sexta-feira, 9 de novembro de 2012

LAGOINHA boemia, malandragem e cultura

                                                                                                                                            * versão nova

Os valores históricos e culturais se transformam a partir da luta de suas contradições internas. Por outro lado, devemos entender que a unidade dos contrários consiste na reciprocidade de determinação, o que indica que os contrários de uma coisa não conseguem viver um sem o outro, ainda que em constante luta. Essa luta é que deverá levar à transformação da quantidade em qualidade. A negação dialética nos ensina que no processo de transformação e superação do velho pelo novo, não há exclusão absoluta:

o novo nunca destrói o velho totalmente. A negação dialética conserva o que o velho tem de positivo, isto é, o novo enriquece-se com o melhor que o desenvolvimento anterior tinha. A negação do que é caduco é inevitável para conservar os elementos sãos e progressistas e criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento. (KRAPIVINE: 1986, p. 177)
Uma cidade não se constrói em seu presente, apenas. O que se faz hoje traz a marca do passado, enquanto um conjunto de saberes e fazeres acumulados, e aponta uma perspectiva de futuro. O que cabe ao presente é organizar um memorial em que esses saberes e fazeres se prestem como referência às gerações que darão continuidade ao nosso sentido de cidadãos inseridos no contexto de uma polis. Neste sentido, o processo nos parece bastante simples: conhecer o passado para entender o presente e projetar o futuro. Brandão (2009, p. 57) esclarece que

Para reintegrar a cidade no tempo, a prospecção da cidade ideal, utópica e modelar suscita, simetricamente, uma pesquisa por seu passado, por sua identidade histórica e pela sua marca fundante. Dai ser comum esse avanço para o futuro ser acompanhado também por um avanço para o passado.
            Passado, presente e futuro se mesclam, se contradizem e se superam, visando sempre a possibilidade de criar condições para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. E qualidade de vida não se restringe aos valores materiais; os saberes e fazeres citados anteriormente fazem parte de um imenso e incomensurável valor imaterial, e deles, nenhuma sociedade minimamente organizada pode arbitrariamente se dispor ou ignorar, pois

A cidade é o lugar doador de sentido à existência individual e do aprimoramento de nosso corpo, nosso espírito e dos usos e hábitos de nosso tempo. Seu espaço, apesar dos tempos atuais, não é mera extensão ou somatória dos espaços privados, a sua natureza, sentido e função são completamente diversos e, por excelência, é nele que a “humanidade do homem” se forma. [...] É certo que a polis deve abrigar o espaço do privado, onde constituímos nossa vida particular; mas também é certo que a necessidade de constituição de um mundo comum e político apresentou-se e apresenta-se, continuamente, como o local onde o individuo se reconhece dentro de uma tradição, conquista uma identidade, se conhece e se constitui como um eu a dialogar com um outro. Esse outro não é apenas o outro fático com o qual cruzo nas ruas, mas também o outro do tempo, os que nos precederam e as gerações futuras que nos seguirão. Estes também são nossos interlocutores, e daí a cidade ser também o espaço da memória e a memória faz parte de sua natureza. (BRANDÃO: 2006, p. 61)

Uma cidade que surge de um projeto urbanístico, com o intuito de ser a capital do Estado, como foi o caso de Belo Horizonte, não pode, ao nosso juízo, cometer o erro de circunscrevê-la no espaço exíguo da Avenida do Contorno (originalmente chamada 11 de Dezembro). Não se pensou na possibilidade de aquela cidade de papel, prevista para atingir 100 mil habitantes somente quando completasse 100 anos, se transformar em uma metrópole. A cidade foi invadida, seu projeto superado, e a expansão se deu de forma desordenada e descontrolada; os “arranjos” feitos a partir da constatação de que a cidade não estava preparada para essa nova realidade, repercutiu  nas dificuldades que enfrentamos ainda hoje em função de seu mau planejamento.

O bairro Lagoinha nasceu junto à planejada cidade de Belo Horizonte, no final do século XIX. Teve como principais habitantes imigrantes italianos, portugueses, turcos, espanhóis, migrantes do interior de Minas Gerais e de outros estados brasileiros. [...] Alguns escritos demonstram que os primeiros sinais de ocupação do bairro remontam ao antigo Curral Del Rey, datado do início da ocupação territorial da região de Minas Gerais. Classificada como área suburbana – fora dos limites da Avenida do Contorno, que demarcavam o cinturão urbano, embora em área contígua à urbana –, foi sempre um típico bairro de periferia, hoje qualificada de área pericentral, tendo sido habitado pelos trabalhadores encarregados da construção da cidade. Nasceu a partir das colônias agrícolas Carlos Prates e Américo Werneck, que foram incorporadas formalmente à zona suburbana de Belo Horizonte, nas décadas de 1910 e 1920. (FREIRE: 2011, p. 111-112)
A relação do cidadão com os espaços públicos de sua cidade não se estabelece a partir de uma condição física e/ou geográfica apenas; o espaço público, sendo espaço de convivência, torna-se, portanto, um espaço vivo, pulsante, ponto de encontro e referência de pessoas que se identificam e buscam cumplicidade com as praças, parques e jardins que os acolhe, estabelecendo vínculos que se formam e sobrevivem ao tempo.
Acolhimento e cumplicidade: dois motivos que se traduzem em qualidade de vida e construção da cidadania que se forja na convivência que se constrói e cultiva; via de mão dupla que se completa na doação e no respeito.
A humanização do espaço público somente se efetiva em sua concreta utilização pela comunidade, que é o dínamo propulsor de sua função social. O espaço público inacessível ou aquele com o qual a comunidade não criou seus laços de afeto e prazer, não existe em sua função primeira que é acolher a pessoa humana e doar o que lhe é permitido. A humanização, portanto, é resultado de sua ocupação, e somente a ela pertence. Sem ocupação não há humanização.
Por outro lado, tentar creditar ao espaço público de uma capacidade de ação própria e voluntária, nos parece revelar uma profunda incompreensão do seu processo de humanização, que é dependente da ação do outro. Ao espaço público enquanto tal, não é creditada a capacidade de agir.
De todos os absurdos cometidos contra a memória histórica e cultural de Belo Horizonte, destaca-se, sobremaneira, o fim da Lagoinha, particularmente no entorno da Praça Vaz de Melo. Considerada “reduto da boemia”, a implosão daquilo que ainda restava da Lagoinha, enquanto resistência à chamada “força do progresso”, levou o jornalista e escritor Wander Piroli a comentar, num comovente lamento de quem ali criou sua identidade de homem e cidadão, e dali recolheu valioso material para sua escrita:

Não fui lá nesse dia. Não queria ver o fim melancólico e desnecessário da Praça. Em vez de tombá-la como patrimônio público, o último local mais característico da vida noturna da cidade, preferiram destruí-la. E destruí-la à toa, sem a menor necessidade. O fato é que as tais autoridades municipais foram lá, muitos curiosos para ver o espetáculo de uma implosão [...] E no meio da pequena multidão silenciosa, Lagoinha soltou o samba:
“Adeus, Lagoinha, adeus.
Estão levando o que resta de mim.
Dizem que é a força do progresso.
Um minuto eu peço
Para ver seu fim.”
Houve um minuto de silêncio após o último acorde da música. E, depois, todo mundo viu um prédio ser jogado no chão. (PIROLI: 2004, p. 19)

A importância histórica e cultural da Lagoinha não pode estar reduzida às peculiaridades excêntricas que emolduram sua existência. O seu maior valor está em sua riqueza imaterial. Ainda hoje, povoa o imaginário daqueles que não a conheceram e se fixa recorrente nas lembranças dos que viveram, mesmo que fortuitamente, seus momentos de glória e sua destruição enquanto espaço habitacional, comercial e reduto de prazeres. Símbolo de uma época, a Lagoinha acolheu a boemia e a malandragem, prostitutas e cafetões, trabalhadores e vagabundos e, uma parte significativa da intelectualidade e artistas, que ali se irmanavam na magia de suas noites.

Ali aconteceu quase tudo de importante em minha vida. Amizades, amores, e maravilhosas aventuras. A Lagoinha está inscrita em mim, mesmo não existindo mais. (SILVEIRA: 2005, p. 103)

O imaginário da Lagoinha resiste ainda na tradição oral e nas poucas obras que registram uma pesquisa que, aliada a depoimentos, resgata sua história. O imaginário resiste e se cria para os que viveram seu momento de gloria, e forjam, para aqueles que não a puderam vivenciar, uma espécie de saudade de um tempo não vivido. Se não vivido, como ter saudade? Onde, então, o desencadeador de uma memória que não há? É nesse momento que entra em cena o imaginário, com toda sua potencialidade em criar representações mentais.
O termo “imaginário” tem significados diferentes para cada um de nós. Para uns, o imaginário é tudo o que não existe; uma espécie de mundo oposto à realidade crua e concreta. Para outros, o imaginário é uma produção de devaneios de imagens fantásticas que permitem a evasão para longe das preocupações cotidianas. Alguns representam o imaginário como um resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana. Outros o veem apenas como uma manifestação de um engodo fundamental para a constituição identitária do indivíduo. (BARBIER: 1994, p. 15)
O imaginário nos parece ter como função estimular mecanismos que estabelecem uma conexão entre aquilo que existe, ou existiu, ainda que desconhecido pelo sujeito, com a capacidade criativa desse mesmo sujeito. O imaginário possui a prerrogativa de “reproduzir”, enquanto representação mental, um lugar, um objeto, uma sensação, uma pessoa. Permite “recriar” e mesmo “se transportar” para esse locus, comunicar-se com aquela pessoa, tocar determinado objeto ou mesmo “vivenciar” uma sensaçao que, embora não representem suas verdadeiras configurações, satisfaz em parte os desejos do sujeito. O imaginário, portanto, parece possibilitar a “realização” de um desejo.

O sujeito cria para si mesmo a imagem formada a partir dos cacos que foi catando aqui e ali, seja através da historiografia oficial, ou de vestígios, e aqui emprestamos o sentido que lhe confere Walter Benjamin, em obras artísticas, fotografias, depoimentos, relatos e notícias jornalísticas. Configura o seu imaginário e a ele permite vida. Como os “fatos” pertencem ao passado, é possível resgatá-los, moldando-os, conferindo a eles as cores que melhor lhe parecerem, sem com isto violentar ou ultrajar a história, mesmo que, eventualmente, acrescente, aqui e ali, novos condimentos, estes, frutos da idealização. 

O imaginário tem como aliada de primeira ordem a idealização. A Lagoinha, com seus segredos e suas tentações, se apresenta para o seu frequentador como o espaço ideal para a realização do seu prazer. Para aquele que não viveu sua plenitude, ela como se materializa no imaginário um espaço reservado quase que exclusivamente à liberdade e ao prazer. A idealização faz parte dos dois imaginários: para quem viveu e para quem apenas ouviu falar.

A transgressão e o desejo da transgressão estão no vértice mesmo desse imaginário, que se cria a partir da realidade objetiva ou da percepção subjetiva que se elabora de uma realidade não vivida. “A Cidade descansava na Lagoinha, tinha lazer na Lagoinha e transgredia, também, na Lagoinha.” (SILVEIRA: 2005, p. 131). Transgredir é violar normas, romper parâmetros que limitam a ação. O comportamento social estabelece e impõe formas de convivência.

A Lagoinha é uma coisa rara que fica na lembrança. Um tempo divertido e de muito trabalho. Música. A Lagoinha era música. Dos músicos, das lojas de instrumentos musicais, das lojas de conserto de instrumentos. (SILVEIRA: 2005, p. 115 – grifo nosso)
            
        A metaforização da Lagoinha como música, cria uma representação em que o imaginário se manifesta como idealização daquele espaço geográfico. A música, de maneira geral, está ligada ao sentimento de prazer. Na Lagoinha, portanto, a concordarmos com esse pressuposto, se concretiza esse prazer, pois, ali, “coisa rara que fica na lembrança”, o prazer se torna música e a música potencializa o prazer. Música enquanto manifestação sonora, e música enquanto elevação do espirito intimamente relacionada com a concretização do prazer.

            Lagoinha era, também, música enquanto promotora de encontro de compositores e músicos, como afirma o compositor Milton Rodrigues Horta – mais conhecido como Lagoinha:

A Lagoinha era um reduto de boêmios populares, boêmios da música. Era um ponto de encontro de compositores, onde discutíamos música. (SILVEIRA: 2005, p. 117)
           
         Os “boêmios da música”, que nos sugere encerrar uma categoria que tem na noite o seu motivo, acolhe tanto o artista, que busca inspiração para a sua crônica musical, quanto o não artista – no depoimento, categorizado como “boêmios populares”. Podemos falar de uma simbiose, em que a música se comporta como catalizadora de um encontro que reunia o homem comum – putas, malandros, vagabundos e trabalhadores – e o artista que, dialeticamente, retroalimenta aquela comunidade.  Dali retira o material para sua arte e o devolve como produto de sua inspiração.

            Sua obra, e aqui nos reportamos a Bakhtin, reflete e refrata aquele universo em que a idealização não faz parte da lembrança, ela é presente e se relaciona à sua vivência diária e sua busca do prazer.  Celso Garcia e Jair Silva, em sua música “Praça Vaz de Mello”, nos apresenta um frequentador da Lagoinha que não se constrange em abandonar a mulher em favor da cachaça e do botequim, revelando que encontra mais prazer nos braços da Lagoinha do que nos braços da mulher amada:
Não há entre nós um paralelo
Eu na Praça Vaz de Melo
E ela tão longe de mim.

E assim, de cachaça em cachaça
Vou vivendo ali na Praça
Botequim em botequim.

Sou todo da Lagoinha
Assim como ela é só minha
E eu sou seu bem querer.

Sair dali eu não posso
Este é o problema nosso
Eu prefiro te esquecer.
            É necessário ressaltar, aqui, a importância que Medeiros (2001,  p. 58) confere à Praça Vaz de Mello, “que representava a porta de entrada do bairro Lagoinha. A praça ocupava, em seu entorno, bares, motéis, cinemas, clubes de dança, restaurantes e comércio em geral”, e acrescenta que

A praça [Vaz de Mello] constituía um lugar de homens de família ou não, artistas, trabalhadores, viajantes, coronéis ou qualquer outra categoria de homens que possuía dinheiro para gastar e que, portanto, tinha acesso ao prazer. Com os espaços livres, e com grandes casas desocupadas pelos antigos moradores que se deslocaram para outros lugares, surge, no local, a instalação dos dancings com capacidade para muitas pessoas, como o Night Clube Montanhês, as casa de prostituição e os hotéis destinados aos encontros amorosos. (p. 60)

Em seu poema “Destruição”, Carlos Drummond de Andrade escreve:

            Deixaram de existir mas o existido
            continua a doer eternamente

No espetáculo Malandro, o musical, um ator caracterizado de malandro, surge à frente da cortina e, num misto de nostalgia e tristeza, dor e alegria, convida o público a uma viagem pelo imaginário da Lagoinha, com seus malandros, suas putas e seus vagabundos...

Lagoinha já não há...
Maravilhoso, Montanhês,
Guaicurus e Paquequer,
Diamantina, Bonfim,
Vaz de Mello e Mauá de Baixo
já não respondem pelos seus nomes.
Só lembrança que resta...
Houve, sim, é verdade, o tempo
do prazer em cada esquina,
em cada bar, em cada bordel.
Na voz de Nelson ou Gardel
um novo alento alimentava a noite...
Tarcízio Ildefonso, em um depoimento para o livro Lagoinha a cidade encantada, traduz aquilo que o imaginario tenta resgatar, e que, neste trabalho tentamos entender:
O encanto acabou...[1] 
Em seu tempo de maior glória, a Lagoinha reuniu também políticos de grande expressão. Apenas a título de curiosidade, é sabido que o ex-presidente Juscelino Kubistchek era assíduo frequentador do Clube Montanhês, uma das mais importantes casas noturnas da época.
[...] a Lagoinha atraía, em seus tempos áureos, grande diversidade de pessoas, uma vez que havia cabarés para todos os níveis sociais. [...] Segundo Medeiros, havia o rendez-vous, “casas discretas e requintadas que tinham ambientes para dançar, beber, quartos para o serviço sexual, ambientes para conversas íntimas” e as casas de baixo meretrício, em geral identificadas pela luz vermelha interna, onde “havia bebidas disponíveis; as mais baratas, como a cerveja e a cachaça, música, especialmente de eletrola, e quartos para os serviços sexuais”. As mulheres ficavam nas salas ou nas janelas, chamando os clientes. Em comparação com os rendez-vous, os preços eram mais baixos. Havia ainda as prostitutas que conseguiam seus clientes nas ruas e depois os conduziam aos hotéis da região que alugavam quartos para esse fim. [...] as cafetinas cumpriam seu papel de controle, proteção e mediação. [...] No Montanhês [...] os fregueses ganhavam um cartão quando entravam e, a cada dança, o cartão era perfurado. No final, as dançarinas recebiam segundo esses registros. Não havia quartos para encontros. Estes eram marcados durante as danças para acontecer em hotéis da região. (ANDRADE; TEIXEIRA: 2004, p. 145-146)
O deslocamento geográfico de um grupo, ou grupos, implica em uma reorganização da polis, em seus aspectos relacionais – aqui, entendidos em seus valores cultural, político, social, religioso, etc. Ao se estabelecer um novo espaço de convivência, pois tal estabelecimento é resultado do deslocamento, uma nova teia se tece e interfere naquele novo ambiente em que foi tecida, pois até então o grupo, ou grupos, não pertencia àquele espaço que ora ocupa. Neste sentido, é preciso considerar também o desfazimento de vínculos sociais anteriores ao momento em que houve a transferência e que se impõe, muitas vezes, de forma irreversível.
            Os diversos grupos frequentadores da Lagoinha se dispersaram pelos quatro cantos da cidade, alijados de seu espaço “natural”, e não encontraram, nem conseguiram “construir” – ou, constituir – um novo espaço que os abrigasse enquanto comunidade culturalmente unida e comungada em objetivos que os identificava enquanto tal e se reunia em torno de um modo de vida característico. A noite, a boemia, os prazeres e o lastro cultural se viram arbitrariamente interditados por interesses que ultrapassam a lógica de compreensão da “força do progresso” de que nos fala Gervásio Horta.
            Horta, ao se “despedir” da Lagoinha, afirma que “estão levando o que resta de mim”. Manifestação tão doída não nos parece que seja a mera expressão de um saudosismo piegas e antecipador de recordações que se encerram em si mesmas. O que daí podemos depreender é um grito de protesto contra a própria perda de identidade, resultante daquele deslocamento anteriormente citado; o que “estão levando” dele é o seu referencial humano e de cidadão que se socializava no encontro com pessoas afins que procuravam, num mesmo espaço geográfico e cultural, significado para suas vidas. Pois, como afirma Ricoeur, “nos lembramos daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância particular.” (2010, p. 42). E das nossas lembranças não podemos nos afastar, elas é que se afastam de nós. O Esquecimento, contraponto a Mnemosine, existe para encontrar o equilíbrio. Enquanto ele não atua, lutamos para manter viva a memória, que é o primeiro sinal do registro da história.
            A implosão da Lagoinha implicou no apagamento de uma identidade histórica e cultural da cidade, que hoje habita apenas a memória e lembrança dos que ali frequentaram. Memórias e lembranças que, por sua vez, são apagadas pelo tempo e pela ausência de alguns de seus protagonistas. Devemos entender a memória como nos ensina Le Goff (2008, p. 419):
a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.

Aos poucos, o que assistimos, é a memória cedendo espaço para uma historiografia que, por seu turno, pode ou não estar vinculada a interesses institucionais e, portanto, nos revelando apenas parte e silenciando outra parte extremamente significativa que se encontra circunscrita no âmbito dos sentimentos e na lembrança dos antigos frequentadores do reduto boêmio de Belo Horizonte. O passado, a cada dia se distancia e se esvanece pela própria ação do tempo, obnubilando nossas lembranças. Por isso é que Sarlo (2007, p. 9) adverte que
o passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum.
A boemia intelectual frequentadora da Lagoinha foi deslocada para o Edifício Maletta, na Rua da Bahia, que a recebeu e a abrigou. Nesse processo de transferência foi “obrigada” a se reorganizar e estabelecer novos vínculos em que se verificam novos estatutos comportamentais, uma vez que, circunscritos em um prédio de escritórios e apartamentos, precisaram se adaptar a uma nova realidade, tão distinta daquela anterior. O confinamento se contrapondo ao sentimento de liberdade experimentado na Praça Vaz de Melo, que não era apenas subjetivo, mas também geográfico, físico. É, então, construído um novo conceito de boemia, agora muito mais “comportado”, que se configura com uma contradição com o espirito libertário daquele que tem na noite o seu motivo. A convivência já não se faz com os mesmos grupos: no Maletta estão ausentes as putas, os malandros, os vagabundos, e o “valentão” de que nos fala Horta. Os demais grupos frequentadores da Lagoinha não são mais encontráveis: algumas pessoas, num esforço de manter vivo o espírito boêmio, permanecem em seus arredores; o restante perdeu suas referências identitárias. Não se sabe para onde eles foram. A cidade, agora higienizada, não procurou saber o destino daqueles que expulsou do seu reduto. Afinal, eram apenas putas, malandros e vagabundos.
            O crescimento da urbe ignorou os interesses materiais e imateriais daquela comunidade que ali se estruturara e construíra sua própria “fortaleza”, em que sua muralha de defesa se constituía e se representava, no imaginário de cada um, nas mesas dos bares e nas íngremes escadas dos hotéis de putas; se construíra na rede de amizades que se formou. O apagamento e o confinamento dos grupos foram alcançados como resultado do esvaziamento de um espaço que tinha na transgressão sua principal componente e razão de ser. A cidade do esquecimento forja-se, então, em uma nova topografia, que nos obriga a repetir Chico Buarque: “a cidade não mora mais em mim”.[2] Implodir a Lagoinha, não significa apenas derrubar um prédio: significa provocar uma cesura, um corte, uma interdição definitiva. Implosão é explodir pra dentro, de dentro. Entendendo a Lagoinha como um território em que suas “leis” eram determinadas pelo próprio movimento dos grupos, esvaziar esse espaço, além de servir a interesses da urbanização emergente, se prestou também para realizar uma “limpeza” e separar todos os que se propunham a contestar de alguma maneira o status quo vigente.
Muito provavelmente, uma nova higienização, agora visando mais objetivamente a Copa do Mundo 2014, resolva definitivamente o problema, expulsando alguns pequenos e localizados bolsões em que a frequência desse tipo de gente – putas, malandros e vagabundos – não seja adequada. Transita na Câmara Municipal de Belo Horizonte[3] um projeto de revitalização da Guaicurus. Para se revitalizar a Guaicurus, ainda precariamente identificada com a Lagoinha da Vaz de Melo, é preciso reconfigurá-la e, efetivar sua reconfiguração, certamente implicará em atos radicais e, talvez não possamos mais contar com a presença de alguns “hotéis” como o Montanhês, o Maravilhoso, o Rosário, o 32, entre outros que ainda resistem como espaço destinado à baixa prostituição. A alta prostituição é oficializada nas recepções dos estrelados hotéis que servem e servirão aos turistas, agora e na Copa de 2014.
Gervásio Horta, em sua música “Adeus, Lagoinha”, ergueu uma muralha de resistência em que se recusa a apagar de sua memória as lembranças do tempo e dos amigos da Praça. Registra pela história não oficial da arte, que traz como marca a subjetividade do artista e, talvez, por isso mesmo, seja de todas a mais oficial, os versos doídos e os lamentos que não se calam e não se devem calar, pois é neles que se ouve o eco da voz de todos aqueles que da noite se fizeram parceiros e na Lagoinha registraram suas histórias pessoais que, irmanadas criaram um imaginário coletivo que respondia pelo nome de Praça Vaz de Melo.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Luciana Teixeira de; TEIXEIRA, Alexandre Eustáquio. A territorialidade da prostituição em Belo Horizonte. Cadernos Metrópole, N. 11, pp. 137-157, 1º sem. 2004. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/8817 – Acesso em: 17/10/2012.
BARBIER, René. Sobre o imaginário. In: Pontos de vista: o que pensam outros especialistas. Trad. Márcia Lippincortt Ferreira da Costa e Vera de Paula. Em Aberto, Brasília, ano 14, n. 61, jan./mar. 1994. Disponível  em http://www.emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/908/814 - Acesso em 11/01/2013.
BARRETO, Letícia Cardoso. Prostituição, gênero e sexualidade: hierarquias sociais e enfrentamentos no contexto de Belo Horizonte. p. 107-110. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/npp/images/pdfs/dissertacao%20leticia%20barreto.pdf - Acesso em 22/10/2012.
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. A natureza da cidade e a natureza humana. In: _____. As cidades da cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
DRUMMOND, Roberto. Hilda Furacão. 5ª. ed. São Paulo: Siciliano, 1992.
FREIRE, Cintia Mirlene Pela. Do outro lado da linha do trem: história e intervenções no bairro Lagoinha. In: Bairros históricos de Belo Horizonte: patrimônio cultural e modos de vida. Dissertação de mestrado defendida em 2009, no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas. Cadernos de História, Belo Horizonte, v.12, n. 16, 1º sem. 2011. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/2055 - Acesso em: 17/10/2012.
GARCIA, Celso; ALVES, Jair. Praça Vaz de Melo. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=VPqINhqFF4k - Acesso em: 12/10/2012.
HORTA, Gervásio. Cacos de vida (CD livro). SICAM-SP. Nd.
_____. Amigos & canções. VICD 914. Discos Ponteio. 1996.
KRAPIVINE, V. Que é o materialismo dialéctico? Trad. G. Mélnikov. Moscou: Progresso, 1986.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 3ª. reimpressão. Trad. Irene Ferreira; Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges. Campinas, SP: Unicamp, 2008.
MEDEIROS, Regina. (org.) Permanências e mudanças em Belo Horizonte. Belo Horizonte: PUC-Minas; Autêntica, 2001.
PAIXÃO, Luiz. Malando, o musical. Cópia xerografada.
PIROLI, Wander. Lagoinha. Belo Horizonte: Conceito, 2004.
REDE GLOBO MINAS. Terra de Minas: a boemia de Belo Horizonte. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=O9D-gSuSROM Acesso em 12/10/2012.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. 3ª. reimpressão. Campinas, SP: Unicamp, 2007.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
SILVEIRA, Brenda. Lagoinha a cidade encantada. Belo Horizonte: Ed. da Autora, 2005.



[1] SILVEIRA: 2005, p. 103
[2] Cf. “Assentamento”. In: BUARQUE, Chico. Terra. 
[3] Sobre o projeto de revitalização da Rua Guaicurus, ver:  BARRETO, Letícia Cardoso. Prostituição, gênero e sexualidade: hierarquias sociais e enfrentamentos no contexto de Belo Horizonte. p. 107-110. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/npp/images/pdfs/dissertacao%20leticia%20barreto.pdf - Acesso em 22/10/2012.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

ROMANCE ENGAJADO DE EXPRESSÃO BURGUESA


  


A resistência, forjada por um preconceito ideológico, que se criou em relação à “arte engajada” ou “arte política”, ou qualquer denominação que se dê a uma arte voltada para a defesa dos interesses dos trabalhadores, contrapondo-se, portanto, aos interesses da burguesia, favoreceu ao longo dos anos – particularmente, durante e pós-guerra fria – a ideia perversa de que a arte para ser boa precisa afastar-se das questões de classe. Essa postura considera a arte política como sendo arte menor; arte engajada é sempre arremedo, pois traz a marca do radicalismo e fanatismo político.

Jean Roche entende que “romance engajado [é] aquele em que o autor baseia sua criação sobre o seu credo, em que ele dá publicamente o testemunho desse credo, chegando às vezes até a pregação. O romance engajado é, portanto, um ato”. Partindo desse entendimento, julgamos correto dizer que um romance, seja ele proletário, seja ele burguês, é engajado se defende os interesses de sua classe. Porém, não se diz que a arte burguesa é uma arte engajada. Tal epíteto se aplica apenas à arte que defende interesses da classe trabalhadora, de esquerda, “socializante” ou “comunizante”. Percebemos, portanto, uma clara manipulação ideológica por trás de tal postura, já que alimenta uma discriminação a uma literatura, ou qualquer outra forma de arte, que seja contra os interesses da classe dominante, no caso, a burguesia. 

O romantismo surge no bojo das novas relações políticas que se estabelecem com a ascensão burguesa, que é resultante do capitalismo emergente. Sem essa compreensão, qualquer análise estaria sujeita a um reducionismo histórico, considerando apenas o caráter estrutural do romantismo – a forma como determinante do gênero/estilo. A luta de classes – burguesia versus aristocracia – vai se refletir nos diversos campos das relações humanas; o saber e o fazer se alimentam de nova ideologia. A arte não será exceção: o rompimento com os parâmetros estéticos impostos pelo classicismo reflete muito bem esse conflito. O romance surge desse confronto e se impõe como alternativa de gênero, refletindo os anseios e conceitos da nova classe que se tornará hegemônica em breve tempo. No romance encontramos a representação do burguês, que até então não se via refletido nas obras de arte que eram exclusivamente dedicadas à aristocracia, seja na dramática, na lírica ou nas artes pictóricas, bem como na música.

O romance vai seguir os ditames burgueses buscando uma maior aproximação com essa nova realidade que não responde mais aos interesses aristocráticos, portanto, são outros e novos valores que serão acentuados. Até mesmo a separação grotesco/sublime estratificava as classes, pois não permitia acesso ao homem burguês, que se vê espremido no entremeio da dicotomia que sempre prevaleceu na arte: o sublime para a nobreza; o grotesco, para o populacho, detentor de todos os vícios, portanto, motivo de galhofas e críticas ferinas. Não havia, nesse processo, lugar reservado ao burguês, que ocupava gradativamente outros espaços sociais, políticos e econômicos.


O surgimento do romance está para a literatura assim como o drama está para o teatro. O verso trágico permite ao herói uma elevação, uma proximidade divina que a prosa fará trazer de volta à realidade; o herói prosaico é o homem comum, o homem que tem suas obrigações cotidianas. Enfrentar os grandes obstáculos não é o mesmo que tratar os conflitos no nível puramente humano. O Olimpo cede espaço ao aconchego do lar. Embora enfrentando todos os conflitos, pois sem eles não há narrativa nem ação dramática, o herói não-titânico tem a possibilidade de superação, condição impensável para o herói trágico. A inevitabilidade da tragédia – ou, se preferirem, o destino –, que a partir de Shakespeare era obra construída pelo próprio homem, permite ao novo herói (do drama) a superação dos seus obstáculos, podendo ou não ser vítima das relações conflituosas em que se encontra. Existe uma possibilidade de escape.

O drama opera esse deslocamento da tragédia, trazendo-a para mais próximo do homem, colocando-o no mesmo nível dos personagens. Herda a prosa shakespeariana, já utilizada conjuntamente com o verso, rompe com as regras das três unidades e o conceito de sublime e grotesco. Diderot, através de peças como O pai de família ou O filho natural, inaugura esse novo gênero que traz para dentro da cena o herói burguês de carne e osso, como representante de todos os anseios e necessidades da classe que ascendia ao poder.


A epopéia, ao contrário do teatro, não permite que o personagem se manifeste em sua plenitude. A grandiosidade dos versos retira do herói a possibilidade de aproximação com a realidade. A sua distância é estabelecida, não só pelos seus feitos, mas também por essa linguagem que não corresponde à do homem comum. A narrativa épica está mais preocupada com os acontecimentos do que como esses acontecimentos interferem no homem e no que homem pode fazer para modificar essa realidade. Os conflitos se estabelecem, prioritariamente, no encadeamento de obstáculos e sua superação. Quanto maior o obstáculo maior a dimensão trágica do herói. A esse herói não é permitida a hesitação, pois significaria fraqueza. Quando Aquiles se afasta da guerra, o seu motivo não é o medo; suas razões são também grandiosas; e, mesmo o medo, se existir, será tão ou mais grandioso.


O herói da tragédia ou da épica não corresponde aos anseios do homem burguês, pois não é o seu representante ideal. Forjado em uma nova época, sob novas contradições, com seu pensamento voltado para o conflito de classes que se fazia presente, a burguesia precisa alijar a aristocracia de todos os espaços, sobretudo no campo da arte, onde a sua representação se faria sentir para ocupar o imaginário de todos. O teatro já estava no caminho aberto com o advento do drama. Era preciso, agora, ocupar também a literatura com a invenção de um novo modo de se contar histórias.


O romance que, segundo Bakhtin, é um gênero em construção, apodera-se de características da épica e do dramático, estabelecendo uma síntese estética. Da épica, herda a narrativa; do drama, a aproximação com o homem comum e a forma em prosa. Lukács já nos havia falado da “epopéia burguesa”. Forma e fundo rearticulados e irmanados, ocupando um novo espaço onde o modo de produção capitalista determina os parâmetros estéticos. Os conflitos dos personagens serão agora analisados sob a égide da nova ideologia reinante, já que são representações do mundo burguês.

É difícil acreditar que uma obra burguesa vá defender interesses que não sejam os da burguesia. O modo de vida burguês vai ocupar todas as páginas e nelas, se refletindo e refratando, alicerçar sua ideologia. O individualismo toma o lugar da história e da fábula cantadas nas epopéias clássicas. O herói coletivo dá lugar ao individuo. A verdade passa a ser uma questão individual, pois como afirma Ian Watt, o romance é “a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora.”


Ao aproximar-se da realidade, o romance exalta o indivíduo em detrimento à verdade coletiva. E nem poderia ser de outra maneira. O capitalismo, como reflexo de classe, busca anular o coletivo. O valor individual destaca aqueles que são “superiores” na escala social. A lei da sobrevivência darwiniana se molda na lógica da superioridade desenvolvida pelo capitalismo. O individuo superior sobrevive aos outros que não conseguem lhe fazer frente. No capitalismo não há lugar para os “fracos”. O fortalecimento do individual ganha no romance um forte aliado. Watt acrescenta que “desde o Renascimento havia uma tendência crescente a substituir a tradição coletiva pela experiência individual como árbitro decisivo da realidade; e essa transição constituiria uma parte importante do panorama cultural em que surgiu o romance".



Negar ao romance burguês o caráter “engajado” é negar sua própria essência, que se manifesta na defesa intransigente da ideologia burguesa, seja na valorização do individuo em detrimento do coletivo, seja na manutenção do status quo de seus personagens, seja na configuração das relações inter-personagens, seja no não questionamento do modelo econômico que se sobrepõe às relações sociais.