Os valores históricos e culturais
se transformam a partir da luta de suas contradições internas. Por outro lado,
devemos entender que a unidade dos contrários consiste na reciprocidade de
determinação, o que indica que os contrários de uma coisa não conseguem viver
um sem o outro, ainda que em constante luta. Essa luta é que deverá levar à
transformação da quantidade em qualidade. A negação dialética nos ensina que no
processo de transformação e superação do velho pelo novo, não há exclusão
absoluta:
o novo nunca destrói o velho totalmente. A
negação dialética conserva o que o velho tem de positivo, isto é, o novo
enriquece-se com o melhor que o desenvolvimento anterior tinha. A negação do
que é caduco é inevitável para conservar os elementos sãos e progressistas e
criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento. (KRAPIVINE: 1986, p. 177)
Uma cidade não se constrói em seu presente, apenas. O que se
faz hoje traz a marca do passado, enquanto um conjunto de saberes e fazeres acumulados,
e aponta uma perspectiva de futuro. O que cabe ao presente é organizar um
memorial em que esses saberes e fazeres se prestem como referência às gerações
que darão continuidade ao nosso sentido de cidadãos inseridos no contexto de
uma polis. Neste sentido, o processo
nos parece bastante simples: conhecer o passado para entender o presente e
projetar o futuro. Brandão (2009, p. 57) esclarece que
Para reintegrar a cidade no tempo, a
prospecção da cidade ideal, utópica e modelar suscita, simetricamente, uma
pesquisa por seu passado, por sua identidade histórica e pela sua marca
fundante. Dai ser comum esse avanço para o futuro ser acompanhado também por um
avanço para o passado.
Passado,
presente e futuro se mesclam, se contradizem e se superam, visando sempre a
possibilidade de criar condições para a melhoria da qualidade de vida dos
cidadãos. E qualidade de vida não se restringe aos valores materiais; os
saberes e fazeres citados anteriormente fazem parte de um imenso e
incomensurável valor imaterial, e deles, nenhuma sociedade minimamente
organizada pode arbitrariamente se dispor ou ignorar, pois
A cidade é o lugar doador de sentido à existência
individual e do aprimoramento de nosso corpo, nosso espírito e dos usos e
hábitos de nosso tempo. Seu espaço, apesar dos tempos atuais, não é mera
extensão ou somatória dos espaços privados, a sua natureza, sentido e função
são completamente diversos e, por excelência, é nele que a “humanidade do
homem” se forma. [...] É certo que a polis
deve abrigar o espaço do privado, onde constituímos nossa vida particular; mas
também é certo que a necessidade de constituição de um mundo comum e político
apresentou-se e apresenta-se, continuamente, como o local onde o individuo se
reconhece dentro de uma tradição, conquista uma identidade, se conhece e se
constitui como um eu a dialogar com um outro. Esse outro não é apenas o outro
fático com o qual cruzo nas ruas, mas também o outro do tempo, os que nos
precederam e as gerações futuras que nos seguirão. Estes também são nossos
interlocutores, e daí a cidade ser também o espaço da memória e a memória faz
parte de sua natureza. (BRANDÃO: 2006, p. 61)
Uma cidade que surge de um projeto urbanístico, com o
intuito de ser a capital do Estado, como foi o caso de Belo Horizonte, não
pode, ao nosso juízo, cometer o erro de circunscrevê-la no espaço exíguo da
Avenida do Contorno (originalmente chamada 11 de Dezembro). Não se pensou na
possibilidade de aquela cidade de papel, prevista para atingir 100 mil
habitantes somente quando completasse 100 anos, se transformar em uma
metrópole. A cidade foi invadida, seu projeto superado, e a expansão se deu de
forma desordenada e descontrolada; os “arranjos” feitos a partir da constatação
de que a cidade não estava preparada para essa nova realidade, repercutiu nas dificuldades que enfrentamos ainda hoje em
função de seu mau planejamento.
O bairro Lagoinha nasceu junto à planejada cidade de Belo Horizonte, no
final do século XIX. Teve como principais habitantes imigrantes italianos,
portugueses, turcos, espanhóis, migrantes do interior de Minas Gerais e de
outros estados brasileiros. [...] Alguns escritos demonstram que os primeiros
sinais de ocupação do bairro remontam ao antigo Curral Del Rey, datado do
início da ocupação territorial da região de Minas Gerais. Classificada como
área suburbana – fora dos limites da Avenida do Contorno, que demarcavam o
cinturão urbano, embora em área contígua à urbana –, foi sempre um típico
bairro de periferia, hoje qualificada de área pericentral, tendo sido habitado
pelos trabalhadores encarregados da construção da cidade. Nasceu a partir das
colônias agrícolas Carlos Prates e Américo Werneck, que foram incorporadas
formalmente à zona suburbana de Belo Horizonte, nas décadas de 1910 e 1920.
(FREIRE: 2011, p. 111-112)
A relação do cidadão com os espaços
públicos de sua cidade não se estabelece a partir de uma condição física e/ou
geográfica apenas; o espaço público, sendo espaço de convivência, torna-se,
portanto, um espaço vivo, pulsante, ponto de encontro e referência de pessoas
que se identificam e buscam cumplicidade com as praças, parques e jardins que
os acolhe, estabelecendo vínculos que se formam e sobrevivem ao tempo.
Acolhimento e cumplicidade: dois
motivos que se traduzem em qualidade de vida e construção da cidadania que se
forja na convivência que se constrói e cultiva; via de mão dupla que se
completa na doação e no respeito.
A humanização do espaço público
somente se efetiva em sua concreta utilização pela comunidade, que é o dínamo
propulsor de sua função social. O espaço público inacessível ou aquele com o
qual a comunidade não criou seus laços de afeto e prazer, não existe em sua
função primeira que é acolher a pessoa humana e doar o que lhe é permitido. A
humanização, portanto, é resultado de sua ocupação, e somente a ela pertence.
Sem ocupação não há humanização.
Por outro lado, tentar creditar ao
espaço público de uma capacidade de ação própria e voluntária, nos parece
revelar uma profunda incompreensão do seu processo de humanização, que é
dependente da ação do outro. Ao espaço público enquanto tal, não é creditada a
capacidade de agir.
De todos os absurdos cometidos contra a memória histórica e
cultural de Belo Horizonte, destaca-se, sobremaneira, o fim da Lagoinha,
particularmente no entorno da Praça Vaz de Melo. Considerada “reduto da
boemia”, a implosão daquilo que ainda restava da Lagoinha, enquanto resistência
à chamada “força do progresso”, levou o jornalista e escritor Wander Piroli a
comentar, num comovente lamento de quem ali criou sua identidade de homem e
cidadão, e dali recolheu valioso material para sua escrita:
Não fui lá nesse dia. Não
queria ver o fim melancólico e desnecessário da Praça. Em vez de tombá-la como
patrimônio público, o último local mais característico da vida noturna da
cidade, preferiram destruí-la. E destruí-la à toa, sem a menor necessidade. O
fato é que as tais autoridades municipais foram lá, muitos curiosos para ver o
espetáculo de uma implosão [...] E no meio da pequena multidão silenciosa,
Lagoinha soltou o samba:
“Adeus, Lagoinha, adeus.
Estão levando o que resta de
mim.
Dizem que é a força do
progresso.
Um minuto eu peço
Para ver seu fim.”
Houve um minuto de silêncio
após o último acorde da música. E, depois, todo mundo viu um prédio ser jogado
no chão. (PIROLI: 2004, p. 19)
A importância histórica e
cultural da Lagoinha não pode estar reduzida às peculiaridades excêntricas que
emolduram sua existência. O seu maior valor está em sua riqueza imaterial.
Ainda hoje, povoa o imaginário daqueles que não a conheceram e se fixa recorrente
nas lembranças dos que viveram, mesmo que fortuitamente, seus momentos de
glória e sua destruição enquanto espaço habitacional, comercial e reduto de
prazeres. Símbolo de uma época, a Lagoinha acolheu a boemia e a malandragem,
prostitutas e cafetões, trabalhadores e vagabundos e, uma parte significativa
da intelectualidade e artistas, que ali se irmanavam na magia de suas noites.
Ali aconteceu quase tudo de
importante em minha vida. Amizades, amores, e maravilhosas aventuras. A
Lagoinha está inscrita em mim, mesmo não existindo mais. (SILVEIRA: 2005, p. 103)
O imaginário da Lagoinha resiste ainda na tradição oral e
nas poucas obras que registram uma pesquisa que, aliada a depoimentos, resgata
sua história. O imaginário resiste e se cria para os que viveram seu momento de
gloria, e forjam, para aqueles que não a puderam vivenciar, uma espécie de
saudade de um tempo não vivido. Se não vivido, como ter saudade? Onde, então, o
desencadeador de uma memória que não há? É nesse momento que entra em cena o imaginário,
com toda sua potencialidade em criar representações mentais.
O termo “imaginário” tem significados
diferentes para cada um de nós. Para uns, o imaginário é tudo o que não existe;
uma espécie de mundo oposto à realidade crua e concreta. Para outros, o
imaginário é uma produção de devaneios de imagens fantásticas que permitem a
evasão para longe das preocupações cotidianas. Alguns representam o imaginário
como um resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana.
Outros o veem apenas como uma manifestação de um engodo fundamental para a
constituição identitária do indivíduo. (BARBIER: 1994, p. 15)
O imaginário nos parece ter como função estimular mecanismos
que estabelecem uma conexão entre aquilo que existe, ou existiu, ainda que desconhecido
pelo sujeito, com a capacidade criativa desse mesmo sujeito. O imaginário
possui a prerrogativa de “reproduzir”, enquanto representação mental, um lugar,
um objeto, uma sensação, uma pessoa. Permite “recriar” e mesmo “se transportar”
para esse locus, comunicar-se com
aquela pessoa, tocar determinado objeto ou mesmo “vivenciar” uma sensaçao que,
embora não representem suas verdadeiras configurações, satisfaz em parte os
desejos do sujeito. O imaginário, portanto, parece possibilitar a “realização”
de um desejo.
O sujeito cria para si mesmo a imagem formada a partir dos
cacos que foi catando aqui e ali, seja através da historiografia oficial, ou de
vestígios, e aqui emprestamos o
sentido que lhe confere Walter Benjamin, em obras artísticas, fotografias,
depoimentos, relatos e notícias jornalísticas. Configura o seu imaginário e a
ele permite vida. Como os “fatos” pertencem ao passado, é possível resgatá-los,
moldando-os, conferindo a eles as cores que melhor lhe parecerem, sem com isto
violentar ou ultrajar a história, mesmo que, eventualmente, acrescente, aqui e
ali, novos condimentos, estes, frutos da idealização.
O imaginário tem como aliada de primeira ordem a
idealização. A Lagoinha, com seus segredos e suas tentações, se apresenta para
o seu frequentador como o espaço ideal para a realização do seu prazer. Para
aquele que não viveu sua plenitude, ela como se materializa no imaginário um
espaço reservado quase que exclusivamente à liberdade e ao prazer. A
idealização faz parte dos dois imaginários: para quem viveu e para quem apenas
ouviu falar.
A transgressão e o desejo da transgressão estão no vértice
mesmo desse imaginário, que se cria a partir da realidade objetiva ou da
percepção subjetiva que se elabora de uma realidade não vivida. “A Cidade
descansava na Lagoinha, tinha lazer na Lagoinha e transgredia, também, na
Lagoinha.” (SILVEIRA: 2005, p. 131). Transgredir é violar normas, romper
parâmetros que limitam a ação. O comportamento social estabelece e impõe formas
de convivência.
A Lagoinha é uma coisa rara
que fica na lembrança. Um tempo divertido e de muito trabalho. Música. A Lagoinha era música. Dos músicos, das
lojas de instrumentos musicais, das lojas de conserto de instrumentos.
(SILVEIRA: 2005, p. 115 – grifo nosso)
A
metaforização da Lagoinha como música, cria uma representação em que o
imaginário se manifesta como idealização daquele espaço geográfico. A música,
de maneira geral, está ligada ao sentimento de prazer. Na Lagoinha, portanto, a
concordarmos com esse pressuposto, se concretiza esse prazer, pois, ali, “coisa
rara que fica na lembrança”, o prazer se torna música e a música potencializa o
prazer. Música enquanto manifestação sonora, e música enquanto elevação do
espirito intimamente relacionada com a concretização do prazer.
Lagoinha
era, também, música enquanto promotora de encontro de compositores e músicos,
como afirma o compositor Milton Rodrigues Horta – mais conhecido como Lagoinha:
A Lagoinha era um reduto de boêmios populares, boêmios
da música. Era um ponto de encontro de compositores, onde discutíamos música.
(SILVEIRA: 2005, p. 117)
Os
“boêmios da música”, que nos sugere encerrar uma categoria que tem na noite o
seu motivo, acolhe tanto o artista, que busca inspiração para a sua crônica
musical, quanto o não artista – no depoimento, categorizado como “boêmios
populares”. Podemos falar de uma simbiose, em que a música se comporta como
catalizadora de um encontro que reunia o homem comum – putas, malandros,
vagabundos e trabalhadores – e o artista que, dialeticamente, retroalimenta
aquela comunidade. Dali retira o
material para sua arte e o devolve como produto de sua inspiração.
Sua obra, e aqui nos reportamos a
Bakhtin, reflete e refrata aquele universo em que a idealização não faz parte
da lembrança, ela é presente e se relaciona à sua vivência diária e sua busca
do prazer. Celso Garcia e Jair Silva,
em sua música “Praça Vaz de Mello”, nos apresenta um frequentador da Lagoinha
que não se constrange em abandonar a mulher em favor da cachaça e do botequim,
revelando que encontra mais prazer nos braços da Lagoinha do que nos braços da
mulher amada:
Não
há entre nós um paralelo
Eu na Praça Vaz de Melo
E ela tão longe de mim.
E assim, de cachaça em cachaça
Vou vivendo ali na Praça
Botequim em botequim.
Sou todo da Lagoinha
Assim como ela é só minha
E eu sou seu bem querer.
Sair dali eu não posso
Este é o problema nosso
Eu prefiro te esquecer.
Eu na Praça Vaz de Melo
E ela tão longe de mim.
E assim, de cachaça em cachaça
Vou vivendo ali na Praça
Botequim em botequim.
Sou todo da Lagoinha
Assim como ela é só minha
E eu sou seu bem querer.
Sair dali eu não posso
Este é o problema nosso
Eu prefiro te esquecer.
É
necessário ressaltar, aqui, a importância que Medeiros (2001, p. 58) confere à Praça Vaz de Mello, “que
representava a porta de entrada do bairro Lagoinha. A praça ocupava, em seu
entorno, bares, motéis, cinemas, clubes de dança, restaurantes e comércio em
geral”, e acrescenta que
A praça [Vaz de Mello]
constituía um lugar de homens de família ou não, artistas, trabalhadores,
viajantes, coronéis ou qualquer outra categoria de homens que possuía dinheiro
para gastar e que, portanto, tinha acesso ao prazer. Com os espaços livres, e
com grandes casas desocupadas pelos antigos moradores que se deslocaram para
outros lugares, surge, no local, a instalação dos dancings com capacidade para muitas pessoas, como o Night Clube
Montanhês, as casa de prostituição e os hotéis destinados aos encontros
amorosos. (p. 60)
Em seu poema “Destruição”, Carlos
Drummond de Andrade escreve:
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente
continua a doer eternamente
No espetáculo Malandro, o musical, um ator
caracterizado de malandro, surge à frente da cortina e, num misto de nostalgia
e tristeza, dor e alegria, convida o público a uma viagem pelo imaginário da
Lagoinha, com seus malandros, suas putas e seus vagabundos...
Lagoinha já não há...
Maravilhoso, Montanhês,
Guaicurus e Paquequer,
Diamantina, Bonfim,
Vaz de Mello e Mauá de Baixo
já não respondem pelos seus nomes.
Só lembrança que resta...
Houve, sim, é verdade, o tempo
do prazer em cada esquina,
em cada bar, em cada bordel.
Na voz de Nelson ou Gardel
um novo alento alimentava a noite...
Tarcízio Ildefonso, em um depoimento para o livro Lagoinha a cidade encantada, traduz
aquilo que o imaginario tenta resgatar, e que, neste trabalho tentamos
entender:
O encanto acabou...[1]
Em seu tempo de maior glória, a
Lagoinha reuniu também políticos de grande expressão. Apenas a título de
curiosidade, é sabido que o ex-presidente Juscelino Kubistchek era assíduo
frequentador do Clube Montanhês, uma das mais importantes casas noturnas da
época.
[...] a Lagoinha atraía, em seus tempos áureos,
grande diversidade de pessoas, uma vez que havia cabarés para todos os níveis
sociais. [...] Segundo Medeiros, havia o rendez-vous, “casas discretas e requintadas que tinham ambientes para dançar,
beber, quartos para o serviço sexual, ambientes para conversas íntimas” e as
casas de baixo meretrício, em geral identificadas pela luz vermelha interna,
onde “havia bebidas disponíveis; as mais baratas, como a cerveja e a cachaça,
música, especialmente de eletrola, e quartos para os serviços sexuais”. As
mulheres ficavam nas salas ou nas janelas, chamando os clientes. Em comparação
com os rendez-vous, os preços eram mais baixos. Havia ainda as prostitutas que
conseguiam seus clientes nas ruas e depois os conduziam aos hotéis da região
que alugavam quartos para esse fim. [...] as cafetinas cumpriam seu papel de
controle, proteção e mediação. [...] No Montanhês [...] os fregueses ganhavam
um cartão quando entravam e, a cada dança, o cartão era perfurado. No final, as
dançarinas recebiam segundo esses registros. Não havia quartos para encontros.
Estes eram marcados durante as danças para acontecer em hotéis da região. (ANDRADE;
TEIXEIRA: 2004, p. 145-146)
O
deslocamento geográfico de um grupo, ou grupos, implica em uma reorganização da
polis, em seus aspectos relacionais –
aqui, entendidos em seus valores cultural, político, social, religioso, etc. Ao
se estabelecer um novo espaço de convivência, pois tal estabelecimento é
resultado do deslocamento, uma nova teia se tece e interfere naquele novo
ambiente em que foi tecida, pois até então o grupo, ou grupos, não pertencia
àquele espaço que ora ocupa. Neste sentido, é preciso considerar também o
desfazimento de vínculos sociais anteriores ao momento em que houve a
transferência e que se impõe, muitas vezes, de forma irreversível.
Os diversos grupos frequentadores da
Lagoinha se dispersaram pelos quatro cantos da cidade, alijados de seu espaço
“natural”, e não encontraram, nem conseguiram “construir” – ou, constituir – um
novo espaço que os abrigasse enquanto comunidade culturalmente unida e
comungada em objetivos que os identificava enquanto tal e se reunia em torno de
um modo de vida característico. A noite, a boemia, os prazeres e o lastro
cultural se viram arbitrariamente interditados por interesses que ultrapassam a
lógica de compreensão da “força do progresso” de que nos fala Gervásio Horta.
Horta, ao se “despedir” da Lagoinha,
afirma que “estão levando o que resta de mim”. Manifestação tão doída não nos
parece que seja a mera expressão de um saudosismo piegas e antecipador de
recordações que se encerram em si mesmas. O que daí podemos depreender é um
grito de protesto contra a própria perda de identidade, resultante daquele
deslocamento anteriormente citado; o que “estão levando” dele é o seu
referencial humano e de cidadão que se socializava no encontro com pessoas
afins que procuravam, num mesmo espaço geográfico e cultural, significado para
suas vidas. Pois, como afirma Ricoeur, “nos lembramos daquilo que fizemos,
experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância particular.” (2010,
p. 42). E das nossas lembranças não podemos nos afastar, elas é que se afastam
de nós. O Esquecimento, contraponto a
Mnemosine, existe para encontrar o
equilíbrio. Enquanto ele não atua, lutamos para manter viva a memória, que é o
primeiro sinal do registro da história.
A implosão da Lagoinha implicou no
apagamento de uma identidade histórica e cultural da cidade, que hoje habita
apenas a memória e lembrança dos que ali frequentaram. Memórias e lembranças
que, por sua vez, são apagadas pelo tempo e pela ausência de alguns de seus
protagonistas. Devemos entender a memória como nos ensina Le Goff (2008, p.
419):
a memória, como propriedade
de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de
funções psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas.
Aos poucos,
o que assistimos, é a memória cedendo espaço para uma historiografia que, por
seu turno, pode ou não estar vinculada a interesses institucionais e, portanto,
nos revelando apenas parte e silenciando outra parte extremamente significativa
que se encontra circunscrita no âmbito dos sentimentos e na lembrança dos
antigos frequentadores do reduto boêmio de Belo Horizonte. O passado, a cada
dia se distancia e se esvanece pela própria ação do tempo, obnubilando nossas
lembranças. Por isso é que Sarlo (2007, p. 9) adverte que
o passado é sempre conflituoso. A ele se
referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história
consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que
não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de
justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil
entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum.
A boemia intelectual
frequentadora da Lagoinha foi deslocada para o Edifício Maletta, na Rua da
Bahia, que a recebeu e a abrigou. Nesse processo de transferência foi
“obrigada” a se reorganizar e estabelecer novos vínculos em que se verificam
novos estatutos comportamentais, uma vez que, circunscritos em um prédio de
escritórios e apartamentos, precisaram se adaptar a uma nova realidade, tão
distinta daquela anterior. O confinamento se contrapondo ao sentimento de
liberdade experimentado na Praça Vaz de Melo, que não era apenas subjetivo, mas
também geográfico, físico. É, então, construído um novo conceito de boemia,
agora muito mais “comportado”, que se configura com uma contradição com o
espirito libertário daquele que tem na noite o seu motivo. A convivência já não
se faz com os mesmos grupos: no Maletta estão ausentes as putas, os malandros,
os vagabundos, e o “valentão” de que nos fala Horta. Os demais grupos
frequentadores da Lagoinha não são mais encontráveis: algumas pessoas, num
esforço de manter vivo o espírito boêmio, permanecem em seus arredores; o
restante perdeu suas referências identitárias. Não se sabe para onde eles
foram. A cidade, agora higienizada, não procurou saber o destino daqueles que
expulsou do seu reduto. Afinal, eram apenas putas, malandros e vagabundos.
O crescimento da urbe ignorou os interesses materiais e
imateriais daquela comunidade que ali se estruturara e construíra sua própria
“fortaleza”, em que sua muralha de defesa se constituía e se representava, no
imaginário de cada um, nas mesas dos bares e nas íngremes escadas dos hotéis de
putas; se construíra na rede de amizades que se formou. O apagamento e o
confinamento dos grupos foram alcançados como resultado do esvaziamento de um
espaço que tinha na transgressão sua principal componente e razão de ser. A
cidade do esquecimento forja-se, então, em uma nova topografia, que nos obriga
a repetir Chico Buarque: “a cidade não mora mais em mim”.[2] Implodir
a Lagoinha, não significa apenas derrubar um prédio: significa provocar uma
cesura, um corte, uma interdição definitiva. Implosão é explodir pra dentro, de
dentro. Entendendo a Lagoinha como um território em que suas “leis” eram
determinadas pelo próprio movimento dos grupos, esvaziar esse espaço, além de
servir a interesses da urbanização emergente, se prestou também para realizar
uma “limpeza” e separar todos os que se propunham a contestar de alguma maneira
o status quo vigente.
Muito provavelmente, uma nova
higienização, agora visando mais objetivamente a Copa do Mundo 2014, resolva
definitivamente o problema, expulsando alguns pequenos e localizados bolsões em
que a frequência desse tipo de gente – putas, malandros e vagabundos – não seja
adequada. Transita na Câmara Municipal de Belo Horizonte[3] um
projeto de revitalização da Guaicurus. Para se revitalizar a Guaicurus, ainda
precariamente identificada com a Lagoinha da Vaz de Melo, é preciso
reconfigurá-la e, efetivar sua reconfiguração, certamente implicará em atos
radicais e, talvez não possamos mais contar com a presença de alguns “hotéis”
como o Montanhês, o Maravilhoso, o Rosário, o 32, entre
outros que ainda resistem como espaço destinado à baixa prostituição. A alta
prostituição é oficializada nas recepções dos estrelados hotéis que servem e
servirão aos turistas, agora e na Copa de 2014.
Gervásio
Horta, em sua música “Adeus, Lagoinha”, ergueu uma muralha de resistência em
que se recusa a apagar de sua memória as lembranças do tempo e dos amigos da
Praça. Registra pela história não oficial da arte, que traz como marca a
subjetividade do artista e, talvez, por isso mesmo, seja de todas a mais
oficial, os versos doídos e os lamentos que não se calam e não se devem calar,
pois é neles que se ouve o eco da voz de todos aqueles que da noite se fizeram
parceiros e na Lagoinha registraram suas histórias pessoais que, irmanadas
criaram um imaginário coletivo que respondia pelo nome de Praça Vaz de Melo.
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[1]
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[2]
Cf. “Assentamento”. In: BUARQUE, Chico. Terra.
[3] Sobre o projeto de revitalização da Rua Guaicurus,
ver: BARRETO, Letícia Cardoso. Prostituição, gênero e sexualidade: hierarquias sociais e enfrentamentos no
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