sábado, 23 de abril de 2011

SADE, DOS MALES... O MAIOR


Espetáculo produzido pela Companhia de Teatro, dirigido por Luiz Paixão.
Cena: A morte do Divino Marquês
Elenco: Anália Marques, Danuza Maia, Flávia Dias, Mariana Bizzotto,Alberto Tinim, Marco Fugga

 


 Poucos artistas foram tão incompreendidos, perseguidos, negados e execrados quanto o Marquês de Sade (1740-1814). Ainda hoje, continua sendo visto com uma carga de preconceito extraordinária. Objeto de incompreensão quase constante, sua obra pouco conhecida, povoa o imaginário das pessoas que dela tiram suas conclusões sem ler uma linha sequer. Sade é aquele cara do sadismo, né? – alguém me indagou num misto de dúvida e certeza quando comentei que estava montando um espetáculo sobre o Divino Marquês. Mas Sade é assim, ele mesmo já sabia: São minhas desgraças, meu descrédito, minha posição que aumentam meus erros, e enquanto não for reabilitado, tudo de mal que acontecer nas redondezas será sempre atribuído à mesma pessoa: o Marquês de Sade.

A expressão “sadismo” tem sido usada de maneira viciada e, por vezes, bastante leviana. É preciso compreender que sua obra é um grito de revolta e denúncia contra a hipocrisia reinante. O mal uso de Sade e do sadismo tem servido para justificar atrocidades e perversões que nada tem com o homem Sade e sim com seu imaginário e sua profunda crítica ao comportamento social de sua época. O sadismo surgiu antes, bem antes de Sade. Não foi ele quem jogou escravos para os leões nas arenas romanas nem mesmo queimou mulheres durante a Santa Inquisição ou guilhotinou milhares no regime de terror da França republicana. Ele mesmo deixa bastante explicito: “sou um libertino, mas não sou nem um criminoso nem um assassino”. Octavio Paz afirma, com toda generosidade e compreensão do universo sadeano e sua história de vida: “o filósofo do sadismo não foi aquele que vitima, mas uma vítima, o teórico da crueldade foi um homem bondoso”. Por outro lado, o sadismo também não se esgota em Sade: as fotos de Abu-Graib reveladas ao mundo, além de denunciar os crimes de guerra cometidos pelo “eixo do bem”, onde se rasgou a Convenção de Genebra, serviram para nos mostrar que os escritos de Sade são brincadeiras de criança, comparados com os horrores ali estampados – uma verdadeira demonstração de barbárie. E não era fruto da “imaginação mais dissoluta e impura já vista neste mundo”...

Fernando Peixoto: “Sade é produto da repressão (...) um grito desesperado e angustiado, o incontrolável extremo de um individualismo absoluto que limita bastante o alcance ou o significado de suas idéias, a ânsia de liberação, gigantesco protesto em favor do homem livre, a denúncia de uma civilização fundamentada nos instintos planejadamente reprimidos, baseada na hipocrisia, no preconceito, na corrupção, na injustiça, na divisão social e na mais feroz crueldade”. A obra de Sade é sua vida, e sua vida é desnudada em sua obra, sem nenhum pudor ou receio. Como bem ressalta Octavio Paz, “sua vida não é menos extraordinária do que sua obra”. É na literatura que ele encontra os meios para se vingar da sociedade e lançar seu grito de revolta contra tudo e contra todos. Ambas, vida e obra, unas, profundamente mescladas e de uma honestidade extraordinária, ainda que, em sua mais pura desonestidade, como Sade muitas vezes se nos revela. Ambas ateístas, ambas sexuais, ambas fruto de uma repressão violenta.

Sade passou vinte e sete anos da sua vida entre prisões e sanatórios (onze ao todo, sob três diferentes regimes). E foi na prisão que nasceu o escritor. Ironicamente, é na Bastilha, a mais temida das prisões da aristocracia francesa, que Sade lança o seu grito e expõe toda a podridão em que está chafurdado o seu tempo e sua própria classe. Da revolta de estar alijado do mundo, onde teve que viver entre a ilimitada libertinagem da nobreza de sua época e a desmesurada opressão de que foi vítima pelos seus iguais, surge uma literatura que vai denunciar o que o mundo tem de mais perverso e o homem de mais doente. É em meio ao sufocamento físico das prisões e do Hospício de Charenton, onde viveu os últimos onze anos de sua vida, que Sade imagina e dá forma literária a tórridas histórias de amor e onde brota sua verve mais criativa, capaz de criar personagens antológicas como Justine, Juliette, Eugénie e tantas outras, e histórias como Cento e Vinte Dias de Sodoma ou A Filosofia na Alcova que, mesmo hoje, aos olhos do século 21, nos assombram, pois nos colocam de frente com nossa hipocrisia e falsa moralidade. Na verdade o castelo Silling é uma Bastilha onde a opressão se estabelece através da dominação sexual e da supressão da liberdade dos prisioneiros do grande banquete. Os protagonistas dos Cento e Vinte Dias... são os seus carrascos da Bastilha. E seu grito de liberdade é denunciar os horrores ali cometidos, mas não foi ouvido e ele continuou gritando desesperadamente: Que fiz eu para merecer ser enterrado vivo? Qual é minha culpa? Qual foi meu crime? Nenhum, a não ser o fato de ter o sangue muito quente. E acaso posso controlar isso? Que meu sangue ferva quando o sangue do outros apenas fica frio ou mesmo gelado? E por isso devo ser preso? Quando, pelo contrário, é tão óbvio que esta prisão é exatamente o que vai esquentar ainda mais meu sangue? Quando meu ódio não se extravasar, vai, certamente, voltar-se para dentro, e então nada me pode impedir de abrir a cabeça contra estas paredes em que me encerraram... O próprio Deus teria de se masturbar, se fosse preso neste buraco!

Sade sofreu, ao longo de sua vida, toda sorte de perseguição, seja por parte da família – sua sogra foi sua mais ardorosa e implacável inimiga que sempre conseguiu que ele permanecesse preso – ou da própria justiça aristocrática, quando foi julgado e condenado à morte em efígie: “...o senhor Marquês de Sade foi executado até morrer pela corda e depois executado pelo fogo e suas cinzas jogadas ao vento pelo executor da alta justiça...”

Os anos passam, os séculos também... a ignorância e a intransigência insistem em continuar vivas e cada vez mais fortalecidas; o que não passa é essa postura, ao mesmo tempo discriminatória e meio auto-defensiva que se tem contra Sade, pois ele nos ameaça a todos com seus escritos e seus preceitos filosóficos, ainda que tentemos evitá-lo. Fernando Peixoto analisa com muita propriedade e conhecimento de causa as qualidades literárias e filosóficas do Marquês: “Na verdade, Sade é um escritor vigoroso, ainda que muitas vezes cansativo pela repetição de temas e idéias. Um pensador brilhante e às vezes lúcido, ainda que em muitos momentos confuso e contraditório, superficial e mesmo inaceitável”. E Octávio Paz completa com sabedoria: “Sade é um autor que merece ser lido. É um autor perigoso? Não acredito que haja autores perigosos; melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles próprios e sim nas paixões de seus leitores.”

Esse monstro que se pintou ao longo do tempo, sobre cuja obra e sobre sua própria história cunhou-se o conceito de sadismo (cf. Vocabulário da Psicanálise: perversão sexual em que a satisfação está ligada ao sofrimento ou à humilhação infligida a outrem.), nos persegue implacavelmente desde o dia em que arriscou a primeira linha literária, nos levando a nos confrontar com nossos fantasmas e nossas contradições mais profundas. Quando Simone de Beauvoir, em seu brilhante ensaio, perguntou Deve-se Queimar Sade?, não foram poucos os que correram e gritaram “sim”, sem saber que ela jamais acenderia a fogueira. Todos querem queimar Sade pois ele, sim, acende a fogueira que atiça o fogo adormecido em nós e nos faz queimar de vergonha e falso moralismo quando nos deparamos escandalizados ante as perversidades mostradas e pensamos que no-fundo-no-fundo gostamos do que estamos lendo. E tentamos desesperadamente negar. Será que somos todos sádicos? Queimaríamos Sade?

Já velho e alquebrado, internado no hospício de Charenton, Sade sofre o último golpe contra sua liberdade quando recebe “ordem de isolamento em Charenton, por estar atacado da mais perigosa de todas as enfermidades mentais (...) Monsieur de Sade será colocado imediatamente em aposentos onde lhe seja impossível ter qualquer comunicação com as pessoas, dentro ou fora da instituição de Charenton. Será exercida rigorosa fiscalização para que ele não disponha de lápis, papel, penas, tinta, para que não mantenha, nem mesmo por escrito, contato com outras pessoas”. E, mesmo depois de morto, em 1956, foi figura central de um processo contra Jean-Jacques Pauvert, que tentava editar suas obras.

Sade pagou e continua pagando caro por tudo que pensou, ousou e fez – Sou libertino sim, eu confesso. Imaginei tudo o que se pode conceber neste gênero, mas certamente não fiz tudo o que concebi e seguramente jamais o farei. O julgamento e condenação de Sade não se esgotaram quando o executaram em efígie. No confronto das idéias, quando ele perdeu, foi que ele ganhou. Sua derrota se transformou em sua vitória, porque os outros são apenas “os outros”. Não foi a minha maneira de pensar que provocou a minha desgraça. Foi a maneira de pensar dos outros. Sua obra, ainda que tendo parte dela destruída até mesmo por um de seus filhos, sobreviveu. Sua memória não foi esquecida como um dia ele pediu. Ao contrario: seu pensamento está mais vivo que nunca. Suas obras a cada dia merecem novas edições e cada vez mais são entendidas como cultura e não como pornografia barata. Simone de Beauvoir disse que quando Sade foi preso na Bastilha agonizava o homem e nascia o escritor. E o escritor sobreviveu a tudo que tentaram infligir contra ele. Sade, um dia, vaticinou: Matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei. E não mudou!...

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