sexta-feira, 20 de setembro de 2013

CHICO SOBRE CHICO: autorreflexões de uma obra comprometida com seu tempo e sua história



Introdução

O homem não está dissociado do seu tempo. Sofrendo influências diversas, forja sua filiação ideológica e estabelece os argumentos com os quais vai defendê-la. Sua arte é objeto de sua consciência e faz parte desse rol de argumentos: o artista cria a partir da realidade e nela interfere, procurando modificá-la. A realidade determina a obra de arte e esta sofre uma correção, um redirecionamento. Pela sua obra o artista busca transformar o homem para que este transforme a realidade concreta, superando, assim, a própria obra artística, tornando a sociedade mais adequada e justa segundo o seu pensamento. Assim como o homem não está dissociado do seu tempo, a obra de arte não existe senão a partir da consciência do seu criador. Como afirma Fischer,

a arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser íntegro, total. A arte capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la, aumentando-lhe a determinação de tomá-la mais humana e mais hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria, é uma realidade social.[1]

Caso não haja uma reorientação e nova filiação ideológica por parte do artista, contaminando assim sua obra, redirecionando-a sob novos parâmetros, não me parece conveniente compartimentar qualquer produção artística em "fases", sem se considerar o projeto poético que perpassa o seu todo, ignorando assim os saltos qualitativos de transformação próprios do amadurecimento estético do artista e o aprofundamento do processo de abordagem de questões já verificadas em suas primeiras obras.


Um certo Pedro atrapalhando o sábado

A obra musical de Chico Buarque, no período compreendido entre 1965 e 1970, frequentemente rotulada de "fase romântica" ou do "lirismo saudosista", ao contrário do que os rótulos tentam apresentar como verdade absoluta, já carrega no seu bojo marcas que definem a poética buarquiana no que concerne a uma postura do artista frente às questões sociais e políticas da realidade objetiva. Nesse sentido, é que me proponho, a partir da análise comparativista de duas músicas icônicas em sua produção – “Pedro pedreiro” (1965) e “Construção” (1971) – abordar o processo de autorreflexão, tão presente em sua obra, e demonstrar que as transformações estéticas e aprofundamentos político-sociais não estão desvinculados do seu projeto poético e devem ser entendidos dialeticamente, sob o risco de se operar uma análise maniqueísta de uma obra tão múltipla e dinâmica.

É possível pensar em “Pedro pedreiro” como uma preparação, ainda que sem intencionalidade por parte do compositor, para “Construção”, seja no que se refere à temática – a vida e infortúnios de operários da construção civil –, como na condição e construção do personagem em questão (e aqui, para os objetivos da análise, considero dois momentos na vida de "um mesmo" personagem).

Em “Pedro pedreiro” nos deparamos com seus momentos fora do ambiente de trabalho (não se encontra nenhuma referência do personagem exercendo seu ofício), pois é sempre colocado como alguém que "espera o trem", seja no sentido metafórico, seja no sentido objetivo de quem está na plataforma da estação esperando para se deslocar, já em “Construção” vamos encontrar o personagem executando o seu ofício.

Se “Pedro pedreiro” contempla as esperanças, ainda que frustradas do operário, “Construção” nos revela a realidade crua e violenta a que é confrontado; o doméstico, aqui identificado por meio das figuras da mulher e dos filhos do operário, só nos é apresentado nos três primeiros versos de cada parte e se intensificam no deslocamento dos adjetivos, sendo que, na última parte da música, somente a imagem da mulher é retomada; já no quarto verso "E atravessou a rua com seu passo tímido / bêbado" das primeira e segunda partes, ele abandona o ambiente doméstico para subir "a construção como se fosse máquina / sólido".

Ao defender que a música “Construção” opera um salto qualitativo em relação a “Pedro pedreiro”, refiro-me tanto aos aspectos formais quanto ao caráter conteudístico. Em termos formais, talvez seja uma das obras mais rigorosas de Chico Buarque, pois podemos reconhecer, nela, novos elementos textuais e musicais. Ao retomar o tema do operário da construção civil, sua percepção se revela ainda mais apurada em termos de análise da condição social do personagem em questão, pois nos é apresentada mais crueza, ironia e agressividade na abordagem.

Embora não me arrisque a analisar as duas obras musicalmente, pois não possuo recursos teóricos para tal, pude verificar que alguns temas, no que se refere à utilização de determinados instrumentos em “Pedro pedreiro”, foram retomados de forma mais dramática em “Construção”, como é o caso dos metais, que marcam as duas músicas de maneira bastante significativa. Observamos também que ambas, por meio de seus arranjos, apresentam sugestões narrativas e mesmo descritivas, acentuando seu caráter imagético e metafórico.

 Em “Pedro pedreiro”, além da sugestão do apito de trem em vários momentos, temos a repetição do "que já vem" final, criando urna onomatopeia do som produzido pelo movimento do trem. Em “Construção”, ao final da primeira parte, há um ataque violento dos metais sugerindo o "tráfego" agitado das grandes cidades, momento em que também há uma intensificação do arranjo vocal. A dramaticidade ganha proporções assustadoras, como no “Bolero”, de Ravel, o crescendo domina, como que acentuando a tragédia a que foi submetido o personagem, levando-nos irremediavelmente para o grito desesperado de “Deus lhe pague”, trechos de uma outra música que irônica e magistralmente se enquadra ao destino do personagem"[2]

A maturidade da obra se revela numa dimensão que já vinha sendo anunciada em seu disco anterior, com músicas como “Cara-a-cara”, “Agora falando sério” e na extraordinária “Rosa dos ventos”. Tal característica não se resume às músicas aqui analisadas: na obra de Chico Buarque, verifica-se uma recorrência temática e conteudística que promove uma constante revisão de sua dinâmica criativa; uma obra que dobra-se sobre si mesma num processo de profunda autorreflexão, autocrítica e revisão temática, forjando assim uma poética interna não prescritiva que nos permite uma análise mais abrangente do seu processo de criação. Percebe-se cada momento de autorreflexão, os diversos saltos qualitativos operados.

Chico Buarque demonstra, assim, uma consciência extraordinária de que sua obra musical não está parada no tempo e acompanha a própria dinâmica da história. Os anos 1970, período de um terrível recrudescimento da repressão política, são anos sombrios que serão repercutidos na obra buarquiana. Assim que o autor volta de seu exílio na Itália, apresenta-se como uma nova tomada de consciência da função mesma do artista diante da realidade. A postura, já apresentada em seus primeiros discos, agora ganha a inconformação e o protesto como aliados fundamentais. A própria foto da capa do disco Construção, já nos mostra que a figura daquele "bom-moço" mudou: agora temos um homem – adulto –, pronto para a luta.


Realização de uma profecia

A complexidade da discussão a respeito da arte de protesto não caberia num restrito trabalho de poucas páginas; contudo, é possível, por meio de uma sumária análise das músicas "Apesar de você" (1971) e "Vai passar" (1984), compreender um pouco o processo histórico brasileiro refletido e refratado[3] nas duas obras que representaram papel de destaque em ambos os momentos em que foram lançadas.

É preciso, antes, distinguir arte política de arte de protesto, que, muitos, alguns por ignorância, outros por preconceito ou mesmo má-fé, insistem em confundir. Ainda que tenham uma mesma origem, as duas se diferenciam substancialmente em sua proposta estética e imediatismo da discussão proposta. A arte de protesto se caracteriza por responder a uma realidade determinada, de maneira crítica, denunciando os seus desvios e servindo a objetivos imediatos; nesses momentos específicos, ela se apresenta como uma poderosa arma de combate. É preciso ter claro que não existe arte que não seja política. É preciso, também, definir é de que lado ela se encontra, que interesses defende, pois, como afirmou Plekhanov, "não existe qualquer obra de arte que seja inteiramente livre de conteúdo ideológico".[4]

O processo de autorreflexão da obra buarquiana, como apontado anteriormente, deve ser entendido como resultado de uma pesquisa consciente e crítica, que reflete a inquietação do artista perante não apenas sua obra, mas também perante a realidade social e política que o cerca. Como bem ressalta Fischer,

o trabalho para um artista é um processo altamente consciente e racional, um processo ao fim do qual resulta a obra de arte como realidade dominada, e não – de modo algum – um estado de inspiração embriagante. Para conseguir ser um artista, é necessário dominar, controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a matéria em forma. [...] A tensão e a contradição dialética são inerentes à arte; a arte não precisa derivar de uma intensa experiência da realidade como precisa ser construída, precisa tomar forma através da objetividade. [5]

Comprometido com seu tempo e sua história e, ao que me parece, sabedor de que "não é a consciência dos homens que determina o seu ser social, mas ao contrário, seu ser social determina sua consciência"[6], Chico Buarque opera um "balanço" de sua obra a partir da própria obra, com claros objetivos de entender o processo histórico pelo qual passa o país, tanto nos anos de ditadura quanto no início da redemocratização política.

A opção pelo título do presente trabalho se justifica por me parecer autoexplicativo, pois, ao confrontar as duas canções, é possível perceber a ligação orgânica entre elas: se "Apesar de você" fala da possível superação da ditadura, em plenos anos 1970 (momento de maior repressão política pós-1964), "Vai passar" nos fala exatamente daquilo que havia sido "profetizado" anteriormente: apesar de você, um samba popular vai passar nessa avenida.

A recorrência de "Apesar de você" em "Vai passar" salta aos olhos, como que nos impelindo a uma análise comparativista: "Vai passar" se apresenta quase como se fosse uma "segunda parte" de "Apesar de você". Essas músicas podem ser analisadas praticamente verso a verso, tão próximas se encontram e se revelam em seus objetivos comuns. O primeiro verso "vai passar nessa avenida um samba popular" retoma "como vai abafar/ nosso coro a cantar", numa clara exaltação à organização e mobilização popular.

O "coro" se transforma em "escola de samba" (ambos, signos, metáfora e metonímia de multidão), que agora, na avenida (rua: lugar do povo), com suas diversas "alas", empunhando "o estandarte do sanatório geral", realiza-se como a representação máxima da euforia, da alegria, da loucura que toma conta da cidade que derrubou do poder aquele que "inventou de inventar toda escuridão". A metáfora da "escuridão" será retomada nos “filhos [que erraram] cegos pelo continente", e que "um dia, afinal, [tiveram] direito a uma alegria fugaz"; os que viveram sob os tacões da ditadura, agora, livres, cantam e  sambam "na sua frente"[7].

Ao contrário do que, grosso modo, se observa nas canções de protesto, "Apesar de você", no âmbito musical, não se caracteriza pelo peso melódico que é, às vezes, angustiante e soturno.[8] Ao optar por um samba, o autor parece querer contaminar seu receptor com a esperança de mudança e superação do regime de força: a música é, segundo meu ponto de vista, alegre e contagiante, ainda que o tema nos pareça "exigir" maior seriedade. A passagem de um Estado repressor em direção a um Estado de direito democrático, ou, simplesmente, de liberdade, deve ser realizada como o cantar de um galo anunciando um novo dia.

Em "Vai passar", o mesmo espírito musical exalta a concretização da derrubada do regime; ainda que a melodia não seja de autoria de Chico Buarque (ela é assinada por Francis Hime), a alegria pela vitória é tão ou mais contagiante, já que agora estamos diante de um samba-enredo bem característico, seja em seu ritmo, seu arranjo que conta com instrumentos típicos de uma bateria de escola de samba (tamborins, repinique – ou repique –, cavaquinhos etc.), ou também, por sua letra "circular", que permite sempre, ao seu final, a volta ao seu começo. É o grande desfile ("palmas pra ala dos barões famintos / o bloco dos napoleões retintos / os pigmeus do bulevar") que começou a ser projetado no início dos anos 1970 e que, em 1984, se completa, arrepiando os "paralelepípedos da velha cidade", e que arrepia também aquele que se entrega a essa "ofegante epidemia".

O percurso operado nas duas obras revela também a coerência política do artista perante sua obra e seu público. Chico Buarque assume um claro compromisso: com "Apesar de você", mantém suas atividades intelectual e política respeitando, segundo minha opinião, rigorosamente, esses compromissos assumidos para, em 1984, cantar "a evolução da liberdade", em "Vai passar", e continuar, ainda, agora já sob o regime democrático de direito, defendendo posições que foram apresentadas em seus primeiros trabalhos. Chico Buarque não se aparta da realidade política e social que o cerca e coloca sua obra a serviço de uma sociedade mais justa e humana. Como afirmou o crítico, ensaísta e encenador teatral, Fernando Peixoto,

Chico Buarque é, sem dúvida, um marco essencial no panorama artístico e cultural de nossos dias  [...] Um artista e intelectual que sempre se posicionou em defesa da liberdade, de um mundo melhor, dos valores democráticos e nacional-populares.[9]


O desespero do apocalipse anunciado

A opção estética de um artista surge como resposta às necessidades ideológicas e tem por objetivo atuar frente à realidade histórica a que está defrontado, de maneira produtiva e eficaz. A própria dinâmica da história há que determinar a postura estética mais qualificada a responder aos embates do momento. Forma e conteúdo não são, portanto, contradições, assim, tão acentuadas, já que se unem em um objetivo comum: a forma como expressão do conteúdo que a sustenta em sua expressividade. Não nos deve causar espanto nos vermos defrontados com alguma obra que, aparentemente, destoe do conjunto produzido por um artista, pois ela deverá estar adequada aos apelos mais pungentes da realidade.

A razão de ser da arte nunca permanece inteiramente a mesma. A função da arte, numa sociedade em que a luta de classe se aguça, difere, em muitos aspectos, da função original da arte.  [...] toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as ideias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular.[10]

Nesse sentido é que percebo a existência de um viés absurdista,[11] ou, se preferirmos, apocalíptico, na obra musical de Chico Buarque. Tais nuances estéticas me levam a considerar que o artista atento responde com presteza a essas condições. Para melhor compreender esse processo, tentarei traçar um percurso entre duas músicas que, no meu entendimento, se enquadram naquilo que nominei “o desespero do apocalipse anunciado”: “Brejo da cruz” (1984) e “Ode aos ratos”[12].

Parece que Chico Buarque chegou à triste conclusão de que a crítica e a denúncia social não cumprem mais seus objetivos; é como se a sociedade já estivesse narcotizada para as mazelas que surgem e se avolumam dentro do seu interior. Faz-se preciso, então, um grito desesperado, quase inumano. Radicaliza para seu grito reverberar; nem que para isso seja necessário lançar mão de recursos que “extremizam” a percepção do absurdo das relações sociais. Confrontar a realidade com a visão apocalíptica que ela mesma autoprojeta. Por meio do que parece absurdo – e apenas parece, pois se concretiza a cada instante, em cada esquina – provocar uma reflexão que aponte para uma tomada de posição.

“Se alimentar de luz” não é mais uma metáfora, é uma realidade terrível que se nos apresenta com toda sua crueldade; um retrato extremado de um flagrante que não se esgota em si mesmo, pois se retroalimenta e se multiplica. Do brejo da cruz, que está em todos os quadrantes do país, o que nos resta? O subemprego como primeira alternativa para aqueles meninos que “eletrizados / cruzam os céus do Brasil” e, ainda na metonímica rodoviária – locus ao qual chegaram (e nele se estabelecem), aqui, categorizado como espaço livre, terra de ninguém, já que a todos reúne, pois encontro de todos que procuram novas possibilidades –, buscam sua sobrevivência a todo custo. Excluídos que são, tornam-se invisíveis para a sociedade que por eles passa e, desde que não seja atingida, não os percebe pelas ruas.

A invisibilidade não atinge apenas aqueles que “estão na rodoviária”; mas aqueles “que se disfarçam tão bem” tampouco são vistos, pois embora tenham atingido um “estágio superior”, continuam sem possibilidades de ascensão social: o máximo a que chegaram é que “já nem se lembram / que existe um Brejo da Cruz / que eram crianças / e que comiam luz”. O brejo da cruz desova na grande metrópole tudo o que produz, mas a cidade é insaciável: além do subemprego, da mão de obra barata, absorve o lumpemproletariado, e transforma aqueles que ainda restam em párias “que vendem fumo / atiram pedras / e passeiam nus”. Esses serão os marginais gerados e regurgitados pelo sistema e, enfim, replicados como uma “tribo em frenética proliferação”.

“Ode aos ratos” – ainda mais terrível e desesperadora – retoma, em outro momento, a trajetória daquelas crianças que mesmo “ficando azuis / e desencarnando” conseguiram sobreviver e tiveram suas vidas desviadas para a criminalidade. O grito de desespero não esconde a opção do artista por aquele que, para sobreviver “à chacina e à lei do cão”, não encontrando alternativa que lhe permita projetar uma existência digna, transforma-se no “saqueador da metrópole”, que ocupa as manchetes e é exposto nos datênicos programas sensacionalistas. A metaforização é assustadora; a zoomorfização é tão brutal que não permite uma nesga sequer para se considerar aquele “rato de rua” como detentor de qualquer possibilidade humana.
 
Porém, Buarque não se rende à denúncia social fácil e evidente: posta a realidade, o gênio se revela quando, contrariando as expectativas, desumaniza para humanizar. Então, do “rato de rua”, uma nova compreensão se ilumina e, num golpe de rara felicidade, na mais clara demonstração de seu amor e crença no homem, o artista resgata, nos dois últimos versos, a dignidade, o valor e o respeito ao “meu semelhante / filho de Deus, meu irmão”.


Conclusão

No percurso investigativo do processo de autorreferência e autorreflexão da obra buarquiana, foi possível perceber que o principal aspecto, que norteia essa marca de uma obra tão múltipla, é o aprofundamento temático que se opera na obra subsequente. Tal aprofundamento ocorre em função de uma maturidade do artista em sua percepção da realidade objetiva que, ao lançar uma discussão, mesmo demonstrando amplo domínio sobre o assunto, percebe que não o esgotou, retoma-o, tanto no aspecto musical quanto na letra, para “fechar” aquele ciclo.

A preocupação artística, estética e política de Buarque se revela de maneira consciente, crítica e autocrítica, como resultante da inquietação própria do artista cônscio do valor e importância de sua obra na construção de uma sociedade mais justa.


Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, com a colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. São Paulo: Hucitec, 2009.
BUARQUE, Chico. Chico Buarque de Hollanda. São Paulo: RGE, 1966. 1 LP.
BUARQUE, Chico. Construção. [S.l.]: Phonogram, 1971. 1 LP.
BUARQUE, Chico. Chico Burque. [S.l.]: Phonogram, 1978. 1 LP.
BUARQUE, Chico . Almanaque. [S.l.]: Mazola, 1981. 1 LP.
BUARQUE, Chico. Chico Buarque. Rio de Janeiro: Polygram, 1984. 1 LP.
BUARQUE, Chico. Carioca. [S.l.]: Biscoito Fino, 2006. 1CD.
BUARQUE, Chico; LOBO, Edu. Cambaio. [S.l.]: AR, 2001. 1 CD.
CHICO Buarque. Disponível em: < http://www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 28/08/2012
EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Tradução de Matheus Corrêa. São Paulo: Unesp, 2011.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.




[1] FISCHER. A necessidade da arte,  p. 57.
[2] Por falta de espaço, não me debruço aqui sobre a música “Deus lhe pague”, que teve parte retomada em “Construção”, apesar de entender a importância de tal recurso utilizado pelo autor.
[3] BAKHTIN. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
[4] PLEKHANOV citado por EAGLETON. Marxismo e crítica literária, p. 37.
[5] FISCHER. A necessidade da arte, p.14. Grifado no original.
[6] MARX; ENGELS citado por EAGLETON. Marxismo e crítica literária, p. 17.
[7] A ideia de alegria, verificada nas duas obras – "enorme euforia" e "ofegante epidemia" –, revela o prazer da transformação social e política que Buarque tantas e tantas vezes retomou em suas canções. Vejamos, como exemplo, a música "Moto contínuo", na qual o autor fala em "fonte da juventude", "bocas passando saúde" e, sobretudo, em "homem conduz a alegria que sai das turbinas de volta a você".
[8] Cito, a título de exemplo, as músicas "Cálice", de Gilberto Gil e Chico Buarque; "Pra não dizer que não falei de flores", de Geraldo Vandré; "Pois é, pra quê?", de Sidney Miller e "Pesadelo", de Maurício Tapajós e Paulo Cesar Pinheiro, que carregam o peso referido de "angustiantes e soturnas".
[9] Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/sanatorio/depoimentos.htm>. Acesso em:  28/08/2012
[10] FISCHER. A necessidade da arte, p. 16-17.
[11] Tomo de empréstimo o termo “absurdo”, cunhado pelo crítico inglês Martin Esslin (1918-2002). Foi Esslin quem primeiro categorizou a obra de arte, no caso específico o teatro, como pertencente ao gênero “absurdo”, em seu livro O teatro do absurdo, de 1962.
[12] A música “Ode aos ratos” teve duas gravações: a primeira em 2001, no CD Cambaio, e a segunda, em 2006, no CD Carioca. Em sua segunda versão, a letra ganhou um acréscimo, que a enriqueceu ainda mais. 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

BRECHT & BARTHES levantar a cabeça e distanciar


 Prolegômenos para situar aproximações e afastamentos
Sabe-se da estreita ligação de Roland Barthes com o teatro e, particularmente, com o teatro brechtiano[1], ao qual dedicou vários artigos que se destacam por uma análise rigorosa, e apaixonada, das propostas estéticas do autor de O círculo de giz caucasiano, Mãe Coragem e seus filhos, Vida de Galileu, entre outras. O que mais o surpreendeu foi compreender que o teatro de Brecht leva o espectador a uma consciência maior da história, sem que essa modificação provenha de uma persuasão retorica ou de uma intimidação predicante: o benefício vem do próprio ato teatral”[2], e percebe, também, uma “dupla função do teatro de Brecht: despertar e alimentar a consciência política do espectador e, ao mesmo tempo, assegurar-lhe o mais franco prazer, pois o teatro é feito para alegrar”.[3]
As relações de proximidade entre Roland Barthes e Bertolt Brecht podem ser  verificadas em proposições de reflexões críticas que pretendem provocar no leitor e no espectador. Entender a função do leitor diante da leitura e do espectador frente ao espetáculo teatral, nos parece levar a uma convergência de pensamentos no que se refere ao ato de levantar a cabeça, proposto por Barthes, e o efeito de distanciamento, desenvolvido por Brecht.
Em ambos, deparamo-nos com uma proposta que visa deslocar o recebedor de sua função passiva, tornando-o um agente ativo que, respeitando os limites estéticos, interfira na obra literária e teatral, compreendendo-a de forma diversa daquelas dominantes em seus respectivos momentos históricos.
Dada essa percepção de proximidade de pensamentos, uma pergunta se faz necessária: teria o efeito de distanciamento, que visa reposicionar o espectador diante do espetáculo cênico, permitindo-lhe com isso um apuramento e uma nova perspectiva crítica, contribuído para a formulação do conceito de leitor apresentado por Barthes?

Distanciamento e análise da realidade      
O poeta, dramaturgo e encenador alemão, Bertolt Brecht (1898-1956), propõe uma profunda e radical reorientação do fazer teatral: norteado pelo materialismo histórico e dialético, estabelece novas possibilidades de análise dos mecanismos da sociedade capitalista. Esse novo conceito de teatro só se tornaria possível a partir da utilização de uma técnica específica, capaz de levar o espectador a um nível diferenciado de consciência crítica, através do que ele nomeou efeito de distanciamento. Tal proposição pretende uma nova relação palco/plateia, em que o espectador é chamado a participar do processo cênico. Um teatro que apele menos para a emoção do que para a razão.
Contrário ao sistema catártico, Brecht procura levar o espectador a adotar uma nova postura frente ao espetáculo teatral: assumindo uma atitude de espanto e perplexidade seria capaz de elaborar/desenvolver uma consciência crítica diferenciada, portanto, ativa. As indagações do espectador não devem se localizar no desfecho da fábula, mas no seu decurso, numa tentativa de se atingir um entendimento a respeito das relações sociais apresentadas pela peça.
A valorização do espectador frente à encenação teatral está circunscrita à percepção de Bertolt Brecht de que as relações sociais no teatro burguês estão definidas e acabadas, portanto, não sujeitas a transformações. O dramaturgo e encenador entendia que somente uma nova postura do público, provocado por uma nova forma de arte, poderia modificar tal condição. Afirmava que “o público geralmente pendura o cérebro na sala de entrada, junto com o casaco” (1967, p. 44). No intuito de se contrapor a essa forma vigente, desenvolve uma técnica que estimula a reflexão e o posicionamento crítico, possibilitando que o público entre na sala não apenas com o seu coração. Segundo o encenador, o efeito de distanciamento
Trata-se, em resumo, de uma técnica de representação que permite retratar acontecimentos humanos e sociais, de maneira a serem considerados insólitos, necessitando de explicação, e não tidos como gratuitos ou meramente naturais. A finalidade deste efeito é fornecer ao espectador, situado de um ponto de vista social, a possibilidade de exercer uma crítica construtiva. (1967, p. 148 – grifos nossos).
Ao propor um novo teatro que se contraponha ao modelo vigente, onde as coisas eram dadas como definitivas, não podendo, portanto, ser modificadas, Brecht repensa a posição do espectador diante da cena. Em seu entendimento, somente uma postura distanciada possibilitaria uma visão crítica das relações sociais apresentadas pela fábula. Estar distanciado não significa necessariamente uma postura fria: Brecht nunca negou a emoção; no entanto, em seu teatro a emoção adquire uma qualidade diferenciada. Emoção que ao proporcionar prazer e divertimento, promova também o conhecimento.
Homem da era científica, não se permitia um teatro digestivo, que não correspondesse às necessidades do seu momento histórico, quando a luta de classes se estabelecia de forma irreversível. Lutou contra a emoção catártica, que tem sua origem na empatia e leva o espectador ao entorpecimento. Reafirmava que o abandono da empatia não se origina de um abandono das emoções e não leva a isto. Há uma emoção de caráter quantitativo e qualitativo especial, com um apelo mais acentuado à razão. Uma, porém, não exclui a outra, que se intercalam dialeticamente à procura de um equilíbrio:
o ponto essencial do teatro épico é, talvez, que ele apela menos para o sentimento do que para a razão do espectador. Em vez de participar de uma experiência, o espectador deve dominar as coisas. Ao mesmo tempo seria completamente errado tentar negar emoção a esta espécie de teatro. Seria o mesmo que tentar negar emoção à descoberta científica. (1978, p. 41)

Levantar a cabeça: uma nova leitura
Roland Barthes (1915-1980), ao nosso sentir, dialogando com o pensamento brechtiano, compreendendo o autor como “proprietário eterno de sua obra, e nós, seus leitores, simples usufrutuários” (2004, p. 27), propõe uma nova função do leitor ao elaborar a compreensão de que “a lógica da leitura é diferente das regras da composição” (p. 28).
Em seu artigo “Escrever a leitura” (1970), sugere que o leitor estabeleça uma nova postura diante do texto: levantar a cabeça. Tal atitude que, num primeiro momento, poderia provocar estranheza, pois interrompe o fluxo de uma relação íntima que envolve o prazer e o conhecimento, opera uma substancial transformação no processo de recepção daquela obra e, no seu efeito junto ao leitor.
Roland Barthes, ao comentar o ato de levantar a cabeça, ressalta o seu caráter dialético, no que se refere à aproximação e distanciamento do leitor em relação ao texto. Ainda que por um momento o leitor se afaste da obra em seu processo de reflexão, não perde o contato com o texto, pois a ele está ligado por uma relação emocional. Tal afastamento possibilita, contudo, uma percepção crítica daquilo que se lê:
É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa [distanciamento], pois que corta o texto, e apaixonada [aproximação], pois que a ele volta e dele se nutre [postura crítica em relação ao que se lê], que tentei escrever. Para escrevê-la, para que a minha leitura se torne por sua vez objeto de uma nova leitura (a dos leitores de S/Z), tive evidentemente de sistematizar todos esses momentos em que a gente “levanta a cabeça”. Em outras palavras, interrogar a minha própria leitura é tentar captar a forma de todas as leituras (a forma: único lugar da ciência), ou ainda: suscitar uma teoria da leitura.[4]
A experiência de “levantar a cabeça” pode ser entendida como um diálogo que o leitor estabelece com a obra, num esforço de entendimento da fábula; um momento em que assume uma posição ativa e “completa” a obra com seu processo crítico e imaginativo: as lacunas deixadas serão preenchidas por cada leitor, à sua maneira. São comentários que o leitor propõe, numa relação dialética, em que os dois – obra e leitor – se completam mutuamente.
Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas pedir e mostrar que podemos interpretá-lo livremente; é principalmente, e muito mais radicalmente, levar a reconhecer que não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verdade lúdica; e, ainda mais, o jogo não deve ser entendido como uma distração, mas como um trabalho – do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é fazer o nosso corpo trabalhar (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede em muito nossa memória e nossa consciência) ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que forma como que a profundeza achamalotada das frases. [...] ao ler, nós imprimimos certa postura ao texto, e é por isso que ele é vivo; mas essa postura, que é nossa invenção, só é possível porque há entre os elementos do texto uma relação regulada, uma proporção (2004, p. 29).
Não se pretende que Barthes, a exemplo de Brecht, tenha colocado sua obra a serviço do materialismo histórico e dialético e do marxismo; no entanto, percebe-se em sua crítica uma consciência de se produzir uma leitura diferenciada, em que o leitor assuma posição ativa e dialogue com a obra em outros parâmetros; que não seja apenas um recebedor passivo das ideias do autor. Barthes, que havia matado o autor, propõe nesse novo momento, a valorização do leitor, em condições bastante próximas daquilo que Brecht pensou para o espectador do teatro. Retomando o texto “Escrever a leitura”, verificamos que
O autor é considerado o proprietário eterno de sua obra, e nós, seus leitores, simples usufrutuários; essa economia implica evidentemente um tema de autoridade: o autor tem, assim se pensa, direitos sobre o leitor, constrange-o determinado sentido da obra, e esse sentido é, evidentemente, o sentido certo, o verdadeiro; daí uma moral crítica do sentido correto (e da falta dele, o “contrassenso”): procura-se estabelecer o que o autor quis dizer, e de modo algum o que o leitor entende. (grifado no original)
O teatro épico é um teatro historicizado, onde a fábula tem primazia sobre a ação dramática linear e progressiva. O distanciamento crítico deve ser uma constante na relação palco/plateia e, sobretudo, na relação ator/personagem, pois se esta não se estabelece de maneira correta aquela não será alcançada em seus objetivos. É o distanciamento ator/personagem que promove o distanciamento público/personagem:
o que o público vê não é a fusão entre quem descreve e quem está sendo descrito, não é um terceiro, autônomo e não contraditório, com contornos diluídos do primeiro (o que faz a descrição) e do segundo (o que é descrito) [...] as opiniões e os sentimentos do indivíduo que descreve e do que é descrito não estão sintonizados
Deixemos para o próprio Barthes a definição de distanciamento:
distanciar é cortar o circuito entre o ator e seu próprio pathos, mas é também e essencialmente restabelecer um novo circuito entre o papel e o argumento; é, para o ator, significar a peça, e não mais a si mesmo na peça. (BARTHES: 2007, p. 240-241)
Entendemos que essa proximidade Barthes/Brecht não se traduz apenas na paixão declarada de Barthes ao teatro e ao dramaturgo e encenador alemão: seus textos mais polêmicos sobre o autor, a leitura e também sobre a escrita/escritura, nos parecem contaminados pelo pensamento brechtiano, que acreditou que sendo a realidade passível de ser modificada, o teatro deveria despertar a atividade do espectador, levando-o a tomar decisões, pois faz dele testemunha; Barthes, indo ao seu encontro, afirma:
não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verdade lúdica; e, ainda mais, o jogo não deve ser entendido como uma distração, mas como um trabalho – do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é fazer o nosso corpo trabalhar [...] ao ler, nós também imprimimos certa postura ao texto, e é por isso que ele é vivo.[5]

 Um operário que duvida da história
Em seu poema “Perguntas de um operário leitor”, Brecht nos apresenta uma relação dialética em que se “confrontam” fatos históricos e indagações de um operário que lê a história oficial de maneira diferenciada, num esforço para entendê-la sob a perspectiva do seu real artífice – o trabalhador.
Diante da dificuldade de trabalharmos com exemplos teatrais, o que demandaria mais espaço, tentaremos analisar algumas passagens do poema, visando esclarecer o que julgamos configurar a proximidade entre os pensamentos de Roland Barthes e Bertolt Brecht, no que se refere à postura crítica assumida pelo receptor.
O poema inicia-se com uma pergunta direta e objetiva, em que não se verifica nenhum caráter retórico:
Quem construiu a Tebas das sete portas?
A resposta é dada pela historiografia oficial:
Nos livros estão escritos os nomes dos reis.
O “operário leitor”, então, num ato de “levantar a cabeça”, demonstrando sua “perplexidade” e seu “espanto”, indaga, ao mesmo tempo em que busca uma outra explicação para aquele fato:
Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?
O que verificamos, portanto, é uma mudança radical na postura do leitor que, a partir do confronto com a versão oficial da história, não aceita o fato como dado, e propõe uma outra possibilidade de análise. O resultado é fruto do inconformismo que se constrói sempre pelo questionamento e pela não aceitação de uma só resposta para uma mesma afirmação: a dialética se manifesta nas várias possibilidades de entendimento. Barthes afirma que
[...] ler, no sentido de consumir, não é jogar com o texto. “Jogar” deve ser tomado aqui no sentido polissêmico do termo: o próprio texto joga (como uma porta, como um aparelho em que há “jogo”); e o leitor, ele joga duas vezes: joga com o Texto (sentido lúdico), busca uma prática que o re-produza; mas, para que esse prática não se reduza a uma mímesis passiva, interior (o Texto é justamente aqui que resiste a essa redução), ele joga o jogo de representar o Texto. (2004, p. 73).
E o operário continua, com outra questão:
E as várias vezes destruída Babilônia -
Quem é que tantas vezes a reconstruiu?

As indagações continuam num processo de desconstrução da história oficial, visando se construir uma nova história, agora subordinada ao materialismo histórico e dialético, que buscas nas relações socioeconômicas suas explicações. Para, finalmente, encerrar o poema:

Tantos relatos.
            Tantas perguntas.[6]
Roland Barthes esclarece que
[...] a obra de Brecht, abertamente fundada no desígnio político, postulava entre o espectador e o espetáculo o que se poderia chamar de participação diferida, única capaz, a seus olhos, de representar o mal social, sem por isso empesgar o público no sentimento de sua fatalidade. (2007, p. 106).
           
Conclusão como ponto de partida
O que acreditamos ter demonstrado, ainda que de forma bastante precária, dado os objetivos do trabalho, mereceria ser desenvolvido em uma pesquisa de maior folego: o diálogo que Roland Barthes estabelece com o conceito de distanciamento, proposto por Bertolt Brecht, promoveu a formulação de um conceito fundamental na teoria da literatura.  A insistente recorrência de Barthes ao conceito de teatralidade, agregada à sua íntima relação com o teatro, nos permite acreditar na sua apropriação conceitual para explicar as relações entre autor, leitor e leitura.

Perguntas de um operário leitor
Bertolt Brecht

Quem construiu a Tebas das sete portas?
Nos livros estão escritos os nomes dos reis.
Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?
E as várias vezes destruída Babilônia -
Quem é que tantas vezes a reconstruiu? Em que casas
da Lima refulgente de ouro moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta
a muralha da China? A grande Roma
está cheia de Arcos de triunfo. Quem os levantou? Sobre quem
triunfaram os Césares? Tinha a tão decantada Bizâncio
somente palácios para os seus habitantes? Mesmo a lendária Atlântida
na noite em que o mar a engoliu, gritavam,
os afogados, pelos seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
César venceu os gauleses.
Não teria consigo um cozinheiro ao menos?
Felipe de Espanha chorou, quando a armada
se afundou. Não chorou mais ninguém?
Frederico Segundo venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem
venceu além dele?

Cada página uma vitória.
Quem cozinhou o banquete da vitória?
Cada dez anos um Grande Homem.
Quem pagou as despesas?

Tantos relatos.
Tantas perguntas.


  
NOTAS

[1] No livro Escritos sobre teatro, encontramos dez artigos específicos sobre o teatro de Bertolt Brecht; em O rumor da língua, dois. Além dos artigos específicos, Brecht é citado em outros tantos, dentre eles, o polêmico “A morte do autor”, de 1968.
[2] “Teatro Capital”, 8 de julho de 1954. In: BARTHES: 2007, p. 100.
[3] “O círculo de giz caucasiano”, agosto-setembro de 1955. Idem: p. 163.
[4] “Escrever a leitura”, 1970. In: BARTHES: 2007, p. 26.
[5] Idem: p. 29.
[6] O poema "Perguntas de um operário leitor”, se encontra, na íntegra, ao fim do trabalho. 



BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004

_____. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005

_____. Escritos sobre teatro : textos reunidos e apresentados por Jean-Loup Rivière. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2007

_____. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. e Prefácio de Leyla Perrone Moisés. São Paulo: Cultrix, 2007a.

BIDENT, Christophe. O gesto teatral de Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. Disponível em http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/o-gesto-teatral-de-roland-barthes/ - Acesso em 18/12/2012.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Coletados por Siegfried Unseld. Trad. Fiama Pai Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

_____. Poemas 1913 – 1956. Seleção e tradução Paulo César de Souza. 6ª. ed. 3ª. reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2006.

_____. Teatro dialético - ensaios. Seleção e introdução de Luiz Carlos Maciel. Trad. Luiz Carlos Maciel et all. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

LAGOINHA boemia, malandragem e cultura

                                                                                                                                            * versão nova

Os valores históricos e culturais se transformam a partir da luta de suas contradições internas. Por outro lado, devemos entender que a unidade dos contrários consiste na reciprocidade de determinação, o que indica que os contrários de uma coisa não conseguem viver um sem o outro, ainda que em constante luta. Essa luta é que deverá levar à transformação da quantidade em qualidade. A negação dialética nos ensina que no processo de transformação e superação do velho pelo novo, não há exclusão absoluta:

o novo nunca destrói o velho totalmente. A negação dialética conserva o que o velho tem de positivo, isto é, o novo enriquece-se com o melhor que o desenvolvimento anterior tinha. A negação do que é caduco é inevitável para conservar os elementos sãos e progressistas e criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento. (KRAPIVINE: 1986, p. 177)
Uma cidade não se constrói em seu presente, apenas. O que se faz hoje traz a marca do passado, enquanto um conjunto de saberes e fazeres acumulados, e aponta uma perspectiva de futuro. O que cabe ao presente é organizar um memorial em que esses saberes e fazeres se prestem como referência às gerações que darão continuidade ao nosso sentido de cidadãos inseridos no contexto de uma polis. Neste sentido, o processo nos parece bastante simples: conhecer o passado para entender o presente e projetar o futuro. Brandão (2009, p. 57) esclarece que

Para reintegrar a cidade no tempo, a prospecção da cidade ideal, utópica e modelar suscita, simetricamente, uma pesquisa por seu passado, por sua identidade histórica e pela sua marca fundante. Dai ser comum esse avanço para o futuro ser acompanhado também por um avanço para o passado.
            Passado, presente e futuro se mesclam, se contradizem e se superam, visando sempre a possibilidade de criar condições para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. E qualidade de vida não se restringe aos valores materiais; os saberes e fazeres citados anteriormente fazem parte de um imenso e incomensurável valor imaterial, e deles, nenhuma sociedade minimamente organizada pode arbitrariamente se dispor ou ignorar, pois

A cidade é o lugar doador de sentido à existência individual e do aprimoramento de nosso corpo, nosso espírito e dos usos e hábitos de nosso tempo. Seu espaço, apesar dos tempos atuais, não é mera extensão ou somatória dos espaços privados, a sua natureza, sentido e função são completamente diversos e, por excelência, é nele que a “humanidade do homem” se forma. [...] É certo que a polis deve abrigar o espaço do privado, onde constituímos nossa vida particular; mas também é certo que a necessidade de constituição de um mundo comum e político apresentou-se e apresenta-se, continuamente, como o local onde o individuo se reconhece dentro de uma tradição, conquista uma identidade, se conhece e se constitui como um eu a dialogar com um outro. Esse outro não é apenas o outro fático com o qual cruzo nas ruas, mas também o outro do tempo, os que nos precederam e as gerações futuras que nos seguirão. Estes também são nossos interlocutores, e daí a cidade ser também o espaço da memória e a memória faz parte de sua natureza. (BRANDÃO: 2006, p. 61)

Uma cidade que surge de um projeto urbanístico, com o intuito de ser a capital do Estado, como foi o caso de Belo Horizonte, não pode, ao nosso juízo, cometer o erro de circunscrevê-la no espaço exíguo da Avenida do Contorno (originalmente chamada 11 de Dezembro). Não se pensou na possibilidade de aquela cidade de papel, prevista para atingir 100 mil habitantes somente quando completasse 100 anos, se transformar em uma metrópole. A cidade foi invadida, seu projeto superado, e a expansão se deu de forma desordenada e descontrolada; os “arranjos” feitos a partir da constatação de que a cidade não estava preparada para essa nova realidade, repercutiu  nas dificuldades que enfrentamos ainda hoje em função de seu mau planejamento.

O bairro Lagoinha nasceu junto à planejada cidade de Belo Horizonte, no final do século XIX. Teve como principais habitantes imigrantes italianos, portugueses, turcos, espanhóis, migrantes do interior de Minas Gerais e de outros estados brasileiros. [...] Alguns escritos demonstram que os primeiros sinais de ocupação do bairro remontam ao antigo Curral Del Rey, datado do início da ocupação territorial da região de Minas Gerais. Classificada como área suburbana – fora dos limites da Avenida do Contorno, que demarcavam o cinturão urbano, embora em área contígua à urbana –, foi sempre um típico bairro de periferia, hoje qualificada de área pericentral, tendo sido habitado pelos trabalhadores encarregados da construção da cidade. Nasceu a partir das colônias agrícolas Carlos Prates e Américo Werneck, que foram incorporadas formalmente à zona suburbana de Belo Horizonte, nas décadas de 1910 e 1920. (FREIRE: 2011, p. 111-112)
A relação do cidadão com os espaços públicos de sua cidade não se estabelece a partir de uma condição física e/ou geográfica apenas; o espaço público, sendo espaço de convivência, torna-se, portanto, um espaço vivo, pulsante, ponto de encontro e referência de pessoas que se identificam e buscam cumplicidade com as praças, parques e jardins que os acolhe, estabelecendo vínculos que se formam e sobrevivem ao tempo.
Acolhimento e cumplicidade: dois motivos que se traduzem em qualidade de vida e construção da cidadania que se forja na convivência que se constrói e cultiva; via de mão dupla que se completa na doação e no respeito.
A humanização do espaço público somente se efetiva em sua concreta utilização pela comunidade, que é o dínamo propulsor de sua função social. O espaço público inacessível ou aquele com o qual a comunidade não criou seus laços de afeto e prazer, não existe em sua função primeira que é acolher a pessoa humana e doar o que lhe é permitido. A humanização, portanto, é resultado de sua ocupação, e somente a ela pertence. Sem ocupação não há humanização.
Por outro lado, tentar creditar ao espaço público de uma capacidade de ação própria e voluntária, nos parece revelar uma profunda incompreensão do seu processo de humanização, que é dependente da ação do outro. Ao espaço público enquanto tal, não é creditada a capacidade de agir.
De todos os absurdos cometidos contra a memória histórica e cultural de Belo Horizonte, destaca-se, sobremaneira, o fim da Lagoinha, particularmente no entorno da Praça Vaz de Melo. Considerada “reduto da boemia”, a implosão daquilo que ainda restava da Lagoinha, enquanto resistência à chamada “força do progresso”, levou o jornalista e escritor Wander Piroli a comentar, num comovente lamento de quem ali criou sua identidade de homem e cidadão, e dali recolheu valioso material para sua escrita:

Não fui lá nesse dia. Não queria ver o fim melancólico e desnecessário da Praça. Em vez de tombá-la como patrimônio público, o último local mais característico da vida noturna da cidade, preferiram destruí-la. E destruí-la à toa, sem a menor necessidade. O fato é que as tais autoridades municipais foram lá, muitos curiosos para ver o espetáculo de uma implosão [...] E no meio da pequena multidão silenciosa, Lagoinha soltou o samba:
“Adeus, Lagoinha, adeus.
Estão levando o que resta de mim.
Dizem que é a força do progresso.
Um minuto eu peço
Para ver seu fim.”
Houve um minuto de silêncio após o último acorde da música. E, depois, todo mundo viu um prédio ser jogado no chão. (PIROLI: 2004, p. 19)

A importância histórica e cultural da Lagoinha não pode estar reduzida às peculiaridades excêntricas que emolduram sua existência. O seu maior valor está em sua riqueza imaterial. Ainda hoje, povoa o imaginário daqueles que não a conheceram e se fixa recorrente nas lembranças dos que viveram, mesmo que fortuitamente, seus momentos de glória e sua destruição enquanto espaço habitacional, comercial e reduto de prazeres. Símbolo de uma época, a Lagoinha acolheu a boemia e a malandragem, prostitutas e cafetões, trabalhadores e vagabundos e, uma parte significativa da intelectualidade e artistas, que ali se irmanavam na magia de suas noites.

Ali aconteceu quase tudo de importante em minha vida. Amizades, amores, e maravilhosas aventuras. A Lagoinha está inscrita em mim, mesmo não existindo mais. (SILVEIRA: 2005, p. 103)

O imaginário da Lagoinha resiste ainda na tradição oral e nas poucas obras que registram uma pesquisa que, aliada a depoimentos, resgata sua história. O imaginário resiste e se cria para os que viveram seu momento de gloria, e forjam, para aqueles que não a puderam vivenciar, uma espécie de saudade de um tempo não vivido. Se não vivido, como ter saudade? Onde, então, o desencadeador de uma memória que não há? É nesse momento que entra em cena o imaginário, com toda sua potencialidade em criar representações mentais.
O termo “imaginário” tem significados diferentes para cada um de nós. Para uns, o imaginário é tudo o que não existe; uma espécie de mundo oposto à realidade crua e concreta. Para outros, o imaginário é uma produção de devaneios de imagens fantásticas que permitem a evasão para longe das preocupações cotidianas. Alguns representam o imaginário como um resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana. Outros o veem apenas como uma manifestação de um engodo fundamental para a constituição identitária do indivíduo. (BARBIER: 1994, p. 15)
O imaginário nos parece ter como função estimular mecanismos que estabelecem uma conexão entre aquilo que existe, ou existiu, ainda que desconhecido pelo sujeito, com a capacidade criativa desse mesmo sujeito. O imaginário possui a prerrogativa de “reproduzir”, enquanto representação mental, um lugar, um objeto, uma sensação, uma pessoa. Permite “recriar” e mesmo “se transportar” para esse locus, comunicar-se com aquela pessoa, tocar determinado objeto ou mesmo “vivenciar” uma sensaçao que, embora não representem suas verdadeiras configurações, satisfaz em parte os desejos do sujeito. O imaginário, portanto, parece possibilitar a “realização” de um desejo.

O sujeito cria para si mesmo a imagem formada a partir dos cacos que foi catando aqui e ali, seja através da historiografia oficial, ou de vestígios, e aqui emprestamos o sentido que lhe confere Walter Benjamin, em obras artísticas, fotografias, depoimentos, relatos e notícias jornalísticas. Configura o seu imaginário e a ele permite vida. Como os “fatos” pertencem ao passado, é possível resgatá-los, moldando-os, conferindo a eles as cores que melhor lhe parecerem, sem com isto violentar ou ultrajar a história, mesmo que, eventualmente, acrescente, aqui e ali, novos condimentos, estes, frutos da idealização. 

O imaginário tem como aliada de primeira ordem a idealização. A Lagoinha, com seus segredos e suas tentações, se apresenta para o seu frequentador como o espaço ideal para a realização do seu prazer. Para aquele que não viveu sua plenitude, ela como se materializa no imaginário um espaço reservado quase que exclusivamente à liberdade e ao prazer. A idealização faz parte dos dois imaginários: para quem viveu e para quem apenas ouviu falar.

A transgressão e o desejo da transgressão estão no vértice mesmo desse imaginário, que se cria a partir da realidade objetiva ou da percepção subjetiva que se elabora de uma realidade não vivida. “A Cidade descansava na Lagoinha, tinha lazer na Lagoinha e transgredia, também, na Lagoinha.” (SILVEIRA: 2005, p. 131). Transgredir é violar normas, romper parâmetros que limitam a ação. O comportamento social estabelece e impõe formas de convivência.

A Lagoinha é uma coisa rara que fica na lembrança. Um tempo divertido e de muito trabalho. Música. A Lagoinha era música. Dos músicos, das lojas de instrumentos musicais, das lojas de conserto de instrumentos. (SILVEIRA: 2005, p. 115 – grifo nosso)
            
        A metaforização da Lagoinha como música, cria uma representação em que o imaginário se manifesta como idealização daquele espaço geográfico. A música, de maneira geral, está ligada ao sentimento de prazer. Na Lagoinha, portanto, a concordarmos com esse pressuposto, se concretiza esse prazer, pois, ali, “coisa rara que fica na lembrança”, o prazer se torna música e a música potencializa o prazer. Música enquanto manifestação sonora, e música enquanto elevação do espirito intimamente relacionada com a concretização do prazer.

            Lagoinha era, também, música enquanto promotora de encontro de compositores e músicos, como afirma o compositor Milton Rodrigues Horta – mais conhecido como Lagoinha:

A Lagoinha era um reduto de boêmios populares, boêmios da música. Era um ponto de encontro de compositores, onde discutíamos música. (SILVEIRA: 2005, p. 117)
           
         Os “boêmios da música”, que nos sugere encerrar uma categoria que tem na noite o seu motivo, acolhe tanto o artista, que busca inspiração para a sua crônica musical, quanto o não artista – no depoimento, categorizado como “boêmios populares”. Podemos falar de uma simbiose, em que a música se comporta como catalizadora de um encontro que reunia o homem comum – putas, malandros, vagabundos e trabalhadores – e o artista que, dialeticamente, retroalimenta aquela comunidade.  Dali retira o material para sua arte e o devolve como produto de sua inspiração.

            Sua obra, e aqui nos reportamos a Bakhtin, reflete e refrata aquele universo em que a idealização não faz parte da lembrança, ela é presente e se relaciona à sua vivência diária e sua busca do prazer.  Celso Garcia e Jair Silva, em sua música “Praça Vaz de Mello”, nos apresenta um frequentador da Lagoinha que não se constrange em abandonar a mulher em favor da cachaça e do botequim, revelando que encontra mais prazer nos braços da Lagoinha do que nos braços da mulher amada:
Não há entre nós um paralelo
Eu na Praça Vaz de Melo
E ela tão longe de mim.

E assim, de cachaça em cachaça
Vou vivendo ali na Praça
Botequim em botequim.

Sou todo da Lagoinha
Assim como ela é só minha
E eu sou seu bem querer.

Sair dali eu não posso
Este é o problema nosso
Eu prefiro te esquecer.
            É necessário ressaltar, aqui, a importância que Medeiros (2001,  p. 58) confere à Praça Vaz de Mello, “que representava a porta de entrada do bairro Lagoinha. A praça ocupava, em seu entorno, bares, motéis, cinemas, clubes de dança, restaurantes e comércio em geral”, e acrescenta que

A praça [Vaz de Mello] constituía um lugar de homens de família ou não, artistas, trabalhadores, viajantes, coronéis ou qualquer outra categoria de homens que possuía dinheiro para gastar e que, portanto, tinha acesso ao prazer. Com os espaços livres, e com grandes casas desocupadas pelos antigos moradores que se deslocaram para outros lugares, surge, no local, a instalação dos dancings com capacidade para muitas pessoas, como o Night Clube Montanhês, as casa de prostituição e os hotéis destinados aos encontros amorosos. (p. 60)

Em seu poema “Destruição”, Carlos Drummond de Andrade escreve:

            Deixaram de existir mas o existido
            continua a doer eternamente

No espetáculo Malandro, o musical, um ator caracterizado de malandro, surge à frente da cortina e, num misto de nostalgia e tristeza, dor e alegria, convida o público a uma viagem pelo imaginário da Lagoinha, com seus malandros, suas putas e seus vagabundos...

Lagoinha já não há...
Maravilhoso, Montanhês,
Guaicurus e Paquequer,
Diamantina, Bonfim,
Vaz de Mello e Mauá de Baixo
já não respondem pelos seus nomes.
Só lembrança que resta...
Houve, sim, é verdade, o tempo
do prazer em cada esquina,
em cada bar, em cada bordel.
Na voz de Nelson ou Gardel
um novo alento alimentava a noite...
Tarcízio Ildefonso, em um depoimento para o livro Lagoinha a cidade encantada, traduz aquilo que o imaginario tenta resgatar, e que, neste trabalho tentamos entender:
O encanto acabou...[1] 
Em seu tempo de maior glória, a Lagoinha reuniu também políticos de grande expressão. Apenas a título de curiosidade, é sabido que o ex-presidente Juscelino Kubistchek era assíduo frequentador do Clube Montanhês, uma das mais importantes casas noturnas da época.
[...] a Lagoinha atraía, em seus tempos áureos, grande diversidade de pessoas, uma vez que havia cabarés para todos os níveis sociais. [...] Segundo Medeiros, havia o rendez-vous, “casas discretas e requintadas que tinham ambientes para dançar, beber, quartos para o serviço sexual, ambientes para conversas íntimas” e as casas de baixo meretrício, em geral identificadas pela luz vermelha interna, onde “havia bebidas disponíveis; as mais baratas, como a cerveja e a cachaça, música, especialmente de eletrola, e quartos para os serviços sexuais”. As mulheres ficavam nas salas ou nas janelas, chamando os clientes. Em comparação com os rendez-vous, os preços eram mais baixos. Havia ainda as prostitutas que conseguiam seus clientes nas ruas e depois os conduziam aos hotéis da região que alugavam quartos para esse fim. [...] as cafetinas cumpriam seu papel de controle, proteção e mediação. [...] No Montanhês [...] os fregueses ganhavam um cartão quando entravam e, a cada dança, o cartão era perfurado. No final, as dançarinas recebiam segundo esses registros. Não havia quartos para encontros. Estes eram marcados durante as danças para acontecer em hotéis da região. (ANDRADE; TEIXEIRA: 2004, p. 145-146)
O deslocamento geográfico de um grupo, ou grupos, implica em uma reorganização da polis, em seus aspectos relacionais – aqui, entendidos em seus valores cultural, político, social, religioso, etc. Ao se estabelecer um novo espaço de convivência, pois tal estabelecimento é resultado do deslocamento, uma nova teia se tece e interfere naquele novo ambiente em que foi tecida, pois até então o grupo, ou grupos, não pertencia àquele espaço que ora ocupa. Neste sentido, é preciso considerar também o desfazimento de vínculos sociais anteriores ao momento em que houve a transferência e que se impõe, muitas vezes, de forma irreversível.
            Os diversos grupos frequentadores da Lagoinha se dispersaram pelos quatro cantos da cidade, alijados de seu espaço “natural”, e não encontraram, nem conseguiram “construir” – ou, constituir – um novo espaço que os abrigasse enquanto comunidade culturalmente unida e comungada em objetivos que os identificava enquanto tal e se reunia em torno de um modo de vida característico. A noite, a boemia, os prazeres e o lastro cultural se viram arbitrariamente interditados por interesses que ultrapassam a lógica de compreensão da “força do progresso” de que nos fala Gervásio Horta.
            Horta, ao se “despedir” da Lagoinha, afirma que “estão levando o que resta de mim”. Manifestação tão doída não nos parece que seja a mera expressão de um saudosismo piegas e antecipador de recordações que se encerram em si mesmas. O que daí podemos depreender é um grito de protesto contra a própria perda de identidade, resultante daquele deslocamento anteriormente citado; o que “estão levando” dele é o seu referencial humano e de cidadão que se socializava no encontro com pessoas afins que procuravam, num mesmo espaço geográfico e cultural, significado para suas vidas. Pois, como afirma Ricoeur, “nos lembramos daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância particular.” (2010, p. 42). E das nossas lembranças não podemos nos afastar, elas é que se afastam de nós. O Esquecimento, contraponto a Mnemosine, existe para encontrar o equilíbrio. Enquanto ele não atua, lutamos para manter viva a memória, que é o primeiro sinal do registro da história.
            A implosão da Lagoinha implicou no apagamento de uma identidade histórica e cultural da cidade, que hoje habita apenas a memória e lembrança dos que ali frequentaram. Memórias e lembranças que, por sua vez, são apagadas pelo tempo e pela ausência de alguns de seus protagonistas. Devemos entender a memória como nos ensina Le Goff (2008, p. 419):
a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.

Aos poucos, o que assistimos, é a memória cedendo espaço para uma historiografia que, por seu turno, pode ou não estar vinculada a interesses institucionais e, portanto, nos revelando apenas parte e silenciando outra parte extremamente significativa que se encontra circunscrita no âmbito dos sentimentos e na lembrança dos antigos frequentadores do reduto boêmio de Belo Horizonte. O passado, a cada dia se distancia e se esvanece pela própria ação do tempo, obnubilando nossas lembranças. Por isso é que Sarlo (2007, p. 9) adverte que
o passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum.
A boemia intelectual frequentadora da Lagoinha foi deslocada para o Edifício Maletta, na Rua da Bahia, que a recebeu e a abrigou. Nesse processo de transferência foi “obrigada” a se reorganizar e estabelecer novos vínculos em que se verificam novos estatutos comportamentais, uma vez que, circunscritos em um prédio de escritórios e apartamentos, precisaram se adaptar a uma nova realidade, tão distinta daquela anterior. O confinamento se contrapondo ao sentimento de liberdade experimentado na Praça Vaz de Melo, que não era apenas subjetivo, mas também geográfico, físico. É, então, construído um novo conceito de boemia, agora muito mais “comportado”, que se configura com uma contradição com o espirito libertário daquele que tem na noite o seu motivo. A convivência já não se faz com os mesmos grupos: no Maletta estão ausentes as putas, os malandros, os vagabundos, e o “valentão” de que nos fala Horta. Os demais grupos frequentadores da Lagoinha não são mais encontráveis: algumas pessoas, num esforço de manter vivo o espírito boêmio, permanecem em seus arredores; o restante perdeu suas referências identitárias. Não se sabe para onde eles foram. A cidade, agora higienizada, não procurou saber o destino daqueles que expulsou do seu reduto. Afinal, eram apenas putas, malandros e vagabundos.
            O crescimento da urbe ignorou os interesses materiais e imateriais daquela comunidade que ali se estruturara e construíra sua própria “fortaleza”, em que sua muralha de defesa se constituía e se representava, no imaginário de cada um, nas mesas dos bares e nas íngremes escadas dos hotéis de putas; se construíra na rede de amizades que se formou. O apagamento e o confinamento dos grupos foram alcançados como resultado do esvaziamento de um espaço que tinha na transgressão sua principal componente e razão de ser. A cidade do esquecimento forja-se, então, em uma nova topografia, que nos obriga a repetir Chico Buarque: “a cidade não mora mais em mim”.[2] Implodir a Lagoinha, não significa apenas derrubar um prédio: significa provocar uma cesura, um corte, uma interdição definitiva. Implosão é explodir pra dentro, de dentro. Entendendo a Lagoinha como um território em que suas “leis” eram determinadas pelo próprio movimento dos grupos, esvaziar esse espaço, além de servir a interesses da urbanização emergente, se prestou também para realizar uma “limpeza” e separar todos os que se propunham a contestar de alguma maneira o status quo vigente.
Muito provavelmente, uma nova higienização, agora visando mais objetivamente a Copa do Mundo 2014, resolva definitivamente o problema, expulsando alguns pequenos e localizados bolsões em que a frequência desse tipo de gente – putas, malandros e vagabundos – não seja adequada. Transita na Câmara Municipal de Belo Horizonte[3] um projeto de revitalização da Guaicurus. Para se revitalizar a Guaicurus, ainda precariamente identificada com a Lagoinha da Vaz de Melo, é preciso reconfigurá-la e, efetivar sua reconfiguração, certamente implicará em atos radicais e, talvez não possamos mais contar com a presença de alguns “hotéis” como o Montanhês, o Maravilhoso, o Rosário, o 32, entre outros que ainda resistem como espaço destinado à baixa prostituição. A alta prostituição é oficializada nas recepções dos estrelados hotéis que servem e servirão aos turistas, agora e na Copa de 2014.
Gervásio Horta, em sua música “Adeus, Lagoinha”, ergueu uma muralha de resistência em que se recusa a apagar de sua memória as lembranças do tempo e dos amigos da Praça. Registra pela história não oficial da arte, que traz como marca a subjetividade do artista e, talvez, por isso mesmo, seja de todas a mais oficial, os versos doídos e os lamentos que não se calam e não se devem calar, pois é neles que se ouve o eco da voz de todos aqueles que da noite se fizeram parceiros e na Lagoinha registraram suas histórias pessoais que, irmanadas criaram um imaginário coletivo que respondia pelo nome de Praça Vaz de Melo.

BIBLIOGRAFIA

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[1] SILVEIRA: 2005, p. 103
[2] Cf. “Assentamento”. In: BUARQUE, Chico. Terra. 
[3] Sobre o projeto de revitalização da Rua Guaicurus, ver:  BARRETO, Letícia Cardoso. Prostituição, gênero e sexualidade: hierarquias sociais e enfrentamentos no contexto de Belo Horizonte. p. 107-110. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/npp/images/pdfs/dissertacao%20leticia%20barreto.pdf - Acesso em 22/10/2012.