sexta-feira, 9 de novembro de 2012

LAGOINHA boemia, malandragem e cultura

                                                                                                                                            * versão nova

Os valores históricos e culturais se transformam a partir da luta de suas contradições internas. Por outro lado, devemos entender que a unidade dos contrários consiste na reciprocidade de determinação, o que indica que os contrários de uma coisa não conseguem viver um sem o outro, ainda que em constante luta. Essa luta é que deverá levar à transformação da quantidade em qualidade. A negação dialética nos ensina que no processo de transformação e superação do velho pelo novo, não há exclusão absoluta:

o novo nunca destrói o velho totalmente. A negação dialética conserva o que o velho tem de positivo, isto é, o novo enriquece-se com o melhor que o desenvolvimento anterior tinha. A negação do que é caduco é inevitável para conservar os elementos sãos e progressistas e criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento. (KRAPIVINE: 1986, p. 177)
Uma cidade não se constrói em seu presente, apenas. O que se faz hoje traz a marca do passado, enquanto um conjunto de saberes e fazeres acumulados, e aponta uma perspectiva de futuro. O que cabe ao presente é organizar um memorial em que esses saberes e fazeres se prestem como referência às gerações que darão continuidade ao nosso sentido de cidadãos inseridos no contexto de uma polis. Neste sentido, o processo nos parece bastante simples: conhecer o passado para entender o presente e projetar o futuro. Brandão (2009, p. 57) esclarece que

Para reintegrar a cidade no tempo, a prospecção da cidade ideal, utópica e modelar suscita, simetricamente, uma pesquisa por seu passado, por sua identidade histórica e pela sua marca fundante. Dai ser comum esse avanço para o futuro ser acompanhado também por um avanço para o passado.
            Passado, presente e futuro se mesclam, se contradizem e se superam, visando sempre a possibilidade de criar condições para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. E qualidade de vida não se restringe aos valores materiais; os saberes e fazeres citados anteriormente fazem parte de um imenso e incomensurável valor imaterial, e deles, nenhuma sociedade minimamente organizada pode arbitrariamente se dispor ou ignorar, pois

A cidade é o lugar doador de sentido à existência individual e do aprimoramento de nosso corpo, nosso espírito e dos usos e hábitos de nosso tempo. Seu espaço, apesar dos tempos atuais, não é mera extensão ou somatória dos espaços privados, a sua natureza, sentido e função são completamente diversos e, por excelência, é nele que a “humanidade do homem” se forma. [...] É certo que a polis deve abrigar o espaço do privado, onde constituímos nossa vida particular; mas também é certo que a necessidade de constituição de um mundo comum e político apresentou-se e apresenta-se, continuamente, como o local onde o individuo se reconhece dentro de uma tradição, conquista uma identidade, se conhece e se constitui como um eu a dialogar com um outro. Esse outro não é apenas o outro fático com o qual cruzo nas ruas, mas também o outro do tempo, os que nos precederam e as gerações futuras que nos seguirão. Estes também são nossos interlocutores, e daí a cidade ser também o espaço da memória e a memória faz parte de sua natureza. (BRANDÃO: 2006, p. 61)

Uma cidade que surge de um projeto urbanístico, com o intuito de ser a capital do Estado, como foi o caso de Belo Horizonte, não pode, ao nosso juízo, cometer o erro de circunscrevê-la no espaço exíguo da Avenida do Contorno (originalmente chamada 11 de Dezembro). Não se pensou na possibilidade de aquela cidade de papel, prevista para atingir 100 mil habitantes somente quando completasse 100 anos, se transformar em uma metrópole. A cidade foi invadida, seu projeto superado, e a expansão se deu de forma desordenada e descontrolada; os “arranjos” feitos a partir da constatação de que a cidade não estava preparada para essa nova realidade, repercutiu  nas dificuldades que enfrentamos ainda hoje em função de seu mau planejamento.

O bairro Lagoinha nasceu junto à planejada cidade de Belo Horizonte, no final do século XIX. Teve como principais habitantes imigrantes italianos, portugueses, turcos, espanhóis, migrantes do interior de Minas Gerais e de outros estados brasileiros. [...] Alguns escritos demonstram que os primeiros sinais de ocupação do bairro remontam ao antigo Curral Del Rey, datado do início da ocupação territorial da região de Minas Gerais. Classificada como área suburbana – fora dos limites da Avenida do Contorno, que demarcavam o cinturão urbano, embora em área contígua à urbana –, foi sempre um típico bairro de periferia, hoje qualificada de área pericentral, tendo sido habitado pelos trabalhadores encarregados da construção da cidade. Nasceu a partir das colônias agrícolas Carlos Prates e Américo Werneck, que foram incorporadas formalmente à zona suburbana de Belo Horizonte, nas décadas de 1910 e 1920. (FREIRE: 2011, p. 111-112)
A relação do cidadão com os espaços públicos de sua cidade não se estabelece a partir de uma condição física e/ou geográfica apenas; o espaço público, sendo espaço de convivência, torna-se, portanto, um espaço vivo, pulsante, ponto de encontro e referência de pessoas que se identificam e buscam cumplicidade com as praças, parques e jardins que os acolhe, estabelecendo vínculos que se formam e sobrevivem ao tempo.
Acolhimento e cumplicidade: dois motivos que se traduzem em qualidade de vida e construção da cidadania que se forja na convivência que se constrói e cultiva; via de mão dupla que se completa na doação e no respeito.
A humanização do espaço público somente se efetiva em sua concreta utilização pela comunidade, que é o dínamo propulsor de sua função social. O espaço público inacessível ou aquele com o qual a comunidade não criou seus laços de afeto e prazer, não existe em sua função primeira que é acolher a pessoa humana e doar o que lhe é permitido. A humanização, portanto, é resultado de sua ocupação, e somente a ela pertence. Sem ocupação não há humanização.
Por outro lado, tentar creditar ao espaço público de uma capacidade de ação própria e voluntária, nos parece revelar uma profunda incompreensão do seu processo de humanização, que é dependente da ação do outro. Ao espaço público enquanto tal, não é creditada a capacidade de agir.
De todos os absurdos cometidos contra a memória histórica e cultural de Belo Horizonte, destaca-se, sobremaneira, o fim da Lagoinha, particularmente no entorno da Praça Vaz de Melo. Considerada “reduto da boemia”, a implosão daquilo que ainda restava da Lagoinha, enquanto resistência à chamada “força do progresso”, levou o jornalista e escritor Wander Piroli a comentar, num comovente lamento de quem ali criou sua identidade de homem e cidadão, e dali recolheu valioso material para sua escrita:

Não fui lá nesse dia. Não queria ver o fim melancólico e desnecessário da Praça. Em vez de tombá-la como patrimônio público, o último local mais característico da vida noturna da cidade, preferiram destruí-la. E destruí-la à toa, sem a menor necessidade. O fato é que as tais autoridades municipais foram lá, muitos curiosos para ver o espetáculo de uma implosão [...] E no meio da pequena multidão silenciosa, Lagoinha soltou o samba:
“Adeus, Lagoinha, adeus.
Estão levando o que resta de mim.
Dizem que é a força do progresso.
Um minuto eu peço
Para ver seu fim.”
Houve um minuto de silêncio após o último acorde da música. E, depois, todo mundo viu um prédio ser jogado no chão. (PIROLI: 2004, p. 19)

A importância histórica e cultural da Lagoinha não pode estar reduzida às peculiaridades excêntricas que emolduram sua existência. O seu maior valor está em sua riqueza imaterial. Ainda hoje, povoa o imaginário daqueles que não a conheceram e se fixa recorrente nas lembranças dos que viveram, mesmo que fortuitamente, seus momentos de glória e sua destruição enquanto espaço habitacional, comercial e reduto de prazeres. Símbolo de uma época, a Lagoinha acolheu a boemia e a malandragem, prostitutas e cafetões, trabalhadores e vagabundos e, uma parte significativa da intelectualidade e artistas, que ali se irmanavam na magia de suas noites.

Ali aconteceu quase tudo de importante em minha vida. Amizades, amores, e maravilhosas aventuras. A Lagoinha está inscrita em mim, mesmo não existindo mais. (SILVEIRA: 2005, p. 103)

O imaginário da Lagoinha resiste ainda na tradição oral e nas poucas obras que registram uma pesquisa que, aliada a depoimentos, resgata sua história. O imaginário resiste e se cria para os que viveram seu momento de gloria, e forjam, para aqueles que não a puderam vivenciar, uma espécie de saudade de um tempo não vivido. Se não vivido, como ter saudade? Onde, então, o desencadeador de uma memória que não há? É nesse momento que entra em cena o imaginário, com toda sua potencialidade em criar representações mentais.
O termo “imaginário” tem significados diferentes para cada um de nós. Para uns, o imaginário é tudo o que não existe; uma espécie de mundo oposto à realidade crua e concreta. Para outros, o imaginário é uma produção de devaneios de imagens fantásticas que permitem a evasão para longe das preocupações cotidianas. Alguns representam o imaginário como um resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana. Outros o veem apenas como uma manifestação de um engodo fundamental para a constituição identitária do indivíduo. (BARBIER: 1994, p. 15)
O imaginário nos parece ter como função estimular mecanismos que estabelecem uma conexão entre aquilo que existe, ou existiu, ainda que desconhecido pelo sujeito, com a capacidade criativa desse mesmo sujeito. O imaginário possui a prerrogativa de “reproduzir”, enquanto representação mental, um lugar, um objeto, uma sensação, uma pessoa. Permite “recriar” e mesmo “se transportar” para esse locus, comunicar-se com aquela pessoa, tocar determinado objeto ou mesmo “vivenciar” uma sensaçao que, embora não representem suas verdadeiras configurações, satisfaz em parte os desejos do sujeito. O imaginário, portanto, parece possibilitar a “realização” de um desejo.

O sujeito cria para si mesmo a imagem formada a partir dos cacos que foi catando aqui e ali, seja através da historiografia oficial, ou de vestígios, e aqui emprestamos o sentido que lhe confere Walter Benjamin, em obras artísticas, fotografias, depoimentos, relatos e notícias jornalísticas. Configura o seu imaginário e a ele permite vida. Como os “fatos” pertencem ao passado, é possível resgatá-los, moldando-os, conferindo a eles as cores que melhor lhe parecerem, sem com isto violentar ou ultrajar a história, mesmo que, eventualmente, acrescente, aqui e ali, novos condimentos, estes, frutos da idealização. 

O imaginário tem como aliada de primeira ordem a idealização. A Lagoinha, com seus segredos e suas tentações, se apresenta para o seu frequentador como o espaço ideal para a realização do seu prazer. Para aquele que não viveu sua plenitude, ela como se materializa no imaginário um espaço reservado quase que exclusivamente à liberdade e ao prazer. A idealização faz parte dos dois imaginários: para quem viveu e para quem apenas ouviu falar.

A transgressão e o desejo da transgressão estão no vértice mesmo desse imaginário, que se cria a partir da realidade objetiva ou da percepção subjetiva que se elabora de uma realidade não vivida. “A Cidade descansava na Lagoinha, tinha lazer na Lagoinha e transgredia, também, na Lagoinha.” (SILVEIRA: 2005, p. 131). Transgredir é violar normas, romper parâmetros que limitam a ação. O comportamento social estabelece e impõe formas de convivência.

A Lagoinha é uma coisa rara que fica na lembrança. Um tempo divertido e de muito trabalho. Música. A Lagoinha era música. Dos músicos, das lojas de instrumentos musicais, das lojas de conserto de instrumentos. (SILVEIRA: 2005, p. 115 – grifo nosso)
            
        A metaforização da Lagoinha como música, cria uma representação em que o imaginário se manifesta como idealização daquele espaço geográfico. A música, de maneira geral, está ligada ao sentimento de prazer. Na Lagoinha, portanto, a concordarmos com esse pressuposto, se concretiza esse prazer, pois, ali, “coisa rara que fica na lembrança”, o prazer se torna música e a música potencializa o prazer. Música enquanto manifestação sonora, e música enquanto elevação do espirito intimamente relacionada com a concretização do prazer.

            Lagoinha era, também, música enquanto promotora de encontro de compositores e músicos, como afirma o compositor Milton Rodrigues Horta – mais conhecido como Lagoinha:

A Lagoinha era um reduto de boêmios populares, boêmios da música. Era um ponto de encontro de compositores, onde discutíamos música. (SILVEIRA: 2005, p. 117)
           
         Os “boêmios da música”, que nos sugere encerrar uma categoria que tem na noite o seu motivo, acolhe tanto o artista, que busca inspiração para a sua crônica musical, quanto o não artista – no depoimento, categorizado como “boêmios populares”. Podemos falar de uma simbiose, em que a música se comporta como catalizadora de um encontro que reunia o homem comum – putas, malandros, vagabundos e trabalhadores – e o artista que, dialeticamente, retroalimenta aquela comunidade.  Dali retira o material para sua arte e o devolve como produto de sua inspiração.

            Sua obra, e aqui nos reportamos a Bakhtin, reflete e refrata aquele universo em que a idealização não faz parte da lembrança, ela é presente e se relaciona à sua vivência diária e sua busca do prazer.  Celso Garcia e Jair Silva, em sua música “Praça Vaz de Mello”, nos apresenta um frequentador da Lagoinha que não se constrange em abandonar a mulher em favor da cachaça e do botequim, revelando que encontra mais prazer nos braços da Lagoinha do que nos braços da mulher amada:
Não há entre nós um paralelo
Eu na Praça Vaz de Melo
E ela tão longe de mim.

E assim, de cachaça em cachaça
Vou vivendo ali na Praça
Botequim em botequim.

Sou todo da Lagoinha
Assim como ela é só minha
E eu sou seu bem querer.

Sair dali eu não posso
Este é o problema nosso
Eu prefiro te esquecer.
            É necessário ressaltar, aqui, a importância que Medeiros (2001,  p. 58) confere à Praça Vaz de Mello, “que representava a porta de entrada do bairro Lagoinha. A praça ocupava, em seu entorno, bares, motéis, cinemas, clubes de dança, restaurantes e comércio em geral”, e acrescenta que

A praça [Vaz de Mello] constituía um lugar de homens de família ou não, artistas, trabalhadores, viajantes, coronéis ou qualquer outra categoria de homens que possuía dinheiro para gastar e que, portanto, tinha acesso ao prazer. Com os espaços livres, e com grandes casas desocupadas pelos antigos moradores que se deslocaram para outros lugares, surge, no local, a instalação dos dancings com capacidade para muitas pessoas, como o Night Clube Montanhês, as casa de prostituição e os hotéis destinados aos encontros amorosos. (p. 60)

Em seu poema “Destruição”, Carlos Drummond de Andrade escreve:

            Deixaram de existir mas o existido
            continua a doer eternamente

No espetáculo Malandro, o musical, um ator caracterizado de malandro, surge à frente da cortina e, num misto de nostalgia e tristeza, dor e alegria, convida o público a uma viagem pelo imaginário da Lagoinha, com seus malandros, suas putas e seus vagabundos...

Lagoinha já não há...
Maravilhoso, Montanhês,
Guaicurus e Paquequer,
Diamantina, Bonfim,
Vaz de Mello e Mauá de Baixo
já não respondem pelos seus nomes.
Só lembrança que resta...
Houve, sim, é verdade, o tempo
do prazer em cada esquina,
em cada bar, em cada bordel.
Na voz de Nelson ou Gardel
um novo alento alimentava a noite...
Tarcízio Ildefonso, em um depoimento para o livro Lagoinha a cidade encantada, traduz aquilo que o imaginario tenta resgatar, e que, neste trabalho tentamos entender:
O encanto acabou...[1] 
Em seu tempo de maior glória, a Lagoinha reuniu também políticos de grande expressão. Apenas a título de curiosidade, é sabido que o ex-presidente Juscelino Kubistchek era assíduo frequentador do Clube Montanhês, uma das mais importantes casas noturnas da época.
[...] a Lagoinha atraía, em seus tempos áureos, grande diversidade de pessoas, uma vez que havia cabarés para todos os níveis sociais. [...] Segundo Medeiros, havia o rendez-vous, “casas discretas e requintadas que tinham ambientes para dançar, beber, quartos para o serviço sexual, ambientes para conversas íntimas” e as casas de baixo meretrício, em geral identificadas pela luz vermelha interna, onde “havia bebidas disponíveis; as mais baratas, como a cerveja e a cachaça, música, especialmente de eletrola, e quartos para os serviços sexuais”. As mulheres ficavam nas salas ou nas janelas, chamando os clientes. Em comparação com os rendez-vous, os preços eram mais baixos. Havia ainda as prostitutas que conseguiam seus clientes nas ruas e depois os conduziam aos hotéis da região que alugavam quartos para esse fim. [...] as cafetinas cumpriam seu papel de controle, proteção e mediação. [...] No Montanhês [...] os fregueses ganhavam um cartão quando entravam e, a cada dança, o cartão era perfurado. No final, as dançarinas recebiam segundo esses registros. Não havia quartos para encontros. Estes eram marcados durante as danças para acontecer em hotéis da região. (ANDRADE; TEIXEIRA: 2004, p. 145-146)
O deslocamento geográfico de um grupo, ou grupos, implica em uma reorganização da polis, em seus aspectos relacionais – aqui, entendidos em seus valores cultural, político, social, religioso, etc. Ao se estabelecer um novo espaço de convivência, pois tal estabelecimento é resultado do deslocamento, uma nova teia se tece e interfere naquele novo ambiente em que foi tecida, pois até então o grupo, ou grupos, não pertencia àquele espaço que ora ocupa. Neste sentido, é preciso considerar também o desfazimento de vínculos sociais anteriores ao momento em que houve a transferência e que se impõe, muitas vezes, de forma irreversível.
            Os diversos grupos frequentadores da Lagoinha se dispersaram pelos quatro cantos da cidade, alijados de seu espaço “natural”, e não encontraram, nem conseguiram “construir” – ou, constituir – um novo espaço que os abrigasse enquanto comunidade culturalmente unida e comungada em objetivos que os identificava enquanto tal e se reunia em torno de um modo de vida característico. A noite, a boemia, os prazeres e o lastro cultural se viram arbitrariamente interditados por interesses que ultrapassam a lógica de compreensão da “força do progresso” de que nos fala Gervásio Horta.
            Horta, ao se “despedir” da Lagoinha, afirma que “estão levando o que resta de mim”. Manifestação tão doída não nos parece que seja a mera expressão de um saudosismo piegas e antecipador de recordações que se encerram em si mesmas. O que daí podemos depreender é um grito de protesto contra a própria perda de identidade, resultante daquele deslocamento anteriormente citado; o que “estão levando” dele é o seu referencial humano e de cidadão que se socializava no encontro com pessoas afins que procuravam, num mesmo espaço geográfico e cultural, significado para suas vidas. Pois, como afirma Ricoeur, “nos lembramos daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância particular.” (2010, p. 42). E das nossas lembranças não podemos nos afastar, elas é que se afastam de nós. O Esquecimento, contraponto a Mnemosine, existe para encontrar o equilíbrio. Enquanto ele não atua, lutamos para manter viva a memória, que é o primeiro sinal do registro da história.
            A implosão da Lagoinha implicou no apagamento de uma identidade histórica e cultural da cidade, que hoje habita apenas a memória e lembrança dos que ali frequentaram. Memórias e lembranças que, por sua vez, são apagadas pelo tempo e pela ausência de alguns de seus protagonistas. Devemos entender a memória como nos ensina Le Goff (2008, p. 419):
a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.

Aos poucos, o que assistimos, é a memória cedendo espaço para uma historiografia que, por seu turno, pode ou não estar vinculada a interesses institucionais e, portanto, nos revelando apenas parte e silenciando outra parte extremamente significativa que se encontra circunscrita no âmbito dos sentimentos e na lembrança dos antigos frequentadores do reduto boêmio de Belo Horizonte. O passado, a cada dia se distancia e se esvanece pela própria ação do tempo, obnubilando nossas lembranças. Por isso é que Sarlo (2007, p. 9) adverte que
o passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum.
A boemia intelectual frequentadora da Lagoinha foi deslocada para o Edifício Maletta, na Rua da Bahia, que a recebeu e a abrigou. Nesse processo de transferência foi “obrigada” a se reorganizar e estabelecer novos vínculos em que se verificam novos estatutos comportamentais, uma vez que, circunscritos em um prédio de escritórios e apartamentos, precisaram se adaptar a uma nova realidade, tão distinta daquela anterior. O confinamento se contrapondo ao sentimento de liberdade experimentado na Praça Vaz de Melo, que não era apenas subjetivo, mas também geográfico, físico. É, então, construído um novo conceito de boemia, agora muito mais “comportado”, que se configura com uma contradição com o espirito libertário daquele que tem na noite o seu motivo. A convivência já não se faz com os mesmos grupos: no Maletta estão ausentes as putas, os malandros, os vagabundos, e o “valentão” de que nos fala Horta. Os demais grupos frequentadores da Lagoinha não são mais encontráveis: algumas pessoas, num esforço de manter vivo o espírito boêmio, permanecem em seus arredores; o restante perdeu suas referências identitárias. Não se sabe para onde eles foram. A cidade, agora higienizada, não procurou saber o destino daqueles que expulsou do seu reduto. Afinal, eram apenas putas, malandros e vagabundos.
            O crescimento da urbe ignorou os interesses materiais e imateriais daquela comunidade que ali se estruturara e construíra sua própria “fortaleza”, em que sua muralha de defesa se constituía e se representava, no imaginário de cada um, nas mesas dos bares e nas íngremes escadas dos hotéis de putas; se construíra na rede de amizades que se formou. O apagamento e o confinamento dos grupos foram alcançados como resultado do esvaziamento de um espaço que tinha na transgressão sua principal componente e razão de ser. A cidade do esquecimento forja-se, então, em uma nova topografia, que nos obriga a repetir Chico Buarque: “a cidade não mora mais em mim”.[2] Implodir a Lagoinha, não significa apenas derrubar um prédio: significa provocar uma cesura, um corte, uma interdição definitiva. Implosão é explodir pra dentro, de dentro. Entendendo a Lagoinha como um território em que suas “leis” eram determinadas pelo próprio movimento dos grupos, esvaziar esse espaço, além de servir a interesses da urbanização emergente, se prestou também para realizar uma “limpeza” e separar todos os que se propunham a contestar de alguma maneira o status quo vigente.
Muito provavelmente, uma nova higienização, agora visando mais objetivamente a Copa do Mundo 2014, resolva definitivamente o problema, expulsando alguns pequenos e localizados bolsões em que a frequência desse tipo de gente – putas, malandros e vagabundos – não seja adequada. Transita na Câmara Municipal de Belo Horizonte[3] um projeto de revitalização da Guaicurus. Para se revitalizar a Guaicurus, ainda precariamente identificada com a Lagoinha da Vaz de Melo, é preciso reconfigurá-la e, efetivar sua reconfiguração, certamente implicará em atos radicais e, talvez não possamos mais contar com a presença de alguns “hotéis” como o Montanhês, o Maravilhoso, o Rosário, o 32, entre outros que ainda resistem como espaço destinado à baixa prostituição. A alta prostituição é oficializada nas recepções dos estrelados hotéis que servem e servirão aos turistas, agora e na Copa de 2014.
Gervásio Horta, em sua música “Adeus, Lagoinha”, ergueu uma muralha de resistência em que se recusa a apagar de sua memória as lembranças do tempo e dos amigos da Praça. Registra pela história não oficial da arte, que traz como marca a subjetividade do artista e, talvez, por isso mesmo, seja de todas a mais oficial, os versos doídos e os lamentos que não se calam e não se devem calar, pois é neles que se ouve o eco da voz de todos aqueles que da noite se fizeram parceiros e na Lagoinha registraram suas histórias pessoais que, irmanadas criaram um imaginário coletivo que respondia pelo nome de Praça Vaz de Melo.

BIBLIOGRAFIA

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BARBIER, René. Sobre o imaginário. In: Pontos de vista: o que pensam outros especialistas. Trad. Márcia Lippincortt Ferreira da Costa e Vera de Paula. Em Aberto, Brasília, ano 14, n. 61, jan./mar. 1994. Disponível  em http://www.emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/908/814 - Acesso em 11/01/2013.
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SILVEIRA, Brenda. Lagoinha a cidade encantada. Belo Horizonte: Ed. da Autora, 2005.



[1] SILVEIRA: 2005, p. 103
[2] Cf. “Assentamento”. In: BUARQUE, Chico. Terra. 
[3] Sobre o projeto de revitalização da Rua Guaicurus, ver:  BARRETO, Letícia Cardoso. Prostituição, gênero e sexualidade: hierarquias sociais e enfrentamentos no contexto de Belo Horizonte. p. 107-110. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/npp/images/pdfs/dissertacao%20leticia%20barreto.pdf - Acesso em 22/10/2012.