quarta-feira, 23 de novembro de 2011

MARTINS PENA E O MELODRAMA




            O melodrama é o gênero teatral que mais sofreu preconceitos ao longo de sua história, e sofre ainda, seja por sua estrutura formal de efeitos mirabolantes e absurdos ou pelo conteúdo, muitas vezes, inverossímil de seus enredos ou do comportamento psicológico de suas personagens. A “má fama do melodrama”, para aproveitar a expressão usada por Eric Bentley, pode ser melhor explicada quando se percebe a sua destinação, já que a tragédia fala ao coração, a comédia à mente e o melodrama aos olhos (entenda-se, glândulas lacrimais).

“... a bondade perseguida pela maldade, um herói perseguido por um vilão, heróis e heroínas perseguidos por um mundo perverso”, - Eric Bentley resume de maneira extraordinária a estrutura dramática do melodrama e é exatamente essa estrutura que se estabelece a partir da eterna luta entre o bem e o mal ou, se preferirem, e talvez seja até mais adequado no nosso caso, do mal contra o bem, que vamos encontrar na singular obra “dramática” daquele que é considerado o “Molière brasileiro”, Martins Pena (Rio, 1815 – Lisboa, 1848).

Poucos conhecem os dramas escritos por Martins Pena. Existe apenas uma edição, datada de 1956, organizada por Darcy Damasceno e Maria Filgueiras que, com muita sorte, pode ser encontrada em algum sebo, fora isso, absolutamente nada! E pouco também foi escrito sobre essa obra, e os destaques que merece em um ou dois livros sobre a História do Teatro Brasileiro, são severamente duros em suas poucas linhas que se dedicam mais a resumir o enredo do que fazer uma avaliação crítica de cada uma das peças:
Fernando ou O Cinto Acusador (1837?)
D. João de Lira ou O Repto (1838)
D. Leonor Teles (1839)
Itaminda ou O Guerreiro de Tupã (1840)
Vitiza, O Nero de Espanha (1840)
Drama Sem Título (incompleto - 1847?)

            Seis obras, sendo uma delas apenas fragmento, de um valor histórico e cultural surpreendente, pois nos revelam Martins Pena investigando um gênero ao qual pouco se dedicaria ao longo de sua brevíssima carreira. Peças praticamente inéditas, pois apenas Vitiza mereceu uma encenação no Teatro São Pedro, em setembro de 1841, “sob um silêncio geral da crítica” e Fernando foi transformada em comédia por um grupo paulista há alguns anos. Para Sábato Magaldi “a falta de uma verdadeira linguagem trágica reduziu muito o alcance dessas experiências”, no que temos que discordar do grande crítico brasileiro: Martins Pena não quis escrever tragédias, isso é bastante claro, sua intenção era escrever melodramas, basta observamos as técnicas utilizadas, que não são técnicas da tragédia. Discordar também quando ele afirma que a montagem dos dramas hoje “não representaria outro mérito senão o de mostrar ao público um documento histórico”.

Martins Pena foi, não em todos que escreveu naturalmente, um bom autor de melodramas. Dominava sua estrutura e, em suas peças mais bem acabadas, vamos verificar, sim, um bom uso dessas técnicas. E mais, a sobrevivência e permanência do melodrama nos dão elementos para acreditar que suas peças são mais do que documentos históricos. Basta ver a produção da telenovela brasileira, que em termos melodramáticos fica devendo muito pouco às mexicanas, obviamente não estamos discutindo as qualidades técnicas, onde a produção brasileira é infinitamente superior. O melodrama está presente em praticamente todos os capítulos das telenovelas e ouso afirmar que isso lhes garante um espantoso índice de audiência. O sofrimento é um bom marcador de pontos no “ibope”.

          O melodrama não se importa em fazer concessões, sejam elas quais forem, para se conseguir um bom efeito. Se no desenvolvimento do enredo as coisas acontecem porque têm que acontecer, no campo comportamental, vamos encontrar personagens absolutamente manipuladas, pois o maniqueísmo é dominante e a bipolaridade entre as personagens se estabelece como impulsionador da trama: o vício e a virtude se confrontam, e as personagens não possuem contradições, movem-se no seu limite mínimo e sua ação fica restrita a momentos que alternam “a extrema desolação e desespero, com outros de serenidade ou de euforia, fazendo a mudança com espantosa velocidade”. A moral das personagens está pré-definida “como forma de indicar a interpretação pretendida, e o faz com clareza inequívoca”. E essa ausência de contradições determina o nível de obstinação da personagem, seja o vilão ou o mocinho, que é absoluta, não restando nenhuma dúvida do que se pretende fazer. Lourenço Da Cunha em D. Leonor Teles, no dá a exata dimensão do que isso significa, quando afirma: “Abandonar minha vingança? Seria mais fácil Deus deixar de ser Deus!”

          É fazendo chorar que o melodrama construiu sua história; o sofrimento é sua mola propulsora: sofrimento pela impossibilidade do amor, sofrimento pela perda de algum ente querido que se deseja ardentemente vingar ou até mesmo a dor do vilão que vê seus maléficos planos ruírem como castelos de areia. Certamente não choramos pelo vilão; os sofrimentos do mocinho e da mocinha são suficientes para estimularem nossas glândulas lacrimais. Sofremos com eles mas, dialeticamente, e até mesmo contra nossa vontade e de seus autores, rimos deles, pois tal sofrimento é tão exagerado que se torna irreal sob o olhar crítico. Então o melodrama encontra-se com a comédia. A súbita e em grande parte das vezes inexplicável mudança no destino das personagens nos apresenta um quadro digno de uma comédia non-sense. Estando tão longe da comédia, o melodrama está muito próximo dela pela utilização de diversos elementos dramáticos e estruturais.

A idéia do choro fácil acompanha o melodrama desde o surgimento do teatro na Grécia antiga: Eurípides, inúmeras vezes, lançou mão de recursos que visavam levar a platéia a um estado de comoção tal que, do seu ponto de vista, facilitaria o entendimento e uma tomada de posição ideológica, por parte do público, em torno do tema tratado. Obviamente não podemos enquadrar uma Troianas ou uma Medéia na galeria dos melodramas, pois suas estruturas pertencem nitidamente à tragédia, mas é também óbvio que laçam mão de efeitos típicos deste gênero que, embora crucificado e às vezes incompreendido, nos acompanha a bastante tempo.

Shakespeare também não escapa a uma escorregadela melodramática. Lionel Abel, em seu Metateatro, é implacável ao afirmar que “quase todas as tragédias de Shakespeare são defeituosas; constituem fracassos de tentativas de se escrever tragédia, mas não tentativas de se escrever melodrama” e, mais ainda, com relação a Hamlet, afirma causticamente: “o miserável melodramazinho prossegue até o seu clímax”. Não queremos a postura ácida de Abel, mas temos que concordar que o bardo inglês se rendeu, sim, em vários momentos a um efeitozinho melodramático. Convenhamos que a perda do lencinho por Desdêmona, que servirá de peça fundamental para incriminá-la definitivamente, é muito frágil, porém Shakespeare precisava disso e lançou mão de um recurso que, se não enfraquece a tragédia, é pelo menos muito suspeito.

Suspeitos também são os vários recursos utilizados por Martins Pena: em Fernando ou O Cinto Acusador, D’Harville, o mocinho da história, é preso no mesmo calabouço onde fora preso o seu pai, também vítima de Fernando, mas o maior efeito se dá quando D’Harville descobre o esqueleto do pai e junto dele o famigerado “cinto acusador”, onde está escrito com sangue as seguintes palavras: “Vítima das perseguições do infame Fernando Strozzi. Um homem de honra viu aqui sua hora suprema. Aquiles, vinga a morte de teu pai”, aí se revela toda a maldade de Fernando e o possível desenlace da trama pérfida. Em Vitiza, surge milagrosamente um certo Eremita, que vai revelar o grande mistério que envolve a trama: Orsinda é mãe de Aldozinda. Só para registrar: Orsinda é apaixonada por Roderigo que é o grande amor de Aldozinda; por ciúme doentio Orsinda mata Aldozinda com um punhal, e esta, misteriosamente, ressuscita na hora de ser enterrada.

            No Brasil, o melodrama não morreu com Martins Pena, no teatro brasileiro contemporâneo vamos encontrar em Nelson Rodrigues, um dos mais melodramáticos de nossos autores. Em todas as suas peças, de Vestido de Noiva a O Beijo No Alfalto, ou de A Falecida a Toda Nudez Será Castigada, o naturalismo, muitas vezes aliado ao expressionismo (e até mesmo em suas farsas), há uma contaminação evidente do melodrama, seja nos recursos, seja na linguagem, na paixão doentia ou nas situações criadas. O confronto entre as personagens é sempre marcado pelo exagero das obsessões, motivações passionais ou revelações surpreendentes. Com sua genialidade, Nelson Rodrigues, utilizou-se do melodrama com mestria sem igual, mas isso não o torna menos melodramático e moralista.

            A derrota do mal, o que não quer dizer necessariamente vitória do bem, acompanha o melodrama como máxima moral: a punição para os crimes é fundamental e dela não se escapa. Há uma definição absoluta: se eu sou mau, eu não sou bom; se eu sou bom, eu não posso ser mau. E nessa relação não há dúvida nem culpa e cada personagem tem consciência do seu caráter. O melodrama é esquemático e não dialético. Fazendo um estudo comparativo com a tragédia, Ivete Huppes em seu excelente e fundamental MELODRAMA – O Gênero e sua Permanência, explica que “a força implacável da escolha, que dilacera a tragédia, é contornada no melodrama. Num certo sentido, este passa ao largo dos dilemas brutais que jogam os heróis trágicos entre duas ordens de razões, ambas aceitáveis. Aqui as personagens se movimentam num mundo muito mais simples. Na há nuanças. O universo das possibilidades humanas está reduzidos a duas alternativas rotuladas desde o começo, uma corresponde ao bem; a outra, ao mal. O conflito é claramente um embate entre campos separados e as personagens – como os espectadores – têm suficiente lucidez para distinguir um ao outro. Tanto o vilão como o herói anunciam sua identidade.”

            Não podemos analisar a obra melodramática de Martins Pena sem entender os parâmetros impostos pelo melodrama; o que temos que analisar é se a partir desses parâmetros ele realizou a contento suas peças. O seu amadurecimento fica patente quando observamos o conjunto de sua obra. Não podemos e nem queremos desconhecer que o comediógrafo superou em muito o autor melodramático, mas isso não diminui o seu valor, apenas acentua suas preferências e melhores habilidades. Tanto para a comédia quanto para o melodrama Martins Pena viveu pouco, mas nesse curto período nos legou um acervo extraordinário com o que melodrama tem de mais genuíno.

Lothar Hessel e Georges Raeders, em O Teatro No Brasil Sob Dom Pedro II, reafirmam o que temos tentado demonstrar: “menos realizados que as comédias, os dramas parecem ter sido exercitações para alguma obra-prima a que, pela brevidade de sua vida, não conseguiu chegar”.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O TEATRO DOS NOSSOS DIAS (I)


O homem acumula seus conhecimentos e os transforma, criando novos conhecimentos, e os socializa com outros seres humanos. Dessa interação de conhecimentos, outros novos conhecimentos serão adquiridos e o homem avança em seu processo evolutivo. Seus valores culturais são transmitidos de geração para geração, que os desenvolve, aprimorando-os, às vezes; preservando-os como tradições, em outros momentos. A cultura é dinâmica e acompanha a própria dinâmica da existência humana.

                        Neste sentido é que devemos pensar o processo de aquisição da linguagem humana, que surge no próprio desenvolvimento da raça, através do surgimento do FoxP2, resultado de uma mutação genética ocorrida cerca de 180.000 anos atrás, já no domínio do Homo sapiens. Foi essa mutação que proporcionou um aprimoramento da articulação humana, com o desenvolvimento de musculaturas maxilares que permitiram a formação de sons mais elaborados. Outros animais não sofreram esse processo de mutação, nem mesmo os outros primatas que possuem ancestral comum com o homem.

O advento da fala e a consequente conquista da linguagem verbal permitiram ao homem um avanço extraordinário em sua comunicação e relações sociais. A fala se tornou um de seus principais instrumentos de sobrevivência. O aprimoramento da linguagem verbal passa a ser impulsionador das civilizações. No teatro, não foi diferente: arte da palavra falada sobreviveu aos tempos através de suas peças. Não temos registros de como os gregos encenavam suas tragédias ou comédias. É através das obras de Ésquilo, Sófocles, Eurípides ou Aristófanes e Menandro que podemos entender as transformações pelas quais passaram a cena grega. Sabemos de muitas coisas; tudo através das palavras, e apenas palavras. O que a escrita não registrou – e só registrou as falas dos personagens – não sabemos. Podemos apenas imaginar, com os olhos de hoje. E, através dos textos, tentar decodificar elementos cênicos ali descritos.

            O que nos chegou do teatro de Shakespeare? Suas peças. E assim também o foi com Molière e Corneille, Goethe ou Tchekov! A história do teatro em sua quase totalidade se fez exclusivamente pela palavra escrita – a dramaturgia! O surgimento da fotografia já nos permitiu um pouco mais, assim como a película, a fita de vídeo e, hoje, o DVD. Apesar de serem linguagens estéticas bem diferentes, através do registro da imagem podemos saber um pouco mais dos espetáculos; entender os mecanismos criativos do encenador e, não apenas, da obra do dramaturgo. Hoje podemos registrar o teatro em sua quase inteireza. Sendo o teatro uma arte viva, que só se realiza efetivamente na relação ator/público, alguns aspectos, certamente, serão impossíveis de se registrar. Mas já demos um passo bastante significativo.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
            Paradoxalmente, para uma arte feita da palavra, várias foram as experiências para se excluir a palavra da cena. Fora a mímica e a pantomima – espécies que se utilizam apenas do corpo como instrumento de expressão, através do gesto, postura, movimento e máscara facial – o teatro é, essencialmente, uma arte visual e auditiva. A negação da palavra tem sido fruto de diversas pesquisas ao longo dos anos. Um dos pioneiros a querer romper com a “ditadura” da palavra foi o ator e encenador francês Antonin Artaud, que propôs uma desconstrução da palavra e, mesmo, sua destruição, substituindo-a por outros códigos e outras estruturas semióticas.

            Se tomarmos o teatro ao longo de sua existência, desde suas origens na Grécia antiga, verificamos que ele nunca foi cópia fiel da realidade, como pretendem alguns. Teatro não é imitação, é recriação! Foi a partir da segunda metade do século XIX, com o advento do naturalismo, que surgiu o ilusionismo, com a criação da teoria da quarta parede. Mas o naturalismo, ao mesmo tempo em que pregava uma ilusão cênica, trouxe para o palco uma realidade crua que ainda não tinha sido mostrada em sua completude: colocou em cena todos aqueles personagens que sempre estiveram alijados do teatro e buscou uma análise da sociedade, denunciando as pressões que o capitalismo já exercia sobre os homens, transformando-os em objetos produtores de lucro. O expressionismo reagiu esteticamente e aprofundou a crítica social e econômica. Denunciou a transformação do homem em máquina.

            A essência do teatro se resume em confrontar ator e público; o resto é acessório! O fenômeno teatral não se realiza fora dessa condição. Cenário, figurino, iluminação, trilha sonora são absolutamente desnecessários. Tudo pode ser descartado, até mesmo o diretor ou encenador; só não se descarta o ator. Resgatar no teatro a sua essência é permitir a expressão do ator em sua totalidade e teatralidade. E resgatar sua essência é aproximá-lo do ritual, que é onde o teatro surgiu. Das dionisíacas (festas em louvor ao deus grego Dioniso, deus do vinho e da fertilidade), encontro do homem com o deus, a magia da representação divina permite a invenção do teatro. O homem se faz deus e o personifica! Criador e criatura se fundem para mostrar aos seus iguais o grande mistério da existência! No ritual o homem se defronta com seus limites e a superação deles.

            É no ritual que vamos encontrar elementos que, talvez, expliquem um pouco mais os processos humanos e sociais. No ritual não pode haver senão honestidade. A arte só se manifesta em sua plenitude quando a honestidade precede qualquer experimentação estética. Fora disso, nos apropriando de Peter Brook, o que há é o “teatro morto”. Morto porque se vende por qualquer dinheiro; morto porque a vaidade determina os caminhos a percorrer; morto, enfim, porque não se preocupa em trazer para a cena a integridade humana, mas trazer um homem fragmentado, sem desejos ou vontades. Um homem não contraditório que não atua sobre seu próprio destino. Voluntarista, se deixa levar sem agir e sem refletir.

            O que vemos hoje, quando o besteirol domina todos os espaços, é uma negação da arte como agente transformador, seja em sua expressão estética ou nos temas a serem debatidos com o público. O teatro silenciado pelo interesse imediato da bilheteria esgotada. Um teatro que não tem voz, apesar das palavras jorrarem aos borbotões das bocas inábeis que, entre uma piada e outra, deixam escapar um sorriso de deboche contra a própria luta do teatro. A palavra perde sua função e se coloca a serviço do emburrecimento daqueles que procuram a diversão “descompromissada”, sem saber que não existe “descompromisso” no teatro. O besteirol não consegue atingir a profundidade de um pires.

            O teatro não encontra seu caminho porque não permitem que ele surja como resultante de uma experiência coletiva e inquietante. Porque os custos de produção exigem um tempo exíguo para um processo que necessita de amadurecimento, e amadurecimento não se alcança da noite pro dia. Porque a experimentação cedeu lugar para a banalidade das fórmulas prontas. Tudo numa mesma fôrma, que segue uma receita publicada em qualquer pasquim. E assim vamos levando! E assim o teatro vai se afundando cada vez mais num buraco cavado pela sua própria negação enquanto arte compromissada com seu tempo e sua história.

            O imperialismo – último estágio do capitalismo – impõe uma horizontalização de comportamentos. A globalização nivela por baixo. E o teatro hoje, como é praticado, é um mero reflexo desse processo. Ao negar uma análise mais profunda da realidade e do comportamento humano, o besteirol apenas reforça, com sua aparente inutilidade, um projeto político e ideológico que se traduz nas suas entrelinhas. Todo teatro é político, portanto, o besteirol não pode se esconder sob o manto da imparcialidade: ao se calar, está falando muito, basta ter ouvidos atentos para escutar o seu silêncio, que se manifesta no preconceito, na discriminação e racismo. Tudo isso colocado numa aparência de deboche; mas tenhamos bastante claro: apenas aparência.

            O teatro vive talvez seu momento de maior incerteza quanto ao seu futuro: a que nos leva o besteirol, que hoje domina a cena em nossa cidade? O que ficará desse teatro que hoje apenas lota as casas de espetáculo? Será suficiente lotar as casas de espetáculo? Isso se traduz em mais público para o teatro que não é besteirol? Ou somente a ele é destinado esse público que quer apenas rir para fugir um pouco da realidade a que é confrontado? E, ao fugir da realidade não estarão essas pessoas, que formam esse público, num processo dialético, fugindo de si mesmas para serem novamente sufocadas nos confrontos que inevitavelmente lhe estão reservados. A realidade é dinâmica e, como tal, se não estamos preparados para entendê-la, ela há que nos sufocar implacavelmente.

            O teatro não promove a transformação social, mas transforma o homem, que é o agente da transformação social e política. O besteirol a que hoje assistimos, apenas embota a reflexão, que é parte do processo de transformação! Hoje, a palavra no teatro está vazia, pois não contribui para que o homem avance em suas conquista; hoje, a palavra no teatro está negada em sua essência, que é ser o veículo de comunicação e entendimento entre os homens, para que através do diálogo, optem por andar juntos em direção de uma vida melhor. O desserviço do besteirol não tem tamanho e não há como mensurar os prejuízos impostos.

É absolutamente urgente e necessário afirmar a palavra como instrumento de libertação, a serviço de um tempo em que o homem se complete e que, no dizer de Bertolt Brecht “o homem seja amigo do homem”; que o homem caminhe para atingir sua plenitude. É absolutamente urgente e necessário que o teatro e os fazedores de teatro reflitam sobre a função primeira do teatro: revelar os arquétipos para que o homem se encontre e defronte com suas emoções. Voltar com o teatro às suas origens é fazer o teatro encontrar consigo mesmo; é resgatar o fogo e a chama sagrados que insistem, ainda, em arder; é buscar estabelecer novas relações entre palco e platéia; é romper os limites estreitos que a vida impõe; é fincar a certeza da capacidade transformadora do teatro. O homem criou o teatro para sua libertação!


segunda-feira, 25 de julho de 2011

AS EXPERIÊNCIAS DE MARIA


TODAS MULHERES SÃO MARIA
Espetáculo escrito e dirigido por Luiz Paixão, produzido pela Companhia de Teatro.
Elenco: Daniela Savaget, Joyce Athiê, Kely de Oliveira, Mariana Bizzotto, Roberta Bahia

Parte I


Parte II


Parte III


Parte IV



 O fenômeno teatral só se estabelece na relação direta ator/público. Todas as transformações que o teatro sofreu ao longo de sua história, estão diretamente vinculadas a essa relação, seja no caráter emocional, intelectual ou ideológico, e o estabelecimento dessas relações passa pelo caráter arquitetônico, que cria as condições mais favoráveis a essa ou àquela estética, pois interfere diretamente na maneira em que se recebe a mensagem. A arquitetura do teatro grego é completamente diferente da arquitetura religiosa medieval, que levou o teatro para a praça pública, que também vai ser diferente do teatro elisabetano, com seu palco envolvido por três blocos de platéia, ou do teatro burguês que lança mão do palco italiano como padrão. Em cada uma dessas formas encontramos, não só uma dramaturgia específica, mas também uma concepção cênica que irá produzir um tipo ou outro de emoção no espectador; não esquecendo, é claro, que a postura o ator se modifica radicalmente de arquitetura para arquitetura - ainda que seja um processo inconsciente, o ator se adapta ao novo espaço. Todas essas possibilidades (e não se discute aqui, ainda, o seu caráter ideológico) são determinadas pela forma do palco e sua relação com a platéia, se mais próxima ou mais distante, se numa determinada inclinação ou noutra, se um palco mais largo ou mais profundo, enfim, tudo vai interferir na estética do espetáculo e, consequentemente, na recepção por parte do público.

Cada espetáculo tem o seu movimento próprio e o seu próprio ritmo de deslocamento e ocupação do espaço pelo corpo do ator, como tem também o seu tom e seu volume de fala, enfim, todo espetáculo tem sua própria dinâmica que é determinada por sua estética. Para cada encenação uma nova estética. A previsibilidade mata o teatro, pois o torna uma fórmula definida e não mais nos surpreende; uma forma que deu certo e que se repete incansavelmente, o mesmo grupo de pessoas fazendo o mesmo gesto, num mesmo ritmo em que só se muda o figurino. Não se pode ir ao teatro sabendo de antemão o que se vai ver, ainda que o espetáculo prime por algum tipo de qualidade. As relações estáticas palco/platéia há muito não respondem às reais necessidades do teatro. Cada espetáculo deve procurar seu próprio espaço, pois é este espaço que vai proporcionar novos vínculos emocionais e ideológicos com a platéia, e esse contato ator/público se estabelece a partir de uma proposta única que não serve para nenhum outro espetáculo.

O primeiro a pensar um teatro que rompesse que a divisão palco/platéia imposta pelas diversas formas de palco, foi Artaud, quando propugnava que “no teatro da crueldade o espectador fica no meio enquanto o espetáculo o envolve”, rompendo até mesmo, no caso do palco italiano, com a própria noção da quarta parede, o envolvimento agora seria direto e real e não mais sugerido como no teatro ilusionista: “Suprimimos a cena e a sala, substituídas por uma espécie de lugar único, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação. Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação , estar envolvido e atravessado pela ação (...) o público ficará sentado no meio da sala, na parte de baixo, em cadeiras móveis que lhe permitirão seguir o espetáculo que se desenvolverá à sua volta.” Artaud não conseguiu colocar em prática o seu pensamento, mas tinha a certeza de que para inaugurar um teatro que rompesse radicalmente com o que ele considerava velho, deveria começar criando uma nova noção de espaço, e mais, esse novo teatro possibilitaria um vínculo emocional que seria fundamental para os seus propósitos. E deixa bastante claro que o seu caminho era por ali: “É a fim de apanhar a sensibilidade do espectador por todos os lados que preconizamos um espetáculo giratório e que, ao invés de fazer da cena e da sala dois mundos fechados, sem comunicação possível, difunde seus relâmpagos visuais e sonoros sobre toda a massa de espectadores”.

Já nos anos sessenta, Grotowski, em seu Teatro Laboratório, rompe radicalmente com a idéia da separação proposta pelo palco italiano e experimenta inúmeras e novíssimas possibilidades, e com isso, permite à platéia condições emocionais específicas e adequadas a cada nova montagem: “Renunciamos a uma área determinada para o palco e para a platéia; para cada montagem um novo espaço é desenhado para os atores e para os espectadores. Dessa forma, torna-se possível infinita variedade no relacionamento entre atores e público”. É preciso saber, e isso Grotowski deixa bastante claro, sua busca não é meramente um rompimento com a divisão espacial do ator e público, o que ele procura vai além dessa tentativa de juntar os dois, pois ele pretende estabelecer, sim, um novo contato entre eles e assim atingir um nível de comunicação mais elevado: “A eliminação da dicotomia palco-platéia não é o mais importante: apenas cria uma situação de laboratório, uma área apropriada para a pesquisa. O objetivo essencial é encontrar o relacionamento adequado entre ator e espectador, para cada tipo de representação, e incorporar a decisão em disposições físicas.”

As experimentações se multiplicam: Julian Beck e Judith Malina no Living Teather, Luca Ronconi, na Itália, e Ariane Mnouchkine, no Théâtre du Soleil, entre tantos outros que se dedicam à pesquisa da transgressão espacial visando estabelecer um novo modo de envolvimento emocional. Não há mais limite para a pesquisa. E as experiências e multiplicam e se radicalizam. Como afirma Peter Brook, “Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu. Um homem atravessa este espaço enquanto outro o observa. Isto é suficiente para criar uma ação cênica”, nos ensinando que o espaço no teatro vai muito além do convencionalismo da arquitetura cênica e é rompendo essa arquitetura que o teatro cria novas e inúmeras possibilidades de manifestação.

O teatro surge da manifestação religiosa que acontecia ao ar livre, numa interação onde a noção palco/platéia praticamente inexistia, só muito depois foi levado para um espaço definido, e este novo espaço delimitou a função de cada um – público e atores – e determinou uma estética, e as lentas transformações deste espaço interferiram na própria transformação estética do teatro. No estabelecimento do contato com a platéia é que está a sua essência, “ator e público necessitam um do outro e ambos sentem que nós fazemos juntos”. Procurando entender e explicar a relação do público com o teatro, Freud  afirma que “o desejo reprimido (do herói) é semelhante aqueles que são reprimidos em todos nós, cuja repressão pertence a um estágio primitivo de nosso desenvolvimento individual, enquanto que a situação da peça rompe, precisamente, com essa repressão. Devido a esses dois aspectos é que nos resulta fácil reconhecer-nos no herói.” A empatia, ou identificação, já nos ensinava Aristóteles, nos aproxima do herói e nos leva a acompanhar sua história, sofrendo com o seu sofrimento, e ficando alegres com sua alegria. Na empatia está a causa primeira da catarse, que para o filósofo grego é o objetivo final da tragédia.
Segundo Ernst Kris, “o público relaciona-se em três níveis dentro da experiência teatral – com o enredo, a experiência da ação, e a personagem; sendo que o público também sintetiza o conteúdo, a intenção, e a coerência da peça”, e devemos ter claro que “a natureza física do teatro influencia o relacionamento entre o público e a encenação – e, consequentemente a natureza da forma de arte dramática”, como nos aponta Richard Courtney, e “a estrutura de uma platéia afeta a natureza da forma de arte”. 

Lançar mão de um espaço não convencional para encenação de um espetáculo, como no caso do nosso TODAS MULHERES SÃO MARIA, é um desafio extraordinário, pois nos coloca diante do inusitado, seja no campo formal ou mesmo no desenvolvimento do conteúdo. Sendo um espaço não convencional, não temos, como no caso do teatro italiano, uma referência objetiva da posição do público em relação ao espetáculo, ou seja, na forma estática do italiano, o ângulo de visão altera muito pouco, portanto, em quase sua totalidade, o público assiste ao mesmo espetáculo, pois é um bloco maciço com sua atenção voltada para o mesmo foco, o palco italiano, com todos os seus recursos obriga o espectador a olhar na mesma direção. A utilização de espaço não convencional nos leva uma relação circular (não confundir com o teatro de arena) e, em cada posição, o espetáculo será visto de uma forma completamente diferente da outra, pois a relação entre os atores se altera profundamente e com isso as próprias relações entre as personagens. Os personagens movem-se nos espaço e revelam de acordo com o seu posicionamento em cena, uma relação de poder, estabelecendo uma superioridade de um sobre o outro, se em cada ponto da platéia eu vejo um espetáculo diferente, em cada ponto da platéia essa relação vai mudar, podendo inverter radicalmente a relação entre as personagens.

TODAS MULHERES SÃO MARIA é uma clara demonstração de que o ângulo de visão é determinante no estudo e consequente ocupação do espaço não convencional, pois suas inúmeras possibilidades interferem diretamente na leitura final do espetáculo. Ao “atravessar” a cena, como queria Artaud, possibilita-se ao público uma nova leitura de uma determinada cena, e essa diferente leitura pode alterar decisivamente o entendimento da fábula. O personagem é apresentado de uma maneira e pode ser entendido de maneira diversa. O meu olhar sobre ele não será o mesmo se ele estiver de frente para mim ou de perfil, ou ainda de costas. Ele poderá ser mais decidido ou mais covarde na exata relação espacial com o outro. Quando ele diz, por exemplo, “eu te amo”, pode revelar um sentimento ou o seu oposto absoluto, se o vejo deste ou daquele ângulo, mesmo que ele não altere a intenção da fala.

Junte-se a isso o fator distância/proximidade e teremos novas implicações: quanto mais próximo da personagem, mais cúmplice é a nossa relação, e essa cumplicidade não está absolutamente sujeita ao fato de eu me identificar ou não com a personagem. A sua história me é contada de maneira muito especial, eu me torno assim meio seu confidente. Eu passo a ter acesso a informações absolutamente exclusivas, pois só eu vi aquele olhar, ele foi dirigido a mim, exclusivamente. Em TODAS MULHERES SÃO MARIA temos experimentado uma reação do público como nunca antes, a manifestação dessa exclusividade tem nos levado a dedicar uma atenção muito especial para saber explorar da melhor maneira esse detalhe que parece insignificante, mas que é de uma força emocional extraordinária. Apenas uma única pessoa, e só ela, vê uma lágrima brotar nos olhos da atriz. Esse momento único e absolutamente exclusivo, provoca uma experiência emocional também única. A pessoa que está ali, ao seu lado, só vê a lágrima escorrendo, não vê o seu nascimento. O marejar dos olhos eu vou guardar para mim, já que me foi dado como dádiva de um momento impar onde nossas emoções, minhas e da atriz, se encontraram e se perpetuaram.

A Casa do Fernando, espaço absolutamente não convencional e que abriga o espetáculo TODAS MULHERES SÃO MARIA, contribui com o seu charme e sua mística nessa experiência que propõe uma reflexão sobre o fazer teatral. A busca de novos espaços que possibilitem a experimentação e a própria disposição em experimentar poderão promover um salto qualitativo extraordinário para o nosso teatro. Abrir mão do lucro aparentemente fácil e partir para um teatro que responda às necessidades do terceiro milênio. E olha que estamos atrasados demais. O teatro morto já está mumificado, é o momento, sim, de pensar um novo teatro que alfinete a todos, que promova uma revolução na cena mineira. A provocação está lançada, que respondam a ela.



sexta-feira, 1 de julho de 2011

A CRUELDADE DO VIVER


Depoimento ao PROGRAMA AGENDA, da Rede Minas


No dia 4 de março, de 1948, Artaud foi encontrado morto, caído ao pé da cama, abraçado a um sapato, no hospício de Ivry. Era o fim de um dos mais inquietos e instigantes nomes do teatro do século vinte. Morria, ali, o criador do TEATRO DA CRUELDADE. Morria, ali, o homem que determinou que era preciso ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS, e cumpriu sua promessa. Morria, ali, o gênio visionário, que deixou sua marca indelével no teatro contemporâneo. Aquele que afirmou, e também cumpriu: “Ali onde outros propõem obras, não pretendo nada além de mostrar meu espírito”. Aquele que, até na hora da morte, deixou interrogações para os que ficaram e para os que viriam: qual o significado daquele sapato abraçado ao peito no seu último instante?

Irascível! Iracundo! Apaixonado! Sofredor de todas as dores do mundo, Artaud levou para o teatro a sua vida, o seu grito inumano de desespero e, para sua vida, o teatro: “A tragédia no palco não me basta mais, vou transportá-la para minha vida”. E assim o fez, num vislumbre que só os gênios e os loucos conseguem. E ele era gênio... e era louco! E fez do teatro a ponte que unia seus extremos. E dessa união rompeu com tudo que era velho, arcaico e conservador. Desprezou as regras! Rasgou todas as cartilhas! Teatro e vida se misturaram e se completaram e o resultado disso é um jorro quase irracional de uma maneira absolutamente nova e revolucionária de pensar o teatro. O visionário tornou-se profeta!

“Perdeu-se uma idéia do teatro”, escreveu Antonin Artaud (1896 – 1948), em maio de 1933. Mas qual “idéia” deveria ocupar o lugar dessa que se perdeu? Que teatro era esse que deveria como a peste, varrer tudo, para novamente recomeçar, e recomeçar pisando os escombros deixados por aquele teatro morto, que há muito já definhava e nem tinha se apercebido. Para Artaud, “o jogo teatral é um delírio e, uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido”.

Quando publica O TEATRO E SEU DUPLO, propõe um confronto radical com tudo que estava sendo feito na Europa, a começar pelo rompimento com as obras clássicas: “as obras primas do passado são boas para o passado; não servem para nós”, além da total “rejeição do teatro como divertimento”. Seu teatro seria construído por imagens, sons e gritos, onomatopéias, jogos de linguagem a partir da sua própria desarticulação, além de um sistema de códigos corporais e gestuais, “constituindo com as personagens e os objetos verdadeiros hieróglifos”, organizado para que o espetáculo lembrasse as “imagens do sonho no cérebro”.

 Artaud não foi um teórico do teatro, ele teve “visões”. E essas “visões” não tiveram a aplicação necessária para serem aprofundadas e se tornarem uma metodologia, um conjunto de técnicas e proposições que pudessem servir de guia para o exercício prático cênico, tanto para o ator quanto para o encenador. São lampejos que estimulam a criatividade, que provocam o desejo de experimentar o que seja Artaud. Nada mais que isso. Mas isso não diminui o valor dos seus escritos e do seu pensamento sobre o fazer teatral. No Primeiro Manifesto do Teatro da Crueldade, como de resto em todos os seus textos, ele não nos deixa uma formulação, mas apontamentos sobre a utilização dos diversos mecanismos cênicos.

Artaud pensa o teatro voltado à sua essência ritual. Uma experiência única e transformadora. Rompendo com o realismo/naturalismo, traz para a cena imagens e impressões que devem provocar novas sensações na platéia e, com isso, estimular transformações e tomadas de posições, tirando o espectador da inércia contemplativa em que estava atolado.

Dentre as várias propostas para atingir esse objetivo, trata da relação palco/platéia, ponto fundamental em seu pensamento. Propõe a utilização de um novo conceito de espaço cênico, até então nunca utilizado, onde atores e público não estejam mais separados por “dois mundos fechados, sem comunicação possível” e, para que isso se efetivasse na prática, seriam suprimidas “a cena e a sala, substituídas por uma espécie de lugar cênico, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo e que se [tornariam] o próprio teatro da ação”. Público e atores vivenciariam uma experiência diferenciada e quase única para os dois e, dessa nova relação, em que se rompia a estratificação arquitetônica do chamado “palco à italiana”, o mais usado ainda hoje em todo o mundo, deveria ser “restabelecida uma comunicação direta entre espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e atravessado pela ação”.

Hoje sabemos que Artaud, em sua intuição, estava certo, mas ele não teve tempo nem condições para aplicar seus pensamentos sobre o teatro. Essa proposta absolutamente inovadora e revolucionária só voltaria a ser considerada e colocada em prática a partir dos anos sessenta, por nomes como Grotowski, Peter Brook, Julian Back e Judith Malina, dentre tantos outros que herdaram Artaud, embora alguns, como é o caso de Grotowski ou mesmo Peter Brook, só entrarem em contato com o pensamento artaudiano depois de trabalhos já realizados. Mas Artaud já estava presente em suas obras e tinha se antecipado, como se antecipou em quase tudo que propôs, seja na relação direta com o texto dramático e sua abordagem, seja, por exemplo, na utilização de “manequins, máscaras enormes, objetos de proporções singulares [que] estarão em cena na mesma condição das imagens verbais”, vemos claramente nisso os bonecos gigantescos do grupo Bread and Puppet.

Artaud não se permite conceber “uma obra como separada da vida”, mas ao mesmo tempo não admitia o teatro onde o que estava em cena era apenas um reflexo, ou uma cópia quase que fiel da realidade cotidiana, o que acaba se esgotando em si mesmo. O teatro não como diversão, mas “no qual imagens físicas violentas trituram e hipnotizam a sensibilidade do espectador que se vê no teatro como uma presa de um turbilhão de forças superiores”. E, para atingir esse objetivo, cria o conceito de Duplo (ainda que não muito bem definido, pois permite várias leituras diferenciadas!) e estabelece novos parâmetros para o encontro teatro/vida, em que o mágico, o ritualístico, o extraordinário, são determinantes dessa nova relação, “se o teatro é um duplo da vida, a vida é um duplo do verdadeiro teatro”. Para Artaud, o teatro “deve ser considerado como um Duplo não desta realidade cotidiana e direta, da qual ele, aos poucos, se reduziu a ser uma cópia inerte, tão vã quanto adocicada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, na qual os Princípios, tais como os delfins, no instante em que mostram suas cabeças se apressam em retornar à obscuridade das águas”.

Já o conceito de Crueldade foi muitas vezes percebido erroneamente como sangue ou sadismo, mas para Artaud a Crueldade está vinculada com a própria renovação que propunha no que diz respeito ao “rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta”. Artaud pretende uma nova santificação do teatro e uma pureza só encontrada nos rituais, onde a honestidade está acima de meros valores comerciais. Crueldade também quer dizer sofrimento da alma exposta e triturada do ator perante uma platéia que também deve expor e deixar triturar sua própria alma, em retribuição. “O Teatro da Crueldade foi criado para devolver ao teatro a noção de uma vida apaixonada e convulsa; e é nesse sentido de rigor violento, de condensação extrema dos elementos cênicos, que se deve entender a crueldade sobre a qual ele pretende se apoiar”. Mas quando necessário a Crueldade poderá e deverá ser “sangrenta”, “a afirmação de uma terrível e, aliás, inevitável necessidade”, pois o seu teatro é uma resposta dura e implacável a todo sofrimento a que foi acometido, seu teatro transporta para o palco “a miséria do corpo humano”. Artaud se explica: “a guerra que pretendo fazer provém da guerra que fazem a mim”.

A obra de Antonin Artaud, seja no teatro ou na poesia, seja como ator ou encenador, seja mesmo como artista plástico, é uma obra que traz dentro de si a marca do sofrimento. Já em 1915, portanto, aos 19 anos de idade, é acometido por uma crise de depressão e destrói vários de seus textos. Pela primeira vez é internado em um sanatório. Daí até sua morte, são inúmeras curtas internações e diversos tratamentos para desintoxicação. A partir de 1938 permanecerá internado até sua morte. “A crueldade consiste em extirpar pelo sangue e até sangrar a esse deus, o azar bestial da animalidade humana inconsciente, lá onde se encontrar”. Internado em Ivry, Artaud sofria de dores terríveis provocadas, provavelmente, por um câncer no ânus. Para se livrar, fazia uso do láudano e cloral, drogas sintéticas que, inevitavelmente provocariam dependência e, em doses excessivas, provocariam a morte. Artaud sabia disso. Teve a liberação do seu medico para usar a droga livremente. Existem alguns biógrafos que defendem o suicídio, embora nada se possa provar. Talvez overdose acidental.

“Artaud continua ainda incompreendido em seu pensamento e em suas propostas para o teatro. Crueldade, magia, duplo, sangue, esperma, hieróglifos, gritos e gemidos... Parece tudo tão simples! Ele tenta explicar: “O teatro da crueldade não é o símbolo de um vazio ausente, de uma espantosa incapacidade para realizar-se em sua vida de homem. É a afirmação de uma terrível e aliás inelutável necessidade.” Como não compreender seu grito desesperado de dor e agonia? Mas Artaud não era assim tão previsível! Ele mesmo havia declarado que era preciso “romper a linguagem para tocar na vida”. O seu teatro foi uma incansável busca por essa nova linguagem que deveria surgir do seu próprio rompimento. Artaud ficou sozinho. Como companhia apenas seu sapato, seus papéis, canetas e as drogas. É provável que tenha se matado? Talvez. Mas com certeza a morte para ele foi apenas o fim do sofrimento. Um mês antes de morrer, a transmissão radiofônica de seu poema PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS, foi proibida pelo diretor da rádio estatal. Mas cópias clandestinas foram feitas e se pôde ouvir Artaud, gritando, gemendo, grunhindo, cumprindo o que prometera.

POST-SCRIPTUM - Quem sou eu? / De onde venho? / Sou Antonin Artaud / E basta que eu o diga / Como sei dizê-lo / Imediatamente / Vocês verão meu corpo atual / Partir em pedaços / E se recompor / Sob dez mil aspectos notórios / Um corpo novo / Onde vocês não poderão / Nunca mais / Me esquecer.

sábado, 23 de abril de 2011

TEATRO E GUERRA




“Eu compreendo a guerra, general. Meu filho morreu nela.”
(Da mulher de um pescador, em O Julgamento de Luculus – Bertolt Brecht)

O maior flagelo da humanidade acompanha o homem desde sempre. E muito ainda deve demorar para que consigamos viver num mundo em que a guerra seja apenas parte dos verbetes das enciclopédias e dicionários, como um fato histórico que deveria ser visto como uma aberração ou uma extravagância deslimitada, um acontecimento pitoresco que nos causasse apenas curiosidade e nada mais, pois tão distante que nem dor deveria nos causar. A necessidade de se fazer guerra e com ela se impor pela força diante do mundo é como uma droga que provoca dependência física e psicológica ou a insulina, absolutamente vital para o combate ao diabetes. O capitalismo se alimenta de guerra e vai torná-la, cada dia mais, necessária para sua sustentação. Em seu último estágio – o imperialismo –, como estamos assistindo hoje, essa condição está se exacerbando de tal maneira que já torna o mundo um grande campo de batalha onde, a cada dia novos inimigos precisam ser encontrados (ou fabricados!) para se justificar as ações bélicas. Com sua extraordinária lucidez, o dramaturgo e encenador alemão, Bertolt Brecht afirmava que a guerra é necessária dentro do capitalismo, isto é, para o capitalismo. Esse sistema econômico baseia-se numa guerra de todos contra todos, dos grandes contra os grandes, dos pequenos contra os pequenos, dos grandes contra os pequenos. Já se deveria ter reconhecido que o capitalismo em si é uma desgraça, a fim de se reconhecer que a guerra e as desgraças que ela produz são ruins – isto é, desnecessárias. E a voracidade do sistema que gera a guerra não tem fim. E novas guerras precisam ser criadas para alimentar o medo de Cronos, que engolia seus filhos assim que nasciam, para garantir que não o destronassem. A guerra torna-se, então, mercadoria, numa sociedade em que o modo de produção é determinado pelo poderio bélico. Cada baioneta, uma vida humana! E já nem se usam mais baionetas!

O teatro não se furtou, ao longo de sua história, de refletir e denunciar as mazelas provocadas pela guerra. Atento à realidade do seu tempo e sem abrir mão do seu compromisso histórico, o teatro tem sido um guardião incansável da paz e da soberania dos povos, colocando em cena personagens e situações que nos convocam a repensar os mais cruéis mecanismos de destruição da guerra e as suas mais terríveis heranças; gerações e mais gerações esfaceladas e destruídas, cuja história não sobreviveu senão na memória de suas perdas. Novamente Brecht: Noite. / Os casais / Vão para a cama. /As jovens mulheres parirão órfãos.

Em TROIANAS, o tragediógrafo grego Eurípides (484? - 406 a.C.) nos apresenta o mais belo poema contra a brutalidade e irracionalidade da guerra, o mais terrível exemplo do que a guerra é capaz, e se levanta, em cada palavra, em cada silêncio das mulheres cativas, contra a estupidez e a barbárie! Um canto de paz em que o derrotado é o grande herói, pois covardemente vencido, guarda para si a honra máxima de ter lutado por uma causa justa. A vitória dos gregos, sob o seu ponto de vista, se esgota em si mesma, pois como afirma Cassandra, em seu mais lúcido delírio: “Desejo apenas te convencer, minha mãe e não é delírio que a troiana gente é mais feliz que a grega. Tudo por uma mulher!... Por uma só paixão, só por Helena, quantos gregos pereceram? Por uma mulher levada de seu lar não pela força, mas por vontade própria. Para resgatar Helena quantos foram dizimados em árduas lutas cujo prêmio não seria nem a sobrevivência de sua pátria nem a preservação de suas fronteiras. E os que tombaram  jamais tornaram a ver seus filhos e a mão que em terra estranha os sepultou não foi da esposa amada. As mulheres morrem viúvas; os pais idosos morrem sem deixar filhos para perpetuar a família; e sobre seus túmulos parente algum virá depositar lágrimas. Este é o prêmio que mereceram... de seus crimes é melhor silenciar; que a musa jamais me empreste sua voz para cantar tais infâmias. Quanto aos troianos que glória poderia ser maior?  Morreram pela pátria! ”

Eurípides escreveu TROIANAS possivelmente em 416 a.C., e hoje, quase dois mil e quinhentos anos depois, voltamos a discutir a relação do teatro com a guerra, numa tentativa de entender o processo histórico que a envolve. Não é muito diferente, pois os interesses continuam sendo os mesmos. Quando levei à cena minha versão de TROIANAS, os Estados Unidos estavam invadindo o Afeganistão e logo depois o Iraque, numa clara demonstração de que tudo o que Eurípides escreveu continuava absurdamente atual: os interesses econômicos – as rotas do mar Egeu para os Gregos e o petróleo iraquiano para os americanos – e as falsas justificativas para as invasões de Tróia e do Iraque – o rapto de Helena e as bombas de destruição em massa de Sadan Houssein – estavam colocadas de forma a legitimar qualquer ação bélica. Eurípides não foi único tragediógrafo grego a discutir a guerra em suas peças, mas certamente foi o que mais incisivamente se voltou contra ela, colocando o seu teatro em favor da luta pela paz, contra a exploração do homem pelo homem. O ciclo troiano serviu de inspiração a muitos, mas nenhum cantou os horrores da guerra como Eurípides.

O teatro se transforma e é próprio do seu tempo.  Ele só existe a partir de uma relação estreita com valores culturais e sociais. A maneira de se fazer teatro, sua expressão estética e política, é determinada pelo grau de liberdade que cada povo desfruta em seu momento histórico. Quanto maior a liberdade, mais livre será sua expressão; quanto menor a liberdade, maior a sua combatividade contra esse estado de opressão e censura, maior a sua necessidade de denúncia – forma e conteúdo se unem criando uma nova estética que vai refletir essa contradição básica do ser humano: necessidade/possibilidade, pois é dela que o teatro se alimenta. No período de ditadura militar, o teatro brasileiro encontrou um caminho próprio para denunciar as arbitrariedades do regime ao mesmo tempo em que lutava por um estado democrático de direito. O teatro brasileiro (obviamente, aquele comprometido com seu tempo e sua história) não podia ser de outra maneira senão aquela, porque foi naquele solo que ele foi germinado e deu seus frutos. No período de guerra, o processo não é diferente, pois o estado de guerra vai estabelecer novos parâmetros norteadores das relações sociais e essa situação específica vai gerar um teatro que reflita as condições de vida provocadas pela convivência diária com bombardeios e mortes.

Brecht: Muitas coisas aumentarão com a guerra / Aumentarão / As posses dos poderosos / E a pobreza dos que nada têm / Os discursos dos governantes / E o silêncio dos governados.


Brecht vive a experiência das duas grandes guerras mundiais e isso vai marcar irreversivelmente toda sua obra. Formula uma nova teoria de teatro que visa explicar e fazer entender as lutas que o homem trava no seu dia-a-dia contra os diversos tipos de opressão, das mais simples às mais complexas. Acredita no teatro como um poderosíssimo agente de transformação social e busca, a cada instante de sua vida, novos elementos que contribuam para o melhor entendimento das relações sociais. Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos dentro do respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as ações se realizam), mas também que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse mesmo contexto.  É um pacifista e a condenação da brutalidade da guerra está presente em diversas peças e inúmeros poemas. Coloca o seu teatro à disposição da luta pela paz, pela democracia e pelo socialismo. Um teatro que promova um posicionamento crítico e leve a uma transformação: sem opiniões e objetivos nada se pode representar, nada se pode mostrar: como é que alguém poderá discernir o que é que vale a pena saber? A menos que o ator se satisfaça em parecer um papagaio ou macaco, ele tem de adquirir conhecimento sobre o convívio humano, patrimônio de sua época. As terríveis experiências da guerra e sua incansável luta contra o capitalismo vão balizar seu pensamento teatral anticapitalista e antiimperialista. Brecht propõe uma profunda e radical reorientação do fazer teatral, norteado pelo materialismo histórico e dialético, estabelecendo novas possibilidades de análise, como podemos ver por exemplo, em Mãe Coragem e Seus Filhos, escrita nos anos 1938/39:

Capelão – Estão enterrando o general. É um momento histórico.
Mãe Coragem – Golpearam minha filha no olho. Para mim este é que é um momento histórico. Ela já está meio destruída, não vai nunca conseguir um marido. E é muda, também por causa da guerra – quando era criança um soldado lhe enfiou alguma coisa na boca. O Queijinho (seu filho) eu não vou ver mais; onde está Eilif (outro filho) só Deus sabe. Maldita seja a guerra!

Costuma-se dizer que o teatro “mexe com as pessoas”. Na verdade, o teatro, por suas características, tem uma capacidade extraordinária de transformar as pessoas. E como são os homens que transformam a sociedade, o teatro tornar-se, então, um grande cadinho de inquietação, onde se estimulam e se aprimoram as consciências. Provocando uma reflexão profunda sobre as relações sociais estabelecidas no palco, o homem é instigado a lançar um novo olhar sobre a sua própria existência e dela passa a questionar pontos que antes não lhe preocupavam. E essa tomada de posição, provocada por uma relação íntima, visceral e única – ator/público –, é que faz do teatro, sim, um grande agente de transformação. O fato de ser obra de arte viva lhe confere qualidades específicas, que as outras artes não conseguem atingir tão plenamente. O ator em cena promove entendimentos e tomadas de posição que poucos discursos políticos conseguiriam. Isso confere ao ator e ao homem de teatro uma responsabilidade histórica da qual não podem se furtar, sob o risco de sua arte se consumir em si mesma. Com os olhos voltados para o mundo, o teatro se apropria dos problemas de outros povos e os toma para si, e sobre eles registra para o seu público o seu compromisso histórico. Os conflitos e as dores dos homens não mudam muito. A violência atinge a todos, em maior ou menor grau; sua discussão não é qualitativa. Não se pode, portanto, pensar na guerra como um fenômeno que atinge somente aquele determinado povo; sua brutalidade vai encontrar eco em outros povos, que vão reagir a ela solidariamente e, com certeza, o teatro estará pronto para gritar, com todas as suas possibilidades, se insurgindo declaradamente contra os atos de violência inerentes à guerra, tornando-se, assim, uma arte internacionalista.

Estamos vivendo um momento histórico em que a ocupação a países soberanos está na ordem do dia! O mundo foi, novamente e de forma arbitrária, dividido em dois blocos: o eixo do bem contra o eixo do mal. Sem a “ameaça” do bloco socialista no leste europeu, o império norte-americano teve que buscar imediatamente novo inimigo para continuar sua insaciável necessidade de dominação! Mas temos que ter claro também que a resistência ao projeto imperialista ganha mais forças e mais adeptos. Nos últimos anos tenho dedicado meu trabalho de dramaturgo e encenador teatral a uma profunda discussão sobre a guerra. Ciclo que se iniciou com a estréia de TROIANAS, em 2002, passando por CANUDOS – um retrato de um dos maiores massacres cometidos em nosso país –, em 2004, depois com CANTOS DE AMOR MULHER – um terrível lamento de mães que perderam seus filhos na guerra de Tróia –, em 2005 e, finalmente, JOANA – a luta de Joana Darc contra a ocupação inglesa na França, estabelecendo claramente uma denúncia da invasão do Iraque.

A guerra é uma cruel realidade que ainda nos acompanha. Hoje acompanhamos ao massacre que ocorre na Líbia, com as forças da ONU matando civis. O modelo de democracia imposto pelos Estados Unidos só se concretiza a partir do uso da violência. É isso que se faz! É a isso que assistimos! Mais uma vez, então, é preciso debater, refletir e buscar caminhos de luta no sentido de pressionar governantes para que revejam suas políticas externas e para que o teatro continue, como sempre, a serviço da paz mundial!

* Esse artigo foi publicado por ocasião da realização da 5a. edição do ECUM/2006, que trazia o tema O TEATRO EM TEMPOS DE GUERRA.

SADE, DOS MALES... O MAIOR


Espetáculo produzido pela Companhia de Teatro, dirigido por Luiz Paixão.
Cena: A morte do Divino Marquês
Elenco: Anália Marques, Danuza Maia, Flávia Dias, Mariana Bizzotto,Alberto Tinim, Marco Fugga

 


 Poucos artistas foram tão incompreendidos, perseguidos, negados e execrados quanto o Marquês de Sade (1740-1814). Ainda hoje, continua sendo visto com uma carga de preconceito extraordinária. Objeto de incompreensão quase constante, sua obra pouco conhecida, povoa o imaginário das pessoas que dela tiram suas conclusões sem ler uma linha sequer. Sade é aquele cara do sadismo, né? – alguém me indagou num misto de dúvida e certeza quando comentei que estava montando um espetáculo sobre o Divino Marquês. Mas Sade é assim, ele mesmo já sabia: São minhas desgraças, meu descrédito, minha posição que aumentam meus erros, e enquanto não for reabilitado, tudo de mal que acontecer nas redondezas será sempre atribuído à mesma pessoa: o Marquês de Sade.

A expressão “sadismo” tem sido usada de maneira viciada e, por vezes, bastante leviana. É preciso compreender que sua obra é um grito de revolta e denúncia contra a hipocrisia reinante. O mal uso de Sade e do sadismo tem servido para justificar atrocidades e perversões que nada tem com o homem Sade e sim com seu imaginário e sua profunda crítica ao comportamento social de sua época. O sadismo surgiu antes, bem antes de Sade. Não foi ele quem jogou escravos para os leões nas arenas romanas nem mesmo queimou mulheres durante a Santa Inquisição ou guilhotinou milhares no regime de terror da França republicana. Ele mesmo deixa bastante explicito: “sou um libertino, mas não sou nem um criminoso nem um assassino”. Octavio Paz afirma, com toda generosidade e compreensão do universo sadeano e sua história de vida: “o filósofo do sadismo não foi aquele que vitima, mas uma vítima, o teórico da crueldade foi um homem bondoso”. Por outro lado, o sadismo também não se esgota em Sade: as fotos de Abu-Graib reveladas ao mundo, além de denunciar os crimes de guerra cometidos pelo “eixo do bem”, onde se rasgou a Convenção de Genebra, serviram para nos mostrar que os escritos de Sade são brincadeiras de criança, comparados com os horrores ali estampados – uma verdadeira demonstração de barbárie. E não era fruto da “imaginação mais dissoluta e impura já vista neste mundo”...

Fernando Peixoto: “Sade é produto da repressão (...) um grito desesperado e angustiado, o incontrolável extremo de um individualismo absoluto que limita bastante o alcance ou o significado de suas idéias, a ânsia de liberação, gigantesco protesto em favor do homem livre, a denúncia de uma civilização fundamentada nos instintos planejadamente reprimidos, baseada na hipocrisia, no preconceito, na corrupção, na injustiça, na divisão social e na mais feroz crueldade”. A obra de Sade é sua vida, e sua vida é desnudada em sua obra, sem nenhum pudor ou receio. Como bem ressalta Octavio Paz, “sua vida não é menos extraordinária do que sua obra”. É na literatura que ele encontra os meios para se vingar da sociedade e lançar seu grito de revolta contra tudo e contra todos. Ambas, vida e obra, unas, profundamente mescladas e de uma honestidade extraordinária, ainda que, em sua mais pura desonestidade, como Sade muitas vezes se nos revela. Ambas ateístas, ambas sexuais, ambas fruto de uma repressão violenta.

Sade passou vinte e sete anos da sua vida entre prisões e sanatórios (onze ao todo, sob três diferentes regimes). E foi na prisão que nasceu o escritor. Ironicamente, é na Bastilha, a mais temida das prisões da aristocracia francesa, que Sade lança o seu grito e expõe toda a podridão em que está chafurdado o seu tempo e sua própria classe. Da revolta de estar alijado do mundo, onde teve que viver entre a ilimitada libertinagem da nobreza de sua época e a desmesurada opressão de que foi vítima pelos seus iguais, surge uma literatura que vai denunciar o que o mundo tem de mais perverso e o homem de mais doente. É em meio ao sufocamento físico das prisões e do Hospício de Charenton, onde viveu os últimos onze anos de sua vida, que Sade imagina e dá forma literária a tórridas histórias de amor e onde brota sua verve mais criativa, capaz de criar personagens antológicas como Justine, Juliette, Eugénie e tantas outras, e histórias como Cento e Vinte Dias de Sodoma ou A Filosofia na Alcova que, mesmo hoje, aos olhos do século 21, nos assombram, pois nos colocam de frente com nossa hipocrisia e falsa moralidade. Na verdade o castelo Silling é uma Bastilha onde a opressão se estabelece através da dominação sexual e da supressão da liberdade dos prisioneiros do grande banquete. Os protagonistas dos Cento e Vinte Dias... são os seus carrascos da Bastilha. E seu grito de liberdade é denunciar os horrores ali cometidos, mas não foi ouvido e ele continuou gritando desesperadamente: Que fiz eu para merecer ser enterrado vivo? Qual é minha culpa? Qual foi meu crime? Nenhum, a não ser o fato de ter o sangue muito quente. E acaso posso controlar isso? Que meu sangue ferva quando o sangue do outros apenas fica frio ou mesmo gelado? E por isso devo ser preso? Quando, pelo contrário, é tão óbvio que esta prisão é exatamente o que vai esquentar ainda mais meu sangue? Quando meu ódio não se extravasar, vai, certamente, voltar-se para dentro, e então nada me pode impedir de abrir a cabeça contra estas paredes em que me encerraram... O próprio Deus teria de se masturbar, se fosse preso neste buraco!

Sade sofreu, ao longo de sua vida, toda sorte de perseguição, seja por parte da família – sua sogra foi sua mais ardorosa e implacável inimiga que sempre conseguiu que ele permanecesse preso – ou da própria justiça aristocrática, quando foi julgado e condenado à morte em efígie: “...o senhor Marquês de Sade foi executado até morrer pela corda e depois executado pelo fogo e suas cinzas jogadas ao vento pelo executor da alta justiça...”

Os anos passam, os séculos também... a ignorância e a intransigência insistem em continuar vivas e cada vez mais fortalecidas; o que não passa é essa postura, ao mesmo tempo discriminatória e meio auto-defensiva que se tem contra Sade, pois ele nos ameaça a todos com seus escritos e seus preceitos filosóficos, ainda que tentemos evitá-lo. Fernando Peixoto analisa com muita propriedade e conhecimento de causa as qualidades literárias e filosóficas do Marquês: “Na verdade, Sade é um escritor vigoroso, ainda que muitas vezes cansativo pela repetição de temas e idéias. Um pensador brilhante e às vezes lúcido, ainda que em muitos momentos confuso e contraditório, superficial e mesmo inaceitável”. E Octávio Paz completa com sabedoria: “Sade é um autor que merece ser lido. É um autor perigoso? Não acredito que haja autores perigosos; melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles próprios e sim nas paixões de seus leitores.”

Esse monstro que se pintou ao longo do tempo, sobre cuja obra e sobre sua própria história cunhou-se o conceito de sadismo (cf. Vocabulário da Psicanálise: perversão sexual em que a satisfação está ligada ao sofrimento ou à humilhação infligida a outrem.), nos persegue implacavelmente desde o dia em que arriscou a primeira linha literária, nos levando a nos confrontar com nossos fantasmas e nossas contradições mais profundas. Quando Simone de Beauvoir, em seu brilhante ensaio, perguntou Deve-se Queimar Sade?, não foram poucos os que correram e gritaram “sim”, sem saber que ela jamais acenderia a fogueira. Todos querem queimar Sade pois ele, sim, acende a fogueira que atiça o fogo adormecido em nós e nos faz queimar de vergonha e falso moralismo quando nos deparamos escandalizados ante as perversidades mostradas e pensamos que no-fundo-no-fundo gostamos do que estamos lendo. E tentamos desesperadamente negar. Será que somos todos sádicos? Queimaríamos Sade?

Já velho e alquebrado, internado no hospício de Charenton, Sade sofre o último golpe contra sua liberdade quando recebe “ordem de isolamento em Charenton, por estar atacado da mais perigosa de todas as enfermidades mentais (...) Monsieur de Sade será colocado imediatamente em aposentos onde lhe seja impossível ter qualquer comunicação com as pessoas, dentro ou fora da instituição de Charenton. Será exercida rigorosa fiscalização para que ele não disponha de lápis, papel, penas, tinta, para que não mantenha, nem mesmo por escrito, contato com outras pessoas”. E, mesmo depois de morto, em 1956, foi figura central de um processo contra Jean-Jacques Pauvert, que tentava editar suas obras.

Sade pagou e continua pagando caro por tudo que pensou, ousou e fez – Sou libertino sim, eu confesso. Imaginei tudo o que se pode conceber neste gênero, mas certamente não fiz tudo o que concebi e seguramente jamais o farei. O julgamento e condenação de Sade não se esgotaram quando o executaram em efígie. No confronto das idéias, quando ele perdeu, foi que ele ganhou. Sua derrota se transformou em sua vitória, porque os outros são apenas “os outros”. Não foi a minha maneira de pensar que provocou a minha desgraça. Foi a maneira de pensar dos outros. Sua obra, ainda que tendo parte dela destruída até mesmo por um de seus filhos, sobreviveu. Sua memória não foi esquecida como um dia ele pediu. Ao contrario: seu pensamento está mais vivo que nunca. Suas obras a cada dia merecem novas edições e cada vez mais são entendidas como cultura e não como pornografia barata. Simone de Beauvoir disse que quando Sade foi preso na Bastilha agonizava o homem e nascia o escritor. E o escritor sobreviveu a tudo que tentaram infligir contra ele. Sade, um dia, vaticinou: Matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei. E não mudou!...