário com o que melodrama tem de mais genuíno.

Lothar Hessel e Georges Raeders, em O Teatro No Brasil Sob Dom Pedro II, reafirmam o que temos tentado demonstrar: “menos realizados que as comédias, os dramas parecem ter sido exercitações para alguma obra-prima a que, pela brevidade de sua vida, não conseguiu chegar”.