Brecht

         
 Brecht 100 anos
Cena: Antígona
Espetáculo encenado por alunos da Companhia de Teatro-Escola de Arte, dirigido por Luiz Paixão 



         
 Depoimento ao PROGRAMA AGENDA, da Rede Minas, em 19/02/2008





CONTEÚDO

1 - Brecht: resistência e atualidade
2 - Brecht: 110 anos de atualidade
3 - O ator em Brecht
4 - Efeitos de distanciamento na tragédia grega




BRECHT: RESISTÊNCIA E ATUALIDADE

Em sua obra A Vida de Galileu, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, afirma, através das palavras do personagem-título: “... a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana. E se os cientistas, intimidados pela prepotência dos poderosos, acham que basta amontoar saber, por amor do saber, a ciência pode ser transformada em aleijão, e suas novas máquinas serão novas aflições, nada mais”. O seu pensamento sobre a arte e, particularmente, o teatro, não cria uma contradição com o enunciado acima; reforça, sim, este princípio que o norteou em toda a sua incansável busca de um teatro que refletisse o seu momento histórico e tornasse a vida do homem menos cansativa. A sua enorme paixão pelo homem foi o principal motivo de sua preocupação em criar parâmetros para esse teatro que ainda hoje, quarenta e cinco anos após sua morte, continua gerando controvérsias e as mais profundas discussões, seja pela sua forma ou seu conteúdo; sua eficácia e seu destino final. Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos dentro do respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as ações se realizam), mas também que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse mesmo contexto.

Nascido em Augsburg, a 10 de fevereiro de 1898, filho de pais burgueses, Brecht se tornaria mais tarde um fervoroso adversário da burguesia. Negou sua classe, abraçando o marxismo e com ele criou um teatro anticapitalista e antiimperialista. Foi um traidor: Eu era filho de pessoas que tinham posses./Meus pais puseram um colarinho engomado ao redor do meu pescoço/E me educaram no hábito de ser servido/E me ensinaram a arte de dar ordens./Mas, mais tarde, quando/ Olhei ao redor de mim,/Não gostei das pessoas de minha classe/Nem de dar ordens, muito menos de ser servido./E abandonei as pessoas da minha classe/Para viver ao lado dos humildes.

Seu teatro, como o idealizou, se norteou pelo materialismo histórico e dialético. Um teatro de cunho nitidamente proletário e que tem início em 1918, quando escreve sua primeira peça, Baal, bastante influenciada pelo expressionismo, mas já trazendo as características predominantes do seu teatro: profundamente sarcástico, não esconde uma crítica contundente aos valores da sociedade burguesa. Ainda não é um teatro político, na acepção do termo, mas já aponta recursos técnicos que seriam aprofundados e elaborados ao longo de sua curta carreira de pouco menos de trinta anos dedicados ao teatro, seja como encenador, dramaturgo ou pensador.

Brecht vive a experiência das duas grandes guerras mundiais e isso vai marcar irreversivelmente toda sua obra. É um pacifista e a condenação da brutalidade da guerra está presente em diversas peças e inúmeros poemas:

- Eu compreendo a guerra. Meu filho nela ficou. (O Julgamento de Lúculus),

ou ainda, em Mãe Coragem e seus Filhos:

Capelão – Estão enterrando o general. É um momento histórico.
Mãe Coragem – Golpearam minha filha no olho. Para mim este é que é um momento histórico. Ela já está meio destruída, não vai nunca conseguir um marido. E é muda, também por causa da guerra – quando era criança um soldado lhe enfiou alguma coisa na boca. O Queijinho (seu filho) eu não vou ver mais; onde está Eilif (outro filho) só Deus sabe. Maldita seja a guerra!

O ponto de partida para elaboração de sua teoria de um teatro épico, é uma crítica frontal à Poética, de Aristóteles, no que diz respeito à catarse: a tragédia é a imitação de uma ação importante e completa (...) apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções. Brecht entende que o teatro deve atingir a consciência crítica do espectador e, para tanto, elabora um novo teatro - um teatro para a “era científica” -, onde o espectador em vez de ser jogado dentro da ação é colocado diante dela como observador atento, compreendendo o homem como objeto de análise, que é susceptível de ser modificado e de modificar. Da observação nasce o espanto, do espanto surge a compreensão de que assim como está não está bom. Para observar/É preciso aprender a comparar. Para comparar/É preciso já ter observado./ A observação/Constrói um saber, mas um certo saber é necessário/Para saber/observar. E:/Observa mal aquele que registra suas observações/Mas não sabe o que fazer delas.

Esse novo conceito de teatro só se tornaria possível a partir da utilização de uma técnica específica e capaz de levar o espectador a esse nível de consciência crítica, e para tanto, cria o tão discutido efeito de distanciamento, que pretende uma nova forma de analise e apresentação da personagem. Um teatro que apele menos para a emoção do que para a razão. É preciso, portanto, entender que Brecht nunca negou a emoção absolutamente. Mas a emoção para ele possui uma qualidade diferenciada. Emoção que ao proporcionar prazer e divertimento, promova também o conhecimento. Homem da era científica, não se permitia um teatro digestivo, que não correspondesse às necessidades do seu momento histórico, quando a luta de classes se estabelecia de forma irreversível. Lutou, sim, contra a emoção catártica, que tem sua origem na empatia e leva o espectador ao entorpecimento. Reafirmava: o abandono da empatia não se origina de um abandono das emoções e não leva a isto. No teatro, o prazer não se esgota em si mesmo. Uma nova forma de prazer precisava ser inaugurada: o prazer pelo belo, o prazer do conhecimento, da descoberta. A emoção sadia e não a patológica, provocada pela empatia, que leva à catarse. A emoção impulsionadora de novas atitudes. Aquela que promove um posicionamento crítico e leva a uma transformação. Há uma emoção, sim, mas de caráter quantitativo e qualitativo especial, com um apelo mais acentuado à razão. Uma, porém, não exclui a outra, que se intercalam dialeticamente à procura de um equilíbrio: o ponto essencial do teatro épico é, talvez, que ele apela menos para o sentimento do que para a razão do espectador. Em vez de participar de uma experiência, o espectador deve dominar as coisas. Ao mesmo tempo seria completamente errado tentar negar emoção a esta espécie de teatro. Seria o mesmo que tentar negar emoção à descoberta científica.

Porém, e aí há muitas incompreensões, o distanciamento ator/personagem é um processo completo e dinâmico, não apenas uma forma específica que se faz uso em alguns poucos e determinados momentos. Não é apenas relatar ao público os sentimentos e relações das personagens de forma crítica e “fria”, portanto, distanciada, que caracteriza o pensamento brechtiano. E essa compreensão equivocada e simplista tem levado a resultados desastrosos. A má ou ineficiente utilização do Verfremdungseffekt (efeito de distanciamento, efeito-D, efeito-V), em lugar de provocar no público uma reflexão crítica da fábula apresentada, o  coloca numa posição extremamente desconfortável ao ter que defrontar-se com um elemento “estranho” à encenação e que não tem vinculação estético-filosófica com o todo. Brecht não é apenas parte; ao elaborar suas teorias do novo teatro, entendia o distanciamento crítico como uma postura nova, não só do ator, mas do artista de teatro, na relação palco/platéia. Não dá para separar o Brecht encenador do Brecht dramaturgo e pensador. Seu teatro é uma conjunção de fatores que se completam. Os elementos usados de forma separadas dificilmente atingirão o efeito desejado. Claro está também que no ponto central de todo o processo está o ator, e na sua relação com a personagem, pois se esta não se estabelece de maneira correta a platéia não será atingida de forma eficiente. Não basta apenas um ou outro solilóquio entre o ator e o público para que se estabeleça ou  provoque uma atitude ativa no espectador. Teatro épico é mais que isso. Teatro épico é uma formulação complexa e sua eficácia estará comprometida se não houver, por parte de todos, uma consciência e uma necessidade de mudança. E mais, uma compreensão dialética da realidade. Sem opiniões e objetivos nada se pode representar, nada se pode mostrar: como é que alguém poderá discernir o que é que vale a pena saber? A menos que o ator se satisfaça em parecer um papagaio ou macaco, ele tem de adquirir conhecimento sobre o convívio humano, patrimônio de sua época.

O teatro épico é um teatro historicizado, onde a fábula tem primazia sobre a ação dramática linear e progressiva. O ator deve representar os acontecimentos como acontecimentos históricos, isto é, que só acontecem uma vez, que são transitórios e que estão unidos a uma determinada época. O comportamento das pessoas nestes acontecimentos não é simplesmente humano e imutável, tem certas particularidades, tem características ultrapassadas e a serem ultrapassadas em virtude do caminhar da História e está sujeito à crítica do ponto de vista de cada época posterior.

Talvez, nem mesmo o macarthismo, com o seu Comitê de Atividades Anti-americanas (o qual Brecht teve que enfrentar), tenha sido tão anticomunista, quanto os dias de hoje. Fredric Jameson levanta uma questão: Gosto de imaginar o quanto Brecht se deliciaria com um argumento que defendesse não sua grandeza, seu caráter canônico ou seu inesperado valor para a posteridade (sem falar em seu caráter ‘pós-moderno’), mas sua utilidade, no que diz respeito a um futuro incerto ou simplesmente possível, ma a um presente imediato em que a retórica do mercado pós-guerra fria chega a ser mais anticomunista que a dos velhos tempos. Fernando Peixoto afirma: Brecht é um dos escritores fundamentais deste século: por ter revolucionado teórica e praticamente a dramaturgia e o espetáculo teatral, alterando de forma irreversível a função e o sentido social do teatro, utilizando a arte, concebida como resultado de um processo de criação coletiva, como uma arma de conscientização e politização, destinada a ser sobretudo divertimento, mas de uma qualidade específica: quanto mais poético e artístico, mais momento de reflexão, verdade, lucidez, espanto, crítica (...).
A derrota do modelo soviético de socialismo provocou uma nova ordem mundial. No momento em que se fala de globalização da economia e neo-liberalismo, fim do comunismo (ou, socialismo real), uma pergunta se faz necessária: o capitalismo acertou? Suas contradições internas estão superadas? A luta de classes acabou? E se a resposta a essas questões for positiva, podemos afirmar que o teatro de Brecht, sem a menor dúvida, o maior crítico do modo capitalista de produção, está morto. Pois seu teatro só será superado, merecendo um lugar de destaque no museu, quando as contradições do capitalismo tiverem sido superadas. Então, ele não terá mais sentido, pois toda sua análise da realidade vem sustentada por essa crítica ao capitalismo. Se o capitalismo continua oprimindo o homem, desumanizando-o de maneira brutal, que me desculpem seus críticos mais ferrenhos, mas Brecht está mais vivo do que nunca. O capitalismo não acertou. A derrota do socialismo não implica na sua vitória definitiva. Suas feridas continuam expostas, suas contradições mais acentuadas. E mais: enquanto o homem existir como um ser em constante transformação, Brecht se fará presente, pois sua análise do comportamento humano leva em consideração as leis do movimento e essas leis são dinâmicas. Como nunca o homem vai ser perfeito e linear, estará sujeito sempre aos movimentos da história, portanto, um teatro que busca estudar e refletir sobre a história será sempre atual.

Repensar Brecht hoje é fundamental para uma reflexão mais profunda sobre os caminhos, não só do teatro, mas da arte como um todo. Brecht pensou um teatro que respondesse de maneira clara e eficiente aos anseios da classe operária. Um teatro materialista e dialético que não fosse simplesmente um panfleto ou uma tribuna, mas que proporcionasse uma tomada de consciência e uma reflexão mais profunda sobre as contradições fundamentais da sociedade capitalista. Não se trata de uma fórmula e, sim, possibilidades. Uma proposta aberta à discussão e sujeita sempre a adequações e reformulações. Por isso sua atualidade e funcionalidade enquanto exista um modo de produção que explore a força do trabalho e se utilize da mais-valia. Encarar Brecht como definitivo é negar seu pensamento mais essencial. Dogmatizá-lo é não compreender as leis do movimento. Brecht é um ponto de partida para um teatro que se pretende voltado para a luta por uma transformação social, nunca um ponto de chegada. Brecht aponta caminhos, resta saber tomá-lo às mãos e retirar dele o que mais se adequa à realidade. Bernard Dort afirmou com muita felicidade que a preocupação primordial de Brecht [foi], não deixar à posteridade mais uma obra de arte, mas antes de propor aos seus contemporâneos, recriadas pela arte, imagens inteligíveis do mundo e do tempo em que viviam.

            Instigante. Inquietante. Transgressor. Brecht deixou sua marca. Revolucionou o teatro de forma irreversível. Voltou atrás quando foi preciso, para retornar depois com muito mais clareza de propósitos. Pensou um teatro onde as contradições sociais fossem expostas num claro sentido de lutar por uma sociedade mais justa, onde essas mesmas contradições fossem superadas.

            Brecht propõe uma profunda e radical reorientação do fazer teatral e, por mais anti-Brecht que se possa ser, não se pode negar sua fundamental contribuição ao inaugurar uma nova etapa do teatro ocidental. Hoje não se fala de teatro sem se falar em Brecht. Pode-se não concordar com Brecht, mas não se pode negar Brecht, sob o risco de se estar falseando a própria história do teatro.

E deixou registrado para a história, em um de seus mais belos poemas:

Sou um autor de peças./Mostro aquilo que vi. Nos mercados dos homens/vi como o homem era negociado. Isso é o que/eu mostro, eu, o autor de peças.

As palavras que gritam uns aos outros, eu as registro./O que a mãe diz ao filho,/o que o patrão ordena ao empregado,/o que a mulher responde ao marido./Todas as palavras corteses, as dominadoras,/as mentirosas, as ignorantes,/as belas, as ferinas./Todas eu registro.

Para mostrar o que vejo/leio a história de outros povos e outras épocas./Adaptei algumas peças, examinando/com precisão e respectiva técnica, absorvendo/delas o que me interessava.

Eu vi trabalhadores adentrarem os portões da fábrica/e os portões eram altos/mas ao saírem tinham que se curvar./Então eu disse a mim mesmo:/tudo se transforma e é próprio apenas do seu tempo.






BRECHT: 110 ANOS DE ATUALIDADE

 Quais as dificuldades para se montar Brecht hoje?
Sua obra suportaria um debate num momento em que o anticomunismo supera até mesmo os tempos da guerra fria e do macarthismo?
Brecht resiste ao tempo ou foi superado pela globalização e pelo neoliberalismo?
Poderia o mundo atual ser discutido através da sua obra, quando já se decretou a morte de Marx, Engels e Lênin?

O próprio Brecht afirmou: só poderemos descrever o mundo atual para o homem atual, na medida em que o descrevermos como mundo passível de modificação. Para o homem atual, o valor das perguntas reside nas respostas. O homem de hoje interessa-se por situações e por ocorrências que possa enfrentar ativamente.

A obra do dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht (1898-1956) se caracteriza por uma profunda crença no homem. Ainda que sabedor do sistema opressivo a que estão submetidos, expõe as contradições de seus personagens permitindo a eles a possibilidade da escolha através de uma análise da correlação de forças. Seu homem é senhor do seu próprio destino, embora susceptível a transformações. Traz para o teatro a discussão das contradições humanas, revestindo-lhes de incomparável poesia e beleza. Brecht lamentou sempre ter que falar das misérias humanas, mas não podia se furtar e, de fato, não se furtou em momento algum de sua vida em colocá-las como prioridade em sua obra. E enfrenta, na condição de poeta e dramaturgo, uma terrível contradição, quer falar das pequenas coisas cotidianas que tornam um homem redondo e humano e se vê obrigado pelas forças sociais denunciar a guerra, a exploração, a miséria e a fome. Uma rima no meu poema/Me daria quase a impressão de uma insolência,/Em mim se enfrentam/A exaltação quando vejo a macieira em flor/E o horror que me causam os discursos do pintor de paredes./Mas somente o horror/Me faz escrever. Porém, não permite nunca que a aspereza da vida contamine sua obra roubando-lhe a beleza poética e a dimensão humana de seus personagens. Conseguiu como ninguém fazer um teatro ao mesmo tempo profundamente comprometido com a revolução, sem perder em momento algum seu valor poético. Reconhece a função social do artista e a ela se entrega de corpo e alma. Não abre mão de suas convicções políticas e ideológicas e cria uma obra que responde ao seu tempo e sua história, tão consciente e consistente que rompe o seu próprio limite de tempo e espaço e sobrevive ainda hoje como obra pulsante e profundamente atual.

Em um poema, Bertolt Brecht deixou registrada a sua opção política e ideológica e a ela se manteve fiel: Eu era filho de pessoas que tinham posses./Meus pais puseram um colarinho engomado ao redor do meu pescoço/E me educaram no hábito de ser servido/E me ensinaram a arte de dar ordens. /Mas, mais tarde, quando/Olhei ao redor de mim,/Não gostei das pessoas da minha classe/Nem de dar ordens, muito menos de ser servido./E abandonei as pessoas da minha classe/Para viver ao lado dos humildes. Brecht acredita no teatro como um poderoso agente de transformação social e busca novos elementos que contribuam para o melhor entendimento das relações sociais a que os homens estão subordinados. Um dos nomes mais importantes do teatro no século XX, representante máximo da corrente marxista, Brecht rompeu com o chamado teatro dramático e formulou um pensamento para um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos dentro do respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as ações se realizam), mas também que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse mesmo contexto.

O capitalismo não superou suas contradições, que se apresentam a cada dia mais acirradas. O homem ainda tem que lutar arduamente pelo pão e pelos direitos de sobrevivência, numa sociedade determinada pelo lucro e pelo consumo. Para se entender o mundo como passível de modificação, é preciso compreender o homem como agente transformador e, ao mesmo tempo, transformável. Compreender a dinâmica do movimento e suas leis, regidas pela dialética. Compreender que o movimento é absoluto e o repouso relativo. Sem esse mínimo de compreensão não é possível compreender a sociedade atual e toda sua complexidade. O homem não mudou. Continua um ser contraditório e multifacetado, por isso o Galileu de Brecht, ou Mãe Coragem (para ficarmos em apenas dois de sua imensa galeria de grandes personagens), dialogam com as platéias do mundo inteiro de igual pra igual, e nós entendemos claramente o que dizem, porque seus problemas continuam sendo os nossos problemas. Mãe Coragem quando comercializa a guerra e Galileu quando enfrenta a Inquisição e levanta a questão fundamental: qual o compromisso do cientista e da ciência para com a humanidade? Em seu discurso final, Galileu faz sua autocrítica e questiona: Seremos ainda cientistas se nos desligamos da multidão?(...) Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana.

Brecht propõe uma profunda e radical reorientação do fazer teatral, norteado pelo materialismo histórico e dialético, estabelecendo novas possibilidades de análise da sociedade capitalista. Entende a vida como um processo dinâmico e, para analisá-la necessita de um novo teatro. Um teatro científico e de cunho nitidamente proletário e que tem início em 1918, quando escreve sua primeira peça, BAAL. Desenvolve uma nova teoria de teatro que visa explicar e fazer entender as lutas que o homem trava no seu dia-a-dia contra os diversos tipos de opressão, suas contradições, suas necessidades e possibilidades, das mais simples às mais complexas. Um teatro para a era cientifica que não pode se furtar a refletir a realidade através da luta de classes, onde a crítica ao modo de produção capitalista revela a exploração do homem pelo homem: Eu vi trabalhadores adentrarem os portões da fábrica / e os portões eram altos / mas ao saírem tinham que se curvar. / Então eu disse a mim mesmo: / tudo se transforma e é próprio apenas do seu tempo.

O realismo dialético (denominação bem mais abrangente do que teatro épico), no pensamento brechtiano, tem como fundamento o distanciamento, que não está ligado somente a uma nova postura do ator diante de seu personagem, mas a uma nova e complexa postura cênica, pois envolve não só o ator, embora ele seja o elemento principal, mas todas as componentes teatrais: a dramaturgia não aristotélica, uma nova concepção cenográfica e de figurinos, iluminação não ilusionista, gestos, posturas e movimentos, tudo isso formando uma unidade que tem como objetivo principal denunciar as relações sociais através do que Brecht chamou gestus social, ou seja, o conjunto de elementos que visa expor as relações sociais, nas quais os homens de uma determinada época se relacionam. Brecht nos dá um exemplo bastante simples e objetivo: um pão pode ser apenas um alimento, mas também pode representar a miséria de um determinado personagem, neste momento o pão passa a ser gestus social. É com essa nova maneira de pensar o espetáculo Brecht transforma o teatro de sua época e de deixa influências profundas nos dias de hoje.

Brecht viveu a experiência das duas grandes guerras mundiais e isso marcou irreversivelmente toda sua obra. Foi perseguido por Hitler – a quem sempre tratava como o pintor de paredes – e viveu vários anos no exílio mudando mais de país do que de sapatos; enfrentou o Comitê de Atividade Antiamericanas, em 1947, até poder voltar para RDA, outubro de 1948 – quando voltei/meu cabelo ainda não estava grisalho/e eu era feliz -, e ali experimentar o socialismo e desenvolver seu trabalho à frente do Berliner Ensemble, até sua morte. Foi um pacifista e a condenação da brutalidade da guerra está presente em diversas peças e inúmeros poemas. Coloca o seu teatro à disposição da luta pela paz, pela democracia e pelo socialismo. Um teatro que promova um posicionamento crítico e leve a uma transformação: sem opiniões e objetivos nada se pode representar, nada se pode mostrar: como é que alguém poderá discernir o que é que vale a pena saber? A menos que o ator se satisfaça em parecer um papagaio ou macaco, ele tem de adquirir conhecimento sobre o convívio humano, patrimônio de sua época. As terríveis experiências da guerra e sua incansável luta contra o capitalismo vão balizar seu pensamento teatral anticapitalista e antiimperialista: O que é um assalto a banco, comparado com a fundação de um banco? O que significa matar um homem, comparado com contratá-lo para um trabalho assalariado?

Muito tem se falado de Brecht, a favor e contra. Já foi satanizado e glorificado. Execrado e dogmatizado. Isso é muito saudável e até democrático. Brecht não é um pensamento fechado e conclusivo, está, e deve estar sempre aberto a adequações e atualizações dentro de cada realidade, pois é ela, a realidade, que determina que caminhos tomar. Entender Brecht como um ponto de partida, como um formulador de projetos, como um pensamento que estimula o debate, não como uma pensamento obtuso e arcaico.  O que não se pode aceitar é o discurso vazio e inócuo, que serve apenas para deixar clara a não compreensão da profundidade de seus objetivos e do que seja o realismo dialético. Dizer simplesmente que Brecht não tem emoção é chover no molhado. É argumento vazio daqueles que querem denegrir sua teoria. Brecht nunca negou a emoção, muito antes pelo contrário, sempre ressaltou sua importância: o que é frio e mecânico não se coaduna com a arte. Por outro lado, muitos equívocos foram cometidos por não se compreender Brecht. Autor extremamente popular foi transformado, desastrosamente, num dramaturgo de difícil entendimento, hermético mesmo e, muitas vezes, até chato. O realismo dialético deu lugar a uma série de erros e incompreensões do seu pensamento, transformando o “efeito de distanciamento” numa idiotice sem fim, acreditando que ele se estabelece apenas através de uma mudança de atitude do ator ao dirigir-se ao público. Nada menos brechtiano que isso. Distanciamento é um processo muito mais complexo que um mero comentário do ator sobre o comportamento do personagem ou sobre determinada situação. Sem compreender a necessidade da aplicação das leis da dialética e sem levar em consideração as relações sociais a que os personagens estão subordinados, banalizam todo o seu pensamento. Brecht completaria 110 anos esse mês e certamente ficaria muito decepcionado ao ver que a utilidade de seu teatro estaria sendo desviada para um simples entretenimento, embora entendesse o teatro como diversão, queria que ele fosse também útil para conscientização contra todos os males que afligem o ser humano. Por ter visto como o homem era negociado, é que Brecht esteve sempre ao lado dele.







O distanciamento ator/personagem é um processo completo e dinâmico, não apenas uma forma específica que se faz uso em alguns poucos e determinados momentos. Não é apenas relatar ao público os sentimentos e relações das personagens de forma crítica e “fria”, portanto, distanciada, que caracteriza o pensamento brechtiano. Seria minimizar por demais todo seu esforço em desenvolver um novo teatro para a era científica. E essa compreensão equivocada e simplista tem levado a resultados desastrosos. A má ou ineficiente utilização do Verfremdungseffekt (efeito de distanciamento, efeito-D, efeito-V), em lugar de provocar no público uma reflexão crítica da fábula apresentada, o coloca numa posição extremamente desconfortável ao ter que defrontar-se com um elemento “estranho” à encenação e que não tem vinculação estético-filosófica com o todo. Brecht não é apenas parte; ao elaborar suas teorias do novo teatro, entendia, e deixa isso bastante claro em seus escritos, que o distanciamento crítico deve ser uma constante na relação palco/platéia e, sobretudo, na relação ator/personagem, pois se esta não se estabelece de maneira correta aquela não será alcançada em seus objetivos. Não basta apenas um ou outro solilóquio entre o ator e o público para que se estabeleça ou provoque uma atitude ativa no espectador. É a relação ator/personagem que permite uma decodificação dos Gestus Social apresentados em cena de forma artística, e o conforto necessário do público para que se verifique sua atitude crítica. A postura do ator deve ser tal que ele

não se esquece jamais, e nem tampouco permite que ninguém se esqueça, que quem está em cena não é a pessoa descrita, mas, sim a que faz a descrição.

E, Brecht acentua ainda, para não deixar dúvidas:

o que o público vê não é a fusão entre quem descreve e quem está sendo descrito, não é um terceiro, autônomo e não contraditório, com contornos diluídos do primeiro (o que faz a descrição) e do segundo (o que é descrito) ... as opiniões e os sentimentos do indivíduo que descreve e do que é descrito não estão sintonizados.

É fácil observar no texto acima o que Brecht pensava sobre a relação ator/personagem: não é apenas circunstancial. Em não se permitindo um envolvimento mais profundo do ator com sua personagem, o que se procura é a postura de constante consciência crítica do que está narrado. O ator deve ter domínio completo sobre a personagem de tal forma não permitir sua identificação com ela, pois, se isso se der, o público também será levado a uma identificação; a uma relação de empatia que o conduzirá a uma perda da consciência analítica, tornando-o agente passivo da fábula. A metamorfose do ator em cena tende apresentar não as relações sociais enfrentadas pela personagem, mas o seu pathos. É nesse ponto que o caminho se abre para a empatia e possível catarse, pois o público passa a sofrer com a personagem. Os dramas de um passam a ser os dramas do outro, os sofrimentos e alegrias mostrados no palco ultrapassam a ribalta e batem de cheio no coração do espectador e o levam a um nível determinado de tensão e fazem com que as emoções da personagem se confundam com as suas próprias emoções:

O ator, em cena, jamais chega a metamorfosear-se integralmente na personagem. O ator não é nem Lear, nem Harpagon, nem Schweyck, antes os apresenta. Reproduz suas falas com a maior autenticidade possível, procura representar sua conduta com tanta perfeição quanto sua experiência humana o permite, mas não tenta persuadir-se (e dessa forma persuadir, também, os outros) de que nele se metamorfoseou completamente.
A “verdade cênica”, proposta por Stanislavski, aqui não deve ser considerada; do ator não é cobrado que acredite e defenda os pontos de vista de sua personagem, e essa liberdade permite não só um maior entendimento das relações objetivas apresentadas pela fábula, como também uma imparcialidade ao narrá-las. Para distanciar o público,

o artista tem primeiro que distanciar a si próprio.

Um dos trabalhos mais importante de Brecht sobre o ator é o CENA DE RUA - Modelo de uma Cena de Teatro Épico, onde há uma clara demonstração de como o ator deve se comportar em cena:

Ele não deve “enfeitiçar” ninguém; não deve pretender arrebatar quem quer que seja da realidade cotidiana com o fito de elevá-lo a uma “esfera superior”. Não necessita de qualquer poder de sugestão... A apresentação... é essencialmente repetitiva: já ocorreu o acontecimento, trata-se agora de sua repetição.

O teatro ilusionista - chamado por Brecht de dramático - procura, através de uma série de técnicas convencer, ou melhor, iludir o espectador que a ação está acontecendo naquele lugar pela primeira vez. O espectador é jogado dentro da ação, enquanto o ator tenta convencê-lo de que não sabe o que vai acontecer, pois ele (ator) também está vivenciando aquela ação pela primeira vez. O ator épico não esconde em momento algum de que está contando uma fábula e, mais, deve lembrar ao espectador dessa sua condição e, para tanto, vai se utilizar de determinadas técnicas, bastante específicas, para manter-se distanciado da personagem e, assim, distanciar também o público.

Não há a menor necessidade de criar a ilusão de que os demonstradores (no caso, atores) são realmente os personagens imitados.

Num primeiro momento é possível pensar que o ator brechtiano é um ator frio, sem emoções, puramente racional. Tal pensamento tem origem em dois pontos básicos: 1o.) ignorância da proposta do teatro épico; 2o.) preconceito em relação a tudo que não seja realista, “emocional”, visceral. É preciso entender que Brecht nunca negou a emoção absolutamente. O que procurou, sim, foi uma forma diferente de emoção, de uma qualidade específica. Emoção essa que ao proporcionar prazer, promova também conhecimento. Homem da era científica, não permitia um teatro digestivo, que não correspondesse às necessidade do seu momento histórico, quando a luta de classe se estabelecia de forma irreversível. Lutou conta a emoção catártica, que leva o espectador a um estágio de entorpecimento. E, para tanto, afirmava que

o abandono da empatia não se origina de um abandono das emoções e não leva a isto.

O prazer pelo belo, o prazer do conhecimento, da descoberta. A emoção sadia e não patológica, provocada pela empatia, que leva à catarse. A emoção impulsionadora de novas atitudes que leva o homem a enfrentar as condições da vida. Há uma emoção, sim, mas de caráter quantitativo e qualitativo especial, com um apelo mais acentuado à razão. Uma, porém, não exclui a outra, se intercalam dialeticamente à procura de um equilíbrio:

o ponto essencial do teatro épico e, talvez, que ele apenas menos para o sentimento do que para a razão do espectador. Em vez de participar de uma experiência, o espectador deve dominar as coisas. Ao mesmo tempo seria completamente errado tentar negar emoção a esta espécie de teatro. Seria o mesmo que tentar negar emoção à descoberta científica.

Quanto a atitude do ator, Brecht acentua que ele

deve apenas mostrar sua personagem, ou melhor deve fazer algo mais do que vivê-la; o que necessariamente, não significa que, ao representar um apaixonado, deve ser mostrar frio. Somente os sentimentos pessoais do ator é que não devem ser, em princípio, os mesmos que os da personagem, a fim de que os sentimentos do público não se tornem também, em princípio, os da personagem. Neste ponto a audiência deve gozar de completa liberdade.

Em determinado momento de seu estudo, chegou mesmo a afirmar que

o ator não precisa abandonar totalmente os meios da empatia durante seus esforços para representar e mostrar o procedimento de determinadas pessoas.

Pode parecer, em princípio, uma negação do que foi dito, mas não se pode querer compreender Brecht como um projeto acabado, pronto para o consumo; Brecht é um processo sempre em transformação, sujeito sempre a adaptações, reformulações. Colocar seu pensamento como forma definitiva é negá-lo, é violentar o materialismo histórico e dialético, que é a base de toda renovação que propôs.

É verdade que Brecht não deixou uma sistematização de seu pensamento tão elaborada quanto Stanislavski; deixou apenas e somente algumas indicações de técnicas que podem ser utilizadas pelo ator. Deixou uma concepção de teatro, não um método. E esse tem sido o motivo de incompreensões e concepções equivocadas na abordagem de sua estética.

Ao estabelecer uma nova relação ator/personagem, Brecht partiu da aplicação prática das leis do movimento, fundamental para a compreensão do trabalho a ser desenvolvido. A análise objetiva das relações sociais sob a óptica do materialismo histórico e dialético é que deve mover todo o processo. O que importa ao ator é a compreensão crítica do comportamento das personagens em tais ou tais situações. O estudo psicológico, que procura as razões das ações dos personagens deve ser substituído por uma investigação criteriosa de suas contradições, pois é dessa luta de contrário que surgirá um homem concreto, capaz de entender concretamente as relações da vida. Compreender para transformar.

Tomemos como exemplo a cena Canção da Grande Capitulação, da peça Mãe Coragem: Anna Fierling, a Mãe Coragem, faz uma avaliação de sua força acumulada e percebe que não é o momento para defrontar-se com o Capitão do exército para o qual ela vende suas mercadorias, apesar de no início da cena estar disposta a brigar pelos prejuízos que sofrera, resolve não dar queixa e seguir seu caminho.

Numa abordagem desta cena não interessam os motivos psicológicos que a motivaram mudar de idéia, mas sim, a avaliação da correlação de forças demonstrada e a certeza de que se é ou não o melhor momento para lutar. As contradições acentuadas, tanto na personagem central quanto no Jovem Soldado, apontam de maneira bastante concreta que um embate naquele momento só faria enfraquecê-los ainda mais em suas reivindicações. Mãe Coragem precisa da guerra para sobreviver e afirma ao Jovem Soldado: - “já compraram todo nosso brio: eu, se der um muxoxo, posso prejudicar o meu negócio.” - Ela não vai sofrer mais por voltar atrás em sua posição inicial, seu negócio continua, pois a guerra não vai parar agora. O que ela faz é colocar na balança os prós e contras de sua decisão e assumir. A realidade é que impôs a ela o caminho a seguir. Houve uma avaliação e desse processo surge uma definição de postura, sem maiores dramas ou angústias. Esse também é o caminho que deve ser perseguido pela atriz que representar a vivandeira: uma postura tranqüila, sem emocionalismos ou sentimentos exacerbados. Compreender, sim, as transformações pelas quais passou a personagem. Não há porque não compreender um processo de decisão sem maior envolvimento emocional. É essa postura tranqüila, relaxada e crítica, que levará o público a um entendimento da fábula e, conseqüentemente - pelo menos é isso que se espera -, uma tomada de posição ante o embate de idéias apresentado.

Obviamente, Mãe Coragem tem sua individualidade e suas característica pessoais e psicológicas preservadas, afinal é uma personagem com todas as nuances de um ser humano. O que é preciso entender é que não são esses dados que deverão prevalecer ao se colocar Anna Fierling em cena: sua história de vida importa menos; não é isso que interessa a Brecht. Seu ângulo de observação é o comportamento frente às contradições apresentadas. Não assume posição para nenhum dos lados: deixa que o espectador analise e tire suas próprias conclusões do erro ou acerto de tal decisão. O ator deve ter claro para si essa postura crítica; pode até mesmo até mesmo defender um lado com mais veemência do que o outro, mas o importante é mostrar que a personagem tem uma ou mais possibilidades de escolha.

Partindo dessa compreensão inicial, Brecht recomenda dedicar-se um maior tempo aos ensaios de mesa, pois eles provocarão maior entendimento da fábula e do comportamento das personagens e isso, segundo ele, impede

uma representação dos personagens e dos acontecimentos que seja demasiado “impulsiva” e sem crítica,

esclarecendo que

podem ser feitos ensaios de mesa numa quantidade maior do que a usual. O ator deve evitar qualquer identificação prematura e durante o maior tempo possível sua atividade deve ser a de quem lê para si (e não para os outros).

O ator convencional parte do pressuposto que não sabe o que vai acontecer no final da peça: claro, ao tentar se aproximar o mais possível da vida, tem que reagir a cada momento como se fosse a primeira vez, para que suas reações seja as mais “naturais” e, dessa maneira, buscar o envolvimento com a personagem. Em Brecht há que se tomar o caminho oposto: o ator sabe exatamente qual será a próxima fala e não esconde isso; para ele não há surpresas. Nem para o ator nem para a personagem.

O ator não deve mais iludir o público mostrando que se trata de uma personagem fictícia no palco e não dele, ator, não deve também simular que o que está acontecendo no palco não foi ensaiado, e que está acontecendo pela primeira vez,

pois, só assim, estando clara sua postura no palco é que levará o público a essa atitude crítica almejada. O público não será iludido de uma “verdade” mostrada em cena. Não basta também somente o conhecimento antecipado da próxima “fala”, ao ator brechtiano é sempre cobrado mais. Ele deve

compreender as característica e saber avaliar, não só o desenrolar dos acontecimentos, como também o comportamento do personagem que irá interpretar; ele não pode aceitar nada como dado, que “não poderia deixar de acontecer desta maneira”, que “era de se esperar em virtude do caráter dessa pessoa”.

Ao ator é exigido uma qualidade especial de entendimento; em Brecht não basta ser talentoso ou intuitivo. O rigor de análise e compreensão é fundamental em seu trabalho criador. O materialismo como vetor do seu ato deve ser compreendido de maneira aprofundada. Um teatro que se propõe ser o teatro da idade da ciência exige um pouco mais do que boa vontade, pois o ator tem que compreender contradições marcantes, onde a luta de classes se estabeleceu e determinou um novo tempo. É a esse novo tempo que o ator tem que pertencer e conhecer a fundo. Pois só assim poderá compreender a proposta desse teatro que exige uma percepção aguçada permanentemente para ler o seu papel com uma atitude de espanto e contradição, entender e saber que existem sempre duas ou mais alternativas para a mesma contradição apresentada. Nada pode ser colocado como conclusivo. A visão dialética de que sempre há uma outra solução, um outro caminho que poderia ser tomado e o ator tem que estar pronto a compreender essa realidade e criticá-la na personagem e, assim, ter condições de reduzir seu nível de envolvimento.

Sem opiniões e objetivos nada se pode representar, nada se pode mostrar: como é que alguém poderá discernir o que é que vale a pena saber? A menos que o ator se satisfaça em parecer um papagaio ou macaco, ele tem de adquirir conhecimento sobre o convívio humano, patrimônio de sua época.

É preciso ter sempre em mente que o teatro épico é um teatro historicizado, onde a fábula tem primazia sobre a ação dramática linear e progressiva. Todos os mecanismos são utilizados para colocara o espectador numa posição de observador crítico dos acontecimentos; ao acentuar sua distância do fato cênico, permite-se-lhe uma melhor condição de análise. Claro, ao saber do já acontecido o suspense é interrompido e o foco de interesse passa a ser a análise dos comportamentos apresentados. A relação com a fábula atinge um patamar mais elevado e o espectador não “corre o risco” de um envolvimento emocional que prejudique sua condição de observador.

Como uma das técnicas a serem utilizadas pelo ator, Brecht recomenda a transposição para o passado. Ao fazer tal transposição o ator observa sua personagem com muito mais clareza, pois sabedor dos acontecimentos que a envolveram, tem sua capacidade de discernimento acentuada e deve apresentá-la (a personagem) com maior imparcialidade, porém, com consciência crítica de suas ações. O épico é narrativo, o narrativo é histórico, o histórico é distanciado. A facilidade de compreensão do fato já ocorrido e, portanto, conhecido, provocará no ator a condição necessária para não se identificar emocionalmente com a personagem.

O ator deve representar os acontecimentos como acontecimentos históricos, isto é, que só acontecem uma vez, que são transitórios e que estão unidos a uma determinada época. O comportamento das pessoas nestes acontecimentos não é simplesmente humano e imutável, tem certas particularidades, tem características ultrapassadas e a serem ultrapassadas em virtude do caminhar da História e está sujeito à crítica do ponto de vista de cada época posterior.

O ator “assume” a posição de um historiador atento ao desenvolvimento histórico da fábula; o comportamento das personagens altera-se, acentuando suas contradições. O ator deve, portanto, saber analisar constantemente essas transformações. Porém, não basta apenas se colocar no presente e deixar a fábula no passado, de maneira meramente mecanicista; de sua observação do fato deve nascer o espanto já referenciado anteriormente, pois só aí, consciente e analiticamente, o ator terá condições de provocar no público o mesmo espanto que utilizou em seus ensaios. Obviamente ao ter maior conhecimento da fábula do que o público que está vendo o espetáculo pela primeira vez, cabe ao ator (e esta é sua função primeira) tentar desvendar as contradições e mostrar de maneira clara as transformações ocorridas.

A transposição para o passado faz com que o ator veja a fala como algo passado. Com isso a fala também se distancia sem que o ator assuma uma posição irreal, porque ele, ao contrário do espectador, já leu a peça até o fim. Portanto, a partir do fim e das conseqüências ele pode julgar a fala melhor do que alguém que sabe menos e a quem o texto é mais estranho.

Esta transposição não deverá acontecer somente no período de ensaios, deverá permanecer também durante o espetáculo. Claro que quanto mais profundamente for trabalhada nos ensaios, mais facilmente permanecerá durante os espetáculos. Sua atitude deve trazer em si uma contradição, pois

o ator fala no passado e a personagem fala no presente,

e essa contradição é que deve ser base técnica do seu trabalho e, quanto mais compreensão desta contradição, mais explícito para si mesmo a maneira de abordagem da fábula como um todo.

A transposição para o passado é uma técnica bastante eficaz, mas dela não se pode fazer um uso isolado; deve ser acompanhada por outros mecanismos que se completam e atingem melhor eficácia. Brecht sugere que se faça uso da transposição para a terceira pessoa do singular que, mais facilmente, levará o ator a estabelecer essa distância mínima necessária que não permita o seu envolvimento com a personagem. Na verdade, as duas técnicas se prestam para, ao distanciar a personagem, transformá-la em objeto de observação do ator. Ela (a personagem) agiu de determinada maneira em determinada situação, quando poderia ter agido de outra maneira. Essa deve ser a postura do ator e qualquer processo de aproximação (por exemplo: fazer uso da primeira pessoa do singular) tende a transformá-lo num agente das emoções apresentadas, portanto, sujeito à identificação, à empatia. Ao ator épico cabe acentuar a distância do seu objeto e, assim, adquirir condições mais objetivas de contar a história de sua personagem pela óptica do seu comportamento social e suas contradições e, só aí, poder mostrar

o comportamento humano... como alterável; próprio do homem como dependente de certos fatores sociais e econômicos e, ao mesmo tempo, capaz de alterá-los.

Uma outra e importantíssima técnica sugerida por Brecht é dizer o texto acompanhado pelas instruções e comentários do autor. Esse procedimento leva o ator a relatar os acontecimentos e não vivenciá-los. Há uma transformação bastante sensível em sua postura; o relato não o permite envolver-se e perder-se na personagem. Brecht ressalta que

falando o texto acompanhado pelas instruções na terceira pessoa do singular dois tons de voz diferente se chocam e com isso o segundo [a fala] se torna distanciado. Além disso a representação torna-se distanciada porque ela somente se dá depois de ter sido definida e anunciada por palavras.
A “quebra” provocada pela narração da rubrica do autor estimula uma nova postura do ator frente ao texto a ser dito, que passa, a partir desse momento, a ser uma referência histórica. Ao dizer “ele levantou-se e como estava com fome disse irritado...” antes da fala, esta ganhará um outro tipo de intencionalidade. Ao contrário do sub-texto que busca um efeito psicológico mais acentuado, as rubricas acentuam o efeito narrativo. A ação da personagem passa a ser uma demonstração do ator de um fato que aconteceu em determinada circunstância e de maneira já definida anteriormente.

Como exercício para o processo de ensaios, Brecht costumava mesmo escrever trechos para serem ditos pelos atores, como por exemplo, em O Preceptor, na cena III de sua adaptação. A cena é a seguinte:

(Entra o Conde Wermuth. Após alguns cumprimentos silenciosos, ele se senta no sofá.)
CONDE - Vossa Excelência já viu o novo professor de dança que chegou de Dresden? Trata-se de um Marchese de Florença. Seu nome é... Em todas as minhas viagens só encontrei dois dançarinos que colocaria acima dele...

Brecht escreveu um texto para exercícios em que o ator devia dizer o seguinte:

Então o Conde Wermuth entrou. Após alguns cumprimentos silenciosos, sentou-se no sofá e perguntou se Madame já tinha visto o novo professor de dança que havia chegado de Dresden. Era um Marchese de Florença. Seu nome é..., o conde fez uma pequena pausa, porque sua memória falhou. Mas agilmente acrescentou que em todas as suas viagens só havia encontrado dois dançarinos que colocaria acima deste.

A personagem continua falando no presente, mas o ator, através das técnicas sugeridas, passa a falar no passado, referenciando-se a um fato já ocorrido. Antecipar para si as ações da personagem levam-no facilmente à posição de demonstrador. Tais narrativas podem ser também absolutamente críticas em relação às posições assumidas pela personagem. Um outro exemplo: para a montagem de Antígona, Brecht escreveu para os seus atores “versos de ligação que os levariam a assumir a posição de narradores”, que deveriam dizer antes de falar o texto ou entrar em cena, que merecem ser transcritos para uma melhor compreensão desta técnica:

Mas Antígona, a filha de Édipo, tomou o vaso
E foi recolher terra para cobrir o corpo de Polinices
Que, em sua cólera, o tirano atirara aos cães e aos abutres.

ou, num outro instante,

Então Antígona chorou amargamente a infelicidade dos irmãos.

A união das três técnicas - transposição para o passado, terceira pessoa e rubricas - permitem ao ator uma abordagem completamente diferenciada da convencional ou naturalista. São técnicas eficientes e de fácil execução, que possibilitam sua utilização, não só no processo de ensaios, como também nas apresentações. São como um sub-texto de uma qualidade específica que tem como objetivo destacar o caráter épico da representação.

Sempre com o objetivo de acentuar a relação dialética da personagem colocada em cena, Brecht propõe uma técnica que orienta o ator no sentido de um melhor aprofundamento nas suas contradições e que visa deixar claro que sempre há mais de uma alternativa para uma mesma situação apresentada. A fixação do não-porém é um mecanismo que leva o ator a uma reflexão mais profunda de sua personagem, a partir do instante que localiza objetivamente suas contradições e lhes dá concretude. Tendo essas contradições claras para si, o ator levará o público a compreendê-las melhor e mais facilmente. E, para isso, Brecht insiste que

durante todas as passagens essenciais o ator deve encontrar e fazer pressentir alternativas que indiquem o contrário daquilo que está representando... e que ele só está representando uma das variantes possíveis.

Apesar de aparentemente complexa, a técnica do não-porém exige um procedimento bastante simples, que consiste em detectar essas contradições “essenciais” e dar-lhes forma. Por exemplo, o ator não diz, como o texto exige “eu perdôo você”, mas, buscando acentuar seu contrário e mostrar outra alternativa, diz: “você me pagará”. Obviamente, ao inverter de maneira tão radical o sentido da fala, o ator apresentará essa outra alternativa da personagem que, certamente, levará a uma reação em cadeia e a cena tomará um rumo diverso ao proposto inicialmente. Desse processo o ator conseguirá uma síntese dos contrários e, ao apresentar a personagem ao público, estará apresentando as duas alternativas, seja por meio de gestos, inflexões ou movimentos definidores de uma tomada de decisão. Como propõe Brecht,

naquilo que ele faz deve estar compreendido aquilo que ele não faz.

Há um instante de reflexão da personagem e a decisão é tomada. Porém, antes dessa decisão, as duas alternativas foram colocadas em choque. Apresentado nesses termos o homem passa a ser o “objeto de análise” e mostrado “como uma realidade em processo” o que, naturalmente, fará destacar o seu caráter dialético e levará o espectador a uma visão diferenciada das relações sociais, onde nada é absolutamente conhecido.

A observação para Brecht é elemento fundamental como ponto de partida para o trabalho criador. É a partir da coisa observada que se criará condições de interferir e modificar essa mesma coisa, possibilitando, assim, a concretização das leis do movimento. Nessa perspectiva e, fixando-se no objetivo de dar ao ator melhores subsídios de entendimento e realização do seu trabalho, Brecht sugere uma elaboração de um tipo específico de observação do outro e de si mesmo, visando com isso atingir o efeito de distanciamento. Desta observação nascerá uma consciência; a elaboração e aprofundamento desta consciência provocarão o surgimento de uma postura crítica; da postura crítica, uma nova maneira de encarar a personagem.

No processo de ensaios, Brecht propõe ao ator assistir sua própria personagem representada por outro ator. Segundo ele, esse procedimento aguça a percepção daquele que assiste, pois coloca-o numa posição de observador crítico daquilo que está sendo mostrado. E, como o outro não tem nenhum maior envolvimento com a personagem, não efetuará uma “transformação completa” e será apresentado apenas o comportamento da personagem, de maneira bastante esquemática; sua representação será muito mais técnica do que emocional. Em relação a esse ponto, Brecht esclarece:

como não se trata do seu próprio personagem ele não se transforma completamente, ele salienta a parte técnica e se mantém na posição de quem está dando uma sugestão.

Brecht percebeu com maior clareza a técnica da observação de si mesmo quando assistiu o ator chinês Mei Lan-Fang se apresentando em Moscou, em 1935. A partir daí passou a utilizar esse procedimento como meio para se chegar ao distanciamento. A observação dos próprios gestos, posturas e movimentos, cria no ator uma atitude de espanto e contradição. Brecht sempre entendeu o gesto (não confundir com gestus) como elemento primordial para se acentuar o caráter épico da representação e as contradições e sentimentos das personagens, chegando mesmo a afirmar que

o ator chinês consegue o efeito-D observando seus próprios movimentos

e, referindo-se a Mei Lan-Fang, esclarece que

a auto-observação do intérprete, um ato artístico de autodistanciamento, impedia o espectador de perder-se completamente no personagem, ao ponto de perder sua própria identidade, e emprestava uma historicidade esplêndida aos acontecimentos... A platéia identificava-se com o ator, como observador e, de acordo com isso, adotava também uma atitude de observação.

Porém, o gesto para Brecht, como já se percebe, não é um gesto qualquer. Ele tem que trazer em si um significado que traduza o que se pretende mostrar e, ao mesmo tempo, ser belo. Não se concebe um espetáculo onde o belo não seja ressaltado e exultado. E, nos gestos, além da beleza, a objetividade tem que estar inserida; o público deverá ser capaz de fazer uma leitura do gesto e entender o que a fábula pretende contar, a personagem deverá ser compreendida pelos seus gestos, posturas e movimentos (e, nesse momento o gesto deverá se transformar em gestus), sem necessitar, absolutamente que o texto diga por si:

Todo sentimento deve se refletir no exterior, isto é, deve ser transformado em gestos. O ator precisa encontrar uma expressão que dê significado às emoções de sua pessoa, possivelmente uma ação que revele o seu estado emocional.

Tendo atingido a totalidade do gesto (beleza e objetividade) o processo de auto-observação se estabelece de maneira consciente e o ator consegue o distanciamento. O Ato de observar é, por si só, distanciado. No gesto o ator pode acentuar ou contradizer algo que está sendo dito, como também uma antecipação do gesto estabelece uma nova relação de historicidade com a fábula. Brecht destaca um ponto de grande importância que é a precisão do gesto: posto não se tratar de um gesto naturalista e, sim, teatral, repleto de significados, é necessário ser um gesto definitivo que não pode sofrer interferências do acaso a cada apresentação, já que essa interferência levaria as relações apresentadas a uma solução de continuidade, não serão mais as mesmas, pois aquele gesto não corresponde mais ao que foi proposto inicialmente.

Tudo que o ator apresenta no espetáculo mediante a técnica dos gestos... deve estar pronto, testado e definitivo.

Se, como afirma Brecht,

os gestos feitos com uma elegância especial, com força e graça, ocasionam o efeito-D,

esses gestos precisam estar amparados por uma elaboração específica para que não se corra o risco de se utilizar uma técnica apenas e tão somente formalista. A discussão forma/conteúdo em Brecht adquire um significado especial e que não pode ser menosprezado. É muito fácil querer entender sua técnica dos gestos e movimento como pura e simples formalização. E disso ele já foi rotulado por alguns críticos que, por motivo ou outro, gastaram páginas e páginas procurando enquadrá-lo na galeria formalista. Claro está que essa discussão ainda vai longe e não seremos nós que daremos a palavra final. É preciso, porém, ter um claro entendimento da sua proposta de um novo teatro para uma nova era - a era científica. A era onde a relação capital/trabalho se estabeleceu de maneira definitiva e a luta de classes se impôs com determinação.

Brecht pensou um teatro que respondesse de maneira clara e eficiente aos anseios da classe operária. Um teatro materialista e dialético que não fosse simplesmente um panfleto ou uma tribuna, mas que proporcionasse uma tomada de consciência e uma reflexão mais profunda sobre as contradições fundamentais da sociedade capitalista. Não se trata de uma fórmula e, sim, possibilidades. Uma proposta aberta à discussão e sujeita sempre a adequações e reformulações. Encarar Brecht como definitivo é negar seu pensamento mais essencial. Dogmatizá-lo é não compreender as leis do movimento. Brecht é um ponto de partida para um teatro que se pretende voltado para a luta por uma transformação social, nunca um ponto de chegada. Brecht aponta caminhos, resta saber tomá-lo às mãos e retirar dele o que mais se adequa à realidade.

Instigante. Inquietante. Transgressor. Brecht deixou sua marca. Revolucionou o teatro de forma irreversível. Voltou atrás quando foi preciso, para retornar depois com muito mais clareza de propósitos. Pensou um teatro onde as contradições sociais fossem expostas num claro sentido de lutar por uma sociedade mais justa, onde essas mesmas contradições fossem superadas.

Em seu Pequeno Organon Para o Teatro, afirmou:

Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos dentro do respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as ações se realizam), mas também que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse mesmo contexto.





EFEITOS DE DISTANCIAMENTO NA TRAGÉDIA GREGA


            ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS


            Brecht, ao desenvolver sua teoria do Verfrendungsefekt (efeito de distanciamento), parte fundamentalmente de uma crítica à Poética, de Aristóteles, no que diz respeito à catarse.

            Em sua definição da Tragédia, Aristóteles afirma:

A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções.

            E, para operar a “purgação”, Aristóteles desenvolve um sistema de coerção do espectador, sistema que, segundo o Estagirita, segue determinadas formas de construção dramática, tendo como ponto de partida a empatia.

            Brecht, ao pensar uma nova estética, propõe exatamente o contrário do pensador grego. Para o encenador alemão, o teatro deve ter outros objetivos que não a catarse; deve atingir a consciência crítica do espectador e desenvolvê-la. Utiliza-se, para isso, de mecanismos característicos que procuram mostrar ao espectador que ele está em um teatro assistindo atores representarem uma fábula. Oportunamente analisaremos com maior rigor esse processo em Brecht. O que nos interessa no momento é verificar até que ponto a Tragédia Grega já possuía alguns desses elementos em sua estrutura formal e mostrar que em vários momentos ela fugia completamente de uma proposta aparentemente ilusionista, deixando bastante claro que o que o público assistia era teatro e não uma fatia de vida. E mais: em que essa utilização do elemento nitidamente teatral influenciou o encenador alemão na formulação de sua própria poética; quais mecanismos são comuns a uma e a outra forma.

            Vamos, então, aos dados...


O MITO

            A Tragédia Grega em sua fase áurea (entenda-se: período em que viveram os três grandes tragediógrafos Ésquilo, Sófocles, Eurípides) tinha como tema fundamental os mitos de sua cultura. Por ser uma forma “elevada” (sempre segundo Aristóteles) a Tragédia tinha como objeto de análise os reis, rainhas, deuses. Na verdade, ao tratar o mito de forma dramática, os autores estavam referenciando-se à sua história e, uma história já bem distante.

            A cultura oral levava a todos o conhecimentos de seus mitos; a história de Édipo, Creonte, Medéia, etc., não era estranha a ninguém, e as obras tratavam exatamente desses temas diretamente ligados à cultura do povo grego. Não havia, portanto, mistério, suspense, expectativa, pois, sabedor de seus mitos o público tinha consciência de tudo que aconteceria com Édipo ou Antígona. Esse elemento dramático fundamental na estética convencional de certa forma estava ausente. Apesar de Sófocles ter desenvolvido, de forma magistral, em seu Édipo Rei um clima de suspense a partir de uma determinada construção dramática, esse mecanismo se estabelecia muito mais em sua forma, pois o público já sabia o destino trágico do rei de Tebas.
           
Claro está que, a partir do momento em que já se sabe o que vai acontecer, há por parte do receptor de não ilusão de que a ação esteja acontecendo aqui e agora, principal intenção do drama ilusionista. É preciso entender, então, que a empatia ou identificação com o herói trágico se dê num nível mais elevado passando, portanto, pela nobreza de suas ações (não considerando, evidentemente, a harmatia, que é sua falha trágica), pelo discurso articulado e não necessariamente pela expectativa, já que essa, pelo menos em princípio, não existe.

            Por outro lado, porém, a repetição pode suscitar a compaixão e o terror, apontados por Aristóteles. Para um melhor entendimento, tomemos como exemplo a Paixão de Cristo: todos sabem que Jesus vai ser crucificado e depois subirá aos céus, porém, a forma da narrativa - sua intencionalidade - arrancará lágrimas e lágrimas dos fiéis que se comovem pela enésima vez com a história do Filho de Deus.

            Acredito que na Grécia o processo percorria o mesmo caminho, ou seja, ainda que sabedor do destino dos heróis (elemento de distanciamento) havia uma empatia (identificação) com o herói, não com o seu desfecho (pois este não tinha mistérios) mas com suas ações. A compaixão e o terror se estabelecem a partir de uma circunstância em que o público espera que não aconteça aquilo que ele já sabe que vai acontecer; o suspense nesse momento passa a um estágio mais elevado.

            Há, inequivocamente, um elemento de distanciamento nessa condição, porém, não se desenvolve a consciência crítica do espectador; antes, provoca um outro tipo de expectativa. Uma relação dialética que se estabelece entre empatia/distanciamento, já que a ilusão sofreu uma interrupção a partir do conhecimento prévio da fábula.

            Em Brecht, guardadas as devidas proporções, há também uma conhecimento antecipado da fábula. Ele sempre tratou de temas históricos, com raras exceções, a saber: Os Fuzis da Senhora Carrar e Terror e Misérias no Terceiro Reich, duas peças singulares em sua dramaturgia, já que são as que mais se aproximam do ideal dramático de Aristóteles. Claro está que seus temas não são tão conhecidos do público como os mitos o eram para os gregos. Mas o caráter histórico de suas peças, ao estabelecerem uma distância com o público (não estou sendo representado no palco) tende a levá-lo a uma posição de comodidade, pois não há de se envolver diretamente com o destino das personagens e, sim, com o desenrolar da fábula.

            E Brecht aprofunda em muito essa relação histórica da fábula a partir da utilização direta de narrativas ou telões pintados, bem como, música e outros mecanismos próprios de sua estética. A todo instante há uma preocupação em se mostrar o caráter histórico daquela ação que transcorre no palco. As formas e objetivos são vários, porém, com um mesmo fundamento: evitar o envolvimento do receptor com a ação.

            Tomemos como exemplo uma cena da peça Vida de Galileu, no momento em que ele enfrenta a Inquisição e renega suas teorias (só para lembrar: a cena é comentada por outras personagens, Galileu só aparece depois de ter renegado). Na abertura da cena Brecht acentua que ela já aconteceu:

Galileu Galilei, diante da Inquisição, em 22 de junho de 1633, renega sua doutrina do movimento da Terra.

            Ao condicionar a cena no passado, cria-se, na verdade, um duplo distanciamento, ou seja: em primeiro lugar a referencia histórica nos remete, é óbvio, a um fato que aconteceu e pelo qual - a partir do momento em que sabemos que já aconteceu - não deverá provocar um envolvimento como se estivesse acontecendo aqui e agora; em segundo lugar, verificamos que já existe uma antecipação da ação que nos será apresentada: renega sua doutrina do movimento da Terra, sabemos mesmo antes de se iniciar a cena que Galileu renunciará sua doutrina, o que nos remete mais uma vez ao passado, pois sabedores do que vai acontecer, procuramos entender como aconteceu. Ainda que a ação transcorresse no presente, seria remetida dialeticamente ao passado a partir do instante que tomamos conhecimento do seu desfecho. E, para reforçar ainda mais o seu caráter épico, Brecht acrescenta em sua abertura um pequeno poema comentando criticamente o que aconteceu:

Foi um dia de junho de importância capital
Razão e povo se cruzaram, e por pouco não casaram
Mas ninguém notou, pois nada mudou e a tarde passou.

            Um outro exemplo bem característico que vamos encontrar é a música explicativa e narrativa. Em A Mãe, temos a saborosa cena da discussão entre Pelageia Vlassova e sua Senhoria sobre a existência ou não de Deus. Logo ao abrir a cena já existe uma narrativa que nos fala do assassinato de Pavel, filho de Vlassova:

Ao tentar transpor a fronteira finlandeza
Pavel Vlassov foi preso e fuzilado.

            Não satisfeito, Brecht ainda nos apresenta um Coro de Operários Revolucionários, que canta para Pelageia:

Camarada Vlassova, o teu filho
Foi fuzilado. Mas
Ao dirigir-se à parede para o fuzilarem
Dirigiu-se a uma parede feita por seus iguais
E as espingardas que lhe apontaram ao peito e as balas
Eram feitas por seus iguais. Já tinham partido
Ou sido expulsos, mas para ele continuavam ali
Presente na obra de suas mãos. Nem sequer
Os que atiraram sobre ele eram diferentes nem fatalmente irrecuperáveis.
Acorrentavam-no, além disso, cadeias forjadas
Pelos camaradas para prender o camarada, porém
As fábricas adensavam-se, via-as do caminho
Chaminés e mais chaminés, e como era de manhã
                                               Pois costumavam levá-los sempre de manhã -
                                               Achavam-se vazias, mas via-as repletas
Com aquela multidão que sempre crescer
E ainda crescia:
Mas já os seus iguais o levavam à parede
E ele, que entendia, não entendia.

O exemplo nos mostra claramente o que se pretende ao se basear no histórico para desenvolver essa nova forma que comenta e explica a ação. Procurando sempre minimizar o envolvimento do público com a fábula que está sendo mostrada, Brecht utilizou-se do épico como forma fundamental para o seu teatro. Tal como a Tragédia Grega buscou no histórico a base de toda sua teoria, visando evitar a consciência crítica do espectador.

            Porém, se por um lado (o caráter histórico) aproxima-se da estética grega, do outro se distancia dela e a contraria, pois propõe uma nova visão de teatro. O mecanismo de distanciamento comum aos dois, configuram-se diferente a partir de seus objetivos finais: Brecht não propõe a catarse!


ARQUITETURA

A relação palco/platéia determinada pela arquitetura do prédio é definidora do comportamento do receptor diante do que está sendo mostrado no palco. Essa relação sempre esteve na base de todas as grandes transformações do teatro, pois é a partir dele e somente aí que se configura o fenômeno teatral. E o princípio dessa relação está na identificação e/ou distanciamento.

            O surgimento da arquitetura italiana condicionou uma forma determinada de relação que procura estimular no público a ilusão da realidade. Todo esse processo foi sendo aperfeiçoado ao longo do tempo, criando mecanismos poderosíssimos de envolvimento do espectador com a ação dramática. A arquitetura italiana é a que melhor se adequa a esse propósito. Porém, não foi sempre assim!

            A forma semi-circular do Teatro Grego estabelece de imediato uma relação bastante diferenciada daquela proposta pelo palco italiano, que centraliza e objetiva a atenção do espectador. É de natureza dispersiva. Não havendo a quarta parede, o palco torna-se “vazado” e, conseqüentemente, um novo comportamento há que se verificar, pois ao mesmo tempo em que se vê o espetáculo, vê-se também o espectador que está do outro lado do teatro. Há um claro rompimento com o ilusionismo. Com a ilusão “quebrada” há uma tendência muito mais concreta para se criar o distanciamento. Ainda mais se levarmos em consideração que na Grécia a participação da platéia era bastante significativa: havia sua manifestação ativa em relação ao que se apresentava, tanto a favor ou contra, chegando mesmo a vaiar os atores e atirar objetos no palco nas passagens que não gostava.

            Nada, portanto de ilusões. O público foi para assistir atores representando uma história já bastante conhecida e quando sua atuação não agradava havia a reação imediata e concreta. Além disso, o teatro era a céu aberto, sujeito, é claro, à interferência dos fenômenos naturais. Um elemento a mais na possibilidade de dispersão. Não havia nenhuma dúvida de que estavam num teatro.

            Brecht encontrou à sua disposição a forma italiana já bastante desenvolvida em seus propósitos ilusionista e buscou sempre mostrar ao público que ele estava em um teatro. Claro que para atingir seus objetivos reformulou toda estrutura a partir de mecanismos que visavam chamar a atenção do receptor de que ele se encontrava em um teatro. Para Brecht essa consciência era fundamental, pois essa relação interfere diretamente na maneira em que se recebe a mensagem da fábula. Segundo ele, um teatro que se apóia na identificação consome a atividade do espectador, ao passo que o épico desperta-lhe a consciência crítica. Quanto menos magia, quanto menos ilusão, mais a consciência crítica será despertada. E, um teatro que se apresenta enquanto teatro e não como vida deverá provocar esse efeito pois o espectador é colocado diante de alguma coisa e não jogado dentro de alguma coisa, como propõe o ilusionismo.

            Iluminação especial, com os refletores aparecendo, a ausência de pano de fundo, projeções, narrações, cartazes, tudo isso colabora para se romper com a ilusão. Em determinado momento de sua pesquisa estética, Brecht pensou numa casa de espetáculo em que o público, enquanto assistisse à peça, tomaria uma cerveja e comeria um “tira-gosto”, estando assim bem mais à vontade para analisar o que transcorria no palco. Não há, em princípio, muita diferença dessa proposta com o que acontecia na Grécia, já que os festivais iniciavam-se de manhã e só terminavam ao anoitecer, portanto, o público fazia suas refeições no próprio teatro.
           
            Brecht procurou em sua estética essa relação palco/platéia que o teatro Grego realizou naturalmente. Porém, o teatral ocidental, reorientado a partir do romantismo, começou a buscar uma estética baseada no realismo e no ilusionismo da cena, rompendo assim, com a própria tradição, que é de um teatro teatral (basta verificar os modelos romano, medieval, elisabetano, commedia dell’arte, etc), todos de características próprias mas que tinham algo em comum: não procuravam em momento algum iludir de que não se tratava de teatro.

            O romantismo, ao desenvolver a teoria da quarta parede, faz adormecer no espectador seus mecanismos que estimulam a consciência, atingindo com isso objetivos políticos e ideológicos bastante claros. Brecht retoma aquela tradição e avança nesse processo quando propõe um teatro que, além de ser desmistificado enquanto vida, deve ter preocupações sociais profundas no que diz respeito aos seus objetivos finais. Um teatro que se coloque a serviço da classe trabalhadora e que aponte um novo tempo em que o homem seja amigo do homem.


CENÁRIO

            Até agora foi ressaltada muito mais a relação palco/platéia a partir dos seus elementos externos - mito e arquitetura, sem considerar o espetáculo em si que, analisado em seus diversos componentes, nos revela como os gregos de fato fizeram um teatro absolutamente teatral e de características épicas (usamos sempre essa terminologia segundo o ponto de vista brechtiano), fugindo em todos os instantes ao ilusionismo naturalista. Ao analisarmos esses elementos tentaremos aprofundar a discussão de vinculação estética de Bertolt Brecht ao espetáculo grego.

            Brecht pensou um cenário funcional que contribuísse de maneira eficaz para estabelecer o distanciamento crítico da platéia; uma cenografia absolutamente teatral, com signos característicos e que não permitisse (ou pelo menos tentasse evitar) um envolvimento empático do receptor com a fábula, a partir de dados realistas. Uma cenografia reduzida ao absolutamente necessário para um bom entendimento e que contribua para que o espectador desfrute de um mínimo de conforto em relação ao palco. Uma aplicação científica do gestus à cenografia que, integrada a outros elementos estéticos e funcionais, melhor esclareçam as relações estabelecidas a partir das contradições daquela realidade.

            Nem tão diferente foi a utilização cenográfica no Teatro Grego. Como acentuou Pierre Grimal, “a encenação das tragédias nos parece bem pouco realista e sujeita a um grande número de convenções”. Ao se falar em “convenções”, é preciso entendê-las como um sistema de códigos já familiarizado por parte do público e que, por si só, traduz a essência do que pretende significar, sistema este que, como veremos, será de grande utilização em outros componentes da encenação. Na realidade a cenografia grega se resumia aos elementos fundamentais que mostravam ao público onde transcorria a ação e tudo isso sem precisar de recorrer ao realismo das formas. Como as peças normalmente falavam dos reis o cenário se resumia a pórticos de palácios que apoiavam a ação dos atores sem que para isso fosse preciso qualquer tipo de detalhamento pois o próprio texto já traz em si referências espaciais e que permitem por parte do receptor um claro entendimento do local da ação. Nenhum realismo além.
            Outros elementos, mais teatrais ainda, foram amplamente utilizados como, por exemplo, os periaktoi, “prismas triangulares de madeira, com a altura da skéne e colocados em cada uma das suas extremidades”. Esses “prismas” tinham características bastante funcionais pois “eram móveis e giravam sobre o seu eixo, apresentando ao público uma face de cada vez, escolhida de acordo com o local que se queria evocar’. Outros ainda, com um mecanismo complicadíssimo, não fugiam ao teatro e foram amplamente utilizados. Tais foram os casos do ekklyklema e mechané (máquina destinada a colocar uma divindade em cena).

            Não há muita dúvida de que todos esses elementos e mecanismos extra-teatrais, em lugar de criar uma ilusão, distanciavam o receptor da empatia, contrariando mesmo o que pensou Aristóteles ao formular sua teoria da Tragédia. Voltamos a insistir que essa relação se estabelecia muito mais através do discurso do que propriamente através da encenação, que visava romper (consciente ou inconscientemente, não importa) esse ilusionismo. A estilização traduz o que precisa ser traduzido e não mais, permitindo ao espectador uma complementação própria para o que lhe está sendo apresentado.

            Verificamos com isso, mais uma vez a tradição ocidental de um teatro não realista. O romantismo é que impôs essa estética ao buscar refletir no palco a burguesia que assumia o poder e, naturalmente, se utilizou dar artes para se estabelecer enquanto classe dominante. O cenário passou a ser mais um elemento de envolvimento do público, desde que foi detalhando, procurando aproximá-lo ao máximo do modelo real.

            Brecht, ao propor um novo teatro propõe conseqüentemente, uma nova cenografia que não induz, mas que provoca; não conta tudo, mas tenta explicar algumas coisas; que não envolve, mas leva a uma atitude crítica, sem magias.


FIGURINO

            Os figurinos para os gregos se revestiam de uma importância de bastante destaque no contexto geral da encenação. Tanto ou mais que os cenários, possuíam um sistema de códigos - também conhecido de todos - que lhes servia como elemento fundamental para a quebra do ilusionismo e visava facilitar uma melhor compreensão da fábula e que, como se verificará, era um elemento claramente distanciado.

            Riquíssimo em seus códigos, já que pela cor ou modelo identificava-se imediatamente a personagem que surgia no palco. A mensagem visual era recebida pelo público e decodificada de modo que não havia necessidade de “acompanhar” a personagem para saber de quem se trava. De acordo com a cor já se determinava sua classe social: se um rei, rainha, deus, mensageiro, etc.

            Claro está que este sistema de códigos rompia desde logo com o envolvimento, pois a estilização já cumpria sua função de informar e, sendo o reconhecimento imediato, a expectativa  sofria solução de continuidade. O público direcionava, então, seu interesse para o discurso verbal.

Além da roupa, propriamente dita, encontraremos em um de seus componentes também um sentido narrativo e explicativo. Tal é o caso do coturnus - um tipo especial de sapato de grossas solas pintadas que, além de uma função específica (aumentar consideravelmente o tamanho dos atores, facilitando assim que fossem vistos por todo o teatro), conferia também a identificação da classe social da personagem a partir da grossura de sua sola (o coro, por exemplo, não usava coturnus).

As vestimentas, por sua vez, além da codificação estabelecida certamente pela tradição, apresentava na sua consecução (pois eram maiores do que o normal) um rompimento com o realismo. Aliado às vestes e coturnus, temos ainda a máscara (que será o próximo objeto de análise). Todos esses elementos criavam no palco uma figura de tamanho bastante avantajado. John  Gassner ressalta essa característica afirmando que “as familiares botas ou ‘coturnus’ (os grifos são nossos) com suas grossas solas pintadas e o alto adorno de cabeça (o onkus) acima da máscara faziam com que os atores parecessem muito mais altos do que eram. Um ato de um metro e oitenta chegaria a dois metros e trinta ou mais”, e que para contrabalançar “o aumento de tamanho provocado pelos coturnus e onkus” as roupas eram “acolchoadas”. No que diz respeito à significação desses detalhes acrescenta que “as personagens eram diferenciadas através das máscaras, da grossura da sola do coturnus, da qualidade das vestes”, além de outros detalhes de menor importância para o propósito deste estudo. 

Brecht ao pensar um figurino que adequasse à sua estética, procurou também um tipo específico de codificação - à qual ele tratou por gestus social, que aprofundasse o sentido objetivo da vestimenta enquanto significação específica de determinadas relações sociais. Nunca interessou a Brecht um figurino realista, como se entende, mas uma indumentária que traduzisse de forma concreta o envolvimento das personagens nas relações e mais, que ressaltasse as contradições ali existentes. Portanto, sua utilização podia se dar a partir de detalhes e não a partir do todo. Por exemplo, o que lhe interessava não era um figurino completo para um rei, mas o que um detalhe desse figurino poderia representar enquanto símbolo da realeza e opressão sobre os súditos. Muito mais apegado em acentuar as contradições do que simplesmente buscar o deslumbre visual, Brecht procurou um sentido bastante prático e objetivo dos recursos que o teatro lhe oferecia.

Tal como os gregos que tinham como ponto de partida o real (para eles a mitologia era real) e a ele acrescentavam o seu sistema de códigos, fugindo assim, dialeticamente, ao realismo, Brecht também partiu do real para o significativo. Claro que a base é realista, mas agora avançado para um realismo de qualidade especial, posto que dialético. Para isso reforçou aquela roupa com apliques que permitissem nova leitura muito mais aprofundada das relações sociais. Não podemos nunca perder de vista que Brecht - marxista que era! - tal como Marx entendia o homem como objeto de forças sociais. Foi exatamente com esse objetivo que redimensionou o figurino, como de resto, todos os componentes do teatro.


MÁSCARAS

            Na Tragédia Grega a relação máscara/interpretação é bastante íntima: além de possuir suas funções específicas é certo que a máscara interfere substancialmente na interpretação do ator. Contudo, daremos prioridade a essas funções da máscara para só depois analisarmos a interpretação, onde novamente ressaltaremos a sua utilização e interferência desse elemento externo fundamental ao Teatro Grego.

            Seu uso vem desde os ditirambos improvisados que foram a origem da Tragédia e se manteve em toda a existência do teatro na Grécia. Na verdade a máscara seguiu a tradição do ditirambo e passou a ter a função bastante destacada quando este se estruturou enquanto forma dramática e sob a égide do Estado foi transformado e adotado como manifestação artístico-religiosa. Nesses longos anos é óbvio que a máscara sofreu profundas transformações e aperfeiçoamentos, seja na sua manufatura quanto na sua utilização técnica.

            A função primeira da máscara (para não entramos aqui em questões antropológicas e sociológicas, que não são objetos do estudo) é a de auxílio na projeção da voz do ator. Construída de tal maneira que a abertura da boca funcionava como um “amplificador de som”. É sempre bom lembrar que os teatros eram imensos e o público estimado às vezes em vinte mil pessoas. Além da acústica perfeita, a máscara em muito auxiliava o bom entendimento do texto por parte do público.

            Porém o que merece maior destaque é que a máscara, assim como o figurino, acentuava o caráter e a classe social da personagem. Determinadas características já apresentavam de imediato a personagem que surgia em cena. Seu “drama”, ou melhor, sua característica psicológica dominante já vinha moldada em suas formas. Como bem esclarece Gassner, “ainda que bastante estereotipadas, retratando atributos gerais, tais como a crueldade, a astúcia e o sofrimento, esses disfarces possuíam considerável variedade. Máscaras especiais eram exigidas por personagens mitológicas e alegóricas com Io, de chifres, Argos de muitos olhos, as Fúrias, cujos cabelos era serpentes”.

            Ao ocultar o rosto do ator e sua “máscara facial” e nos apresentar formas imóveis de emoções dominantes, obviamente, temos que pensar num comportamento bastante diferenciado por parte do público. A empatia tende a se diminuir substancialmente a partir do momento em que existe uma “barreira” fixa e imutável entre o receptor e o ator. É claro que deve-se considerar também que mais de uma máscara poderia ser utilizada pelo mesmo ator desempenhando a mesma personagem, mas ainda assim essa “barreira” - mesmo que seja ligeiramente diferenciada de um episódio para outro - não há de alterar muito a relação existente. Se a máscara traduz o sentimento, o procurar saber diminui (pois ela já conta desde antes) e a distância entre o receptor e o emissor tende a aumentar, pois antes mesmo de procurar saber dos conflitos existenciais da personagem, já se sabe que sentimentos são esses.

            A antecipação da ação que Brecht tanto propugnou se faz presente e impede que a empatia se estabeleça de forma tão gritante quanto pensou Aristóteles. O que há é novamente um apoio no texto, no discurso oral da personagem.

            A máscara ao esconder o rosto do ator e configurar estaticamente o sentimento da personagem, leva o espectador a uma outra postura muito mais crítica, pois a inércia de movimentos da máscara acentua, é indiscutível, um não realismo, um teatro teatral.

            Brecht fez um uso bastante restrito da máscara (utilizou em O Círculo de Giz Caucasiano e algumas outras poucas vezes), mas não deve haver dúvidas de que esse elemento da Tragédia em muito contribuiu para a formulação de sua estética no que diz respeito ao trabalho do ator. Nos detendo agora à interpretação muito se esclarecerá, posto que, como foi dito, a interpretação do ator trágico em muito dependeu dos elementos externos, em particular, da máscara.


INTERPRETAÇÃO

Quando se discute a interpretação dos atores gregos, é preciso, antes de mais nada, ter claro que os fatores já analisados neste estudo são determinantes em sua forma final. Dimensão das casas, figurinos, máscaras, etc.; tudo isso implica numa adaptação do atores a esses fatores. O ator está sujeito a limitações físicas de toda ordem e é, na sua adaptação, que se molda uma interpretação de características absolutamente teatrais e, portanto, não realista. E a esse respeito não paira muita dúvida entre os historiadores.

O que se tem é uma interpretação apoiada fundamentalmente na voz. É absurdo pensar numa forma psicológica e realista de interpretação. Há, isso sim, uma maior valorização da palavra, não se negando de forma alguma o espetáculo em si. Mas a Tragédia Grega é essencialmente um teatro da palavra, tanto que “os atores eram escolhidos por suas vozes”. O fato de a máscara estampar os sentimentos da personagem e esconder o rosto do ator, leva a uma valorização inequívoca do discurso articulado.
Quanto aos gestos, movimentos e posturas, é claro que também eles sofrem profundas e significativas influências dos elementos externos ao ator. Não se pensa em momento algum em gesto e movimentos que não sejam largos e bem desenhados, bastante objetivos. O gesto miúdo não existe, antes de mais nada porque não seria' visto por todo o público e, é claro, seria completamente anulado pelas dimensões dos figurinos, coturnos e máscaras.
Como bem ressalta John Gassner, "tão pesadamente paramentados, os movimentos do atores trágicos eram necessariamente lentos e seus gestos amplos". No que diz respeito à postura, o que se tem é uma postura bem colocada e bastante "rígida", pois qualquer vacilo do ator poderia significar muito bem sua queda, os coturnos eram consideravelmente altos.
Não se quer dizer com isso que os espetáculos eram maçantes, claro que toda essa "economia" de gestos e movimentos era compensada em muito pela evolução plástica do coro, que tinha uma movimentação coreográfica bastante estilizada: "uma forma majestosa de dança denominada emmelia (harmonia) acompanhava as odes mais solenes, enquanto as odes que expressavam emoções intensas ou alegria faziam-se acompanha por uma dança movimentada. Boa parte da dança era totalmente mimética (...) mesmo quando o coro permanecia passivo, esse conjunto não ficava congelado na composição de um quadro imóvel". Assim, a dinâmica do espetáculo era muito valorizada pelas evoluções corais que acompanhavam todo o desenvolvimento da fábula, dando-lhe uma plasticidade bastante espetacular.
Voltando à questão da interpretação, podemos confirmar o que já foi ressaltado: na voz do ator é que se fundamenta toda sua arte, mas uma voz de qualidade especial. Uma voz que antes de sentir, mostrava e explicava o comportamento das personagens em cena. Uma voz bem projetada (e para isso contava com o auxílio da máscara) e bem "colocada" para que pudesse ser ouvida por todos. Uma voz narrativa e bem "encorpada".

Brecht não pensou muito diferente disso, já que queria uma voz distanciada, com modulações especiais e objetivos bem práticos, não só o de ouvir. A interpretação em Brecht deve ser narrativa e não vivencial. O que interessa é mostrar como a personagem se comportou em tal situação e como poderia ter-se comportado, pois sempre há mais de uma posição se tomar diante das contradições a que a personagem é confrontada. As relações sociais devem ser mostradas ao público sem um maior envolvimento ator/personagem. E para que se consiga tal efeito, Brecht se utiliza mecanismos bastante práticos, mas apela sobretudo para a inteligência do ator e sua consciência crítica. O entendimento do homem como objeto das forças sociais e não apenas sujeito como pensou Hegel. Obviamente que essa compreensão e postura diante às forças sociais levam o ator a um novo comportamento junto à sua personagem.' Todos os elementos de antecipação da ação utilizados por Brecht condicionam também uma nova postura. É bem menos complicado do que se imagina.
Um último dado importante a se considerar é o fato de que só aos homens era dado o direito de exercer a arte da representação; à mulher era terminantemente proibido se apresentar , nos palco. Por mais boa vontade que se tenha, toma-se bastante difícil aceitar que Sófocles, por exemplo, que era ator e representava personagens femininas, se confundisse com Jocasta ou qualquer outra heroína.

Os gregos concretamente desenvolveram, também no que diz respeito à interpretação, uma forma não realista e distanciada de teatro.


CORO

Talvez nenhum outro componente da Tragédia Grega se aproxime tanto do pensamento brechtiano quando o coro. Em todas as suas especificidades (e são muitas!) o coro trágico é o mais profundo mecanismo de distanciamento e vamos encontrar nele um ponto de partida para toda a estética aprofundada por Bertolt Brecht.
Em primeiro lugar tem o seu caráter narrativo e explicativo, didático mesmo, do desenvolvimento da fábula e apresentação de situações e personagens. Tomemos de um exemplo para melhor esclarecer o que se quer demonstrar: os versos finais do Primeiro Canto do Coro (párodo), em ANTÍGONA, de Sófocles:

Vejo, porém já próximo de nós,
O novo rei, filho de Meneceu
Senhor da terra após as provações
Que há pouco tempo os deuses nos mandaram.
Alguma preocupação o move,
Pois e convocação geral nos chama,
A nós, anciãos, para deliberar.

Por parte, teremos:

1 - a apresentação absolutamente narrativa da aproximação de Creonte;
2 - que Creonte é o "novo rei";
3 - a referência histórica da peste que assolou Tebas e das provações ordenadas pelos deuses;
4 - anúncio das condições psicológicas do rei - "alguma preocupação o move" - que, certamente, já estarão estampadas nas máscara;
5 - anuncia o que vai acontecer - uma assembléia - pois o coro foi convocado "para deliberar";
6 - mostra, em linguagem metateatral, a consciência que o coro tem de si mesmo enquanto "personagem" (vai entre aspas, pois o coro não se confira personagem como se entende uma personagem, na verdade o coro é alegórico), mostrando quem são eles - "anciãos" - e que têm um tipo específico de participação na fábula.

Quantas informações fornecidas em poucos versos, informações essas absolutamente narrativas e... distanciadas! O elemento épico se faz presente de maneira bastante clara e esclarecedora. Quanto texto e ação se economizou para apresentar um número elevado de informações ao espectador. Informações essas que o colocam numa situação muito cômoda para acompanhar a fábula. O elemento de suspense eleva-se a um patamar bem mais complexo, pois não se trabalha com o efeito surpresa. Sabe-se das informações fundamentais, é preciso saber agora que outros pontos levaram Creonte a convocar os cidadãos tebanos para deliberar. A consciência do receptor foi estimulada e seu interesse acentua-se por outros fatores.

Em ÉDIPO REL também de Sófocles, vamos encontrar um outro modelo de participação do coro que me parece lapidar no que concerne à sua consciência crítica e análise de uma situação:
Do ventre da insolência
É nascido o tirano:
Quando ela se vê cheia De tanta vaziez,
Escala o precipício Para tomar o trono
E dele não sai mais Pela própria vontade...
(...)
Mas aquele que peca Em atos ou palavras,
Sem temor da justiça
Nem reverência aos deuses,
Tomara que o destino Logo acabe com ele,
Com todo o seu orgulho
E o seu atrevimento
De por as mãos imundas
No que não lhe pertence
E agir em sacrilégio!

A análise de uma situação colocada magistralmente (e não estamos, é claro, discutindo seu conteúdo), de maneira absolutamente épica. Comenta neste instante, de forma extremamente sintética, toda discussão travada nessa tragédia sofocleana. O coro toma partido e coloca sua posição perante os fatos assiste. Estimula o receptor a tomar também uma posição crítica. Nada diferente da utilização pretendida pro Bertolt Brecht.

Vejamos um exemplo em DIZ QUE SIM / DIZ QUE NÃO:

Antes de tudo,
O importante é aprender a estar de acordo.
Muitos dizem que sim, mesmo se não
Estão de acordo.
Muitos nem chegam a ser consultados.
E ainda há muitos que sempre
Estão de acordo
Até quando não devem. Por isso tudo
Antes de tudo, o importante é aprender
A estar de acordo.

A mesma função coral encontramos nessa "ópera escolar": uma consciência e análise de uma situação que estimula a consciência do espectador. A partir desse instante ele se prepara para encarar a fábula não como um agente passivo que absorve tudo o que é dito, mas ao contrário, toma uma posição em relação- ao que transcorre em cena. Toma para si a decisão de julgar, não transferindo para o herói a responsabilidade absoluta. Claro que para isso é preciso que esteja de já "preparado" para julgar livremente os acontecimentos. É nesse processo que se busca elementos não realistas que permitam o não envolvimento irracional e puramente emocional com o herói e a ação.

Vejamos agora o canto final dos coros nas duas peças. Primeiro em ÉDIPO REI:

Concidadãos de Tebas, pátria nossa,
Olhai bem: Édipo, decifrador
De intrincados enigmas, entre os homens
O de maior poder - aí está!
Quem, no país, não lhe invejava a sorte?
E agora, vede em que mar de tormento
Ele se afunda! Por esta razão,
Enquanto uma pessoa não deixar
Esta vida sem conhecer a dor
Não se pode dizer que foi
Feliz.

Em DIZ QUE SIM , DIZ QUE NÃO, teremos:

Assim os três amigos foram levando o amigo.
E instituíram uma nova tradição
E uma lei nova,
Voltando com o menino para casa.
Pé ante pé, um apoiado ao outro,
Vão eles enfrentando a zombaria,
Enfrentando as risotas, com os olhos
Bem abertos,
Cada qual mais
Ousado que o seu colega ao lado.

Ao compararmos esses dois cantos (e insistimos que não está em discussão o conteúdo de nenhum deles) veremos que são bem parecidos na formulação de uma mensagem, no que diz respeito à forma. Na verdade; os dois dão uma palavra final a respeito da fábula que se contou. No de Sófocles verificamos mais claramente uma posição firmada diante algumas questões do que em Brecht. Mas o que nos importa mesmo é a função dramática dos dois, que é basicamente a mesma: resumir de maneira bem objetiva toda a mensagem da fábula e, ao mesmo tempo, estimular essa avaliação no espectador.

A função do coro grego e sua significação têm sido amplamente discutidas e ainda não se chegou a um acordo e acredito que dificilmente se chegará, pois parte de um entendimento muito subjetivo dos especialistas do assunto. Porém, uma coisa não se discute: o seu caráter narrativo, épico. Poderíamos nos aprofundar nessa discussão, buscando outros exemplos, sobretudo em Eurípides, onde sua função sofre uma modificação substancial ou em Ésquilo, em suas primeiras peças, nas quais o coro era seu principal fundamento, mas acredito que os exemplos tomados são suficientes para ressaltar o propósito deste estudo.

Não se pode deixar de ressaltar também que o coro ocupava um espaço físico significativo na casa de espetáculos. A orchestra era estrategicamente colocada entre os proskénio e o público.

Na realidade, um intermediador que, dotado de certos "privilégios", comentava a ação em diversos níveis: físico, na sua coreografia que procurava "descrever acontecimentos dramáticos por meio de gestos"; musical, uma intervenção direta por meio do canto que buscava explicar os acontecimentos que envolviam os heróis; fala, já que nem todas as participações do coro eram cantadas, sendo alguns comentários recitativos ou coloquiais; e, finalmente, a participação do Corifeu que, sendo representante do coro dialogava diretamente com as personagens.

Me parece obvio que esse espaço ocupado pelo coro e que de certa forma criava uma "lacuna"entre o receptor e a cena, representava um modelo de distanciamento, pois além de interferir no campo visual, interfere também na possível empatia, pois sendo uma forma de comentário crítico, distancia (quebra) a identificação a que se propõe a forma dramática de teatro. O épico surge dessa quebra provocada não só pelo comentário explícito do coro, mas também por sua presença entre um e outro. E essa quebra não pode em momento algum se desconsiderada.

É bastante interessante e, por isso mesmo, merece ser citado o comentário de John Gassner a respeito do coro:

O uso do coro no teatro grego tinha por certo suas desvantagens, pois ralentava e interrompia as partes dramáticas da peça.
O que é isso, senão um modelo, ainda que bastante primário, do Verfremdungseffekt ­efeito de distanciamento - proposto por Bertolt Brecht. O que para Gassner significa "desvantagem", se for tomado por outra ocular, talvez seja exatamente o seu contrário.


MENSAGEIRO

Um outro elemento preciosissimo e que não pode ser des­considerado é a figura do mensageiro, que sempre traz as noticias dos acontecimentos que se passaram fora de cena, particularmente, a morte de personagens. Como se sabe, na Grécia a morte foi eliminada de cena, passando a ser apenas citada por esse personagem de características profundamente épicas. Sua qualidade narrativa é de alto grau, posto que se utiliza dela para relatar fatos que os heróis e o público não assistiram. Recorre-se ao passado e cita literalmente as últimas falas do herói morto e, por vezes, ainda manifesta sua opinião pessoal sobre o acontecido. Um personagem' de uma riqueza extraordinária no que concerne a esses elementos é picos propostos por Brecht. Todo o alinhavo da interpretação bre­chtiana vamos encontrar neste personagem indispensável nas tragédias gregas.

Vejamos sua narrativa descrevendo a morte de Jocasta e a auto-punição do seu filho/marido em ÉDIPO REI; quando perguntado pelo Corifeu como se deu a morte, responde:

Por sua próprias mãos ... O horror do quadro,
a vós, que o não viste, será poupado;
mas eu, que o vi, dele não posso me esquecer!
Desesperada ela entrou no vestíbulo
e correu para a alcova nupcial,
as duas mãos arrancando os cabelos;
bateu a porta atrás de si, com força.
Gritava - "Laios!" - chamando o marido
há tanto tempo morto, mas pensando
no filho que matou o próprio pai
e que da mãe teve monstruosamente
uma prole de infelizes ...
Gemia contra o leito nupcial
onde, coitada, havia concebido
filhos do filho e era mãe do marido.
Como afinal morreu, não sei dizer:
entrou Édipo aos gritos, e nós, vendo-o
ir de um lado para outro,não chegamos
a observar a rainha até o fim.
Ele pedia uma espada e bradava:
- "Onde está minha esposa, que não é
esposa alguma, é um útero danado
que me pariu e pariu filhos meus?"
- Nessa alucinação, algum poder
(humano não, não foi nenhum de nós)
guiou-lhe os passos: num gemido horrível,
como se algo o empurrasse, atirou-se
contra as portas, rompendo as dobradiças,
e num relance entrou, e deparou
com a mulher enforcada,
um laço corrediço no pescoço ...
Ao vê-Ia, num gemido sufocado
desamarrou a corda, e, quando o corpo
desmoronou no chão, o que se viu
foi mais um espetáculo de horror:
ele arrancou os alfinetes de ouro
da roupa da rainha, levantou-os
e os enterrou nos olhos, imprecando:
"Olhos meus, não vereis mais esta culpa
e esta vergonha, nunca mais vereis
quem não deveríeis ter visto nunca,
e para todo o sempre só vereis
as trevas!"
Era esse o teor dos seus lamentos,
enquanto, uma vez só não, muitas vezes,
erguia as mãos e ia ferindo os olhos,
e a cada golpe uma chuva de sangue
lhe saltava das órbitas
tingindo os dois, o marido e a mulher ...
Tem sido venturosa até agora
a sina desta casa:
mas, de agora em diante, tudo quanto
for desgraça e desastre, luto e pranto,
morte e lamentação, tudo o que há
de mal, sobre esta casa se verá!

Brecht, quando escreveu suas CENAS DE RUA - certamente um de seus principais documentos sobre a interpretação -, parte de um exemplo narrativo que em muito se assemelhas às falas do mensageiro. Pretende que o ator se comporte como um narrador de fatos históricos e, corno tal, se comporte, não se permitindo um envolvimento com o seu personagem. Ao narrar o ator mostra - e não vivencia - como os fatos se deram.

Essa imitação, aparentemente complexa, con­centra em aspectos específicos do comportamento... sendo portanto uma imitação sumária e seletiva

O que se pretende com isso é que os fatos devem ser selecionados por sua importância, sendo necessários detalhes que apenas busquem um entendimento por parte do espectador daquilo que aconteceu. Como o mensageiro, o ator apenas repete o acontecimento, não devendo                       
pretender que sua demonstração se constitua em um acontecimento que o espectador poderia viver.

Claro está que Brecht aprofunda o princípio narrativo e lhe confere elementos (alguns ausente nas falas dos mensageiros) que criem com maior facilidade o tão desejado distanciamento.

A cena de rua deve ser capaz de fornecer apanhados mais completos da realidade, enfrentando por isso mesmo dificuldades consideráveis. A cena de rua deve levar o público a exercer seu espírito critico sob.re acontecimentos muito mais complexos, deve dar margem a uma critica a um tempo positiva e negativa e, tudo isto, no decorrer de uma única representação.

Não se quer demonstrar que as falas do mensageiro sejam um modelo exato das CENAS DE RUA, o que se procura é provar que se constitui uma cena não realista de características bastante parecidas com o estudo de Brecht sobre esse processo de interpretação e de dramaturgia. O que interessa agora é instigar essa preocupação e, sobretudo, apontar que a estrutura da Tragédia Grega em muito contribuiu para o aprofundamento do teatro épico brechtiano.


            À GUISA DE CONCLUSÃO
A Tragédia Grega era, por excelência, um teatro épico, narrativo e distanciado. As próprias condições de sua época e o tratamento que conferiam ao mito orientavam essa forma não realista de encenação, consecução de texto e interpretação. Um teatro de valorização bastante acentuada no discurso verbal, mas que não subestimava o espetáculo, já que pensava no belo, no harmônico.
Um teatro que, como pensou Aristóteles, deveria provocar a catarse através da empatia e que, contudo, tinha como princípio o distanciamento. É claro que quando Aristóteles escreveu sua POÉTICA, a realidade teatral na Grécia era bem outra, os grandes autores já pertenciam a um passado distante e a nova geração certamente não tinha um domínio sobre a qualidade dramatúrgica como o tiveram Ésquilo, SófocIes e Eurípides. A própria situação política de sua época já orientava um outro caminho ao se pensar em' conteúdo. Aristóteles escreveu sobre um teatro que não viu, porém com os olhos voltados para o seu tempo quando propôs uma estética dramatúrgica determinada. Na verdade, procurou a tragédia "ideal" e tentou ensina-Ia à geração de poetas desta fase já decadente da tragédia.

Contudo, uma pergunta se faz necessária: a partir de um modelo de tragédia que tinha às mãos, não teria Aristóteles um entendimento bem diferenciado do teatro que praticava no século V? Ou seja, é preciso questionar mais seriamente a teoria da empatia e catarse na tragédia grega, pois todos os seus elementos nos levam a uma compreensão de que tudo o que era feito visava exatamente o contrário; se consciente ou não é outra história. Não acredito que o i1usionismo fosse conseguido (e nem mesmo almejado), tendo em vista todas essas características absolutamente teatrais que foram ressaltadas neste estudo. No entanto, Aristóteles coloca a catarse como objetivo final da tragédia, mas para que ela aconteça é preciso que aconteça antes a empatia e para que esta se efetue é preciso que não haja elementos francamente não realistas como os aqui abordados. É preciso, pois, ter um entendimento diferenciado e aprofundar essa questão de maneira mais séria: será que o público grego do século V realmente sofria o processo da catarse?

Brecht, mais de duas dezenas de séculos depois do reinado dos grandes trágicos, reorientou a dramaturgia e a encenação com propósitos políticos e ideológicos bastante claros. Seu teatro é resultado de uma reflexão critica da realidade social e busca essa mesma reflexão através do não envolvimento da platéia e do próprio ator. A catarse, ele pretendeu que fosse substituída por uma tomada de consciência através da fábula apresentada no palco. Para isso retoma ao épico, em detrimento do dramático, que visa amenizar essa consciência. Um teatro narrativo que defronte o espectador com uma realidade contraditória e faz dele agente ativo em sua análise. Pensou um novo teatro para um novo público. A dialética marxista aprofundada na fábula mostra que sempre existe mais de uma alternativa para o mesmo problema proposto, contrariando assim a lógica formal que não vê outras soluções senão aquelas previamente determinadas. E, mais ainda, procura mostrar que a verdade é sempre concreta.

É bem certo que as posições de Brecht se contrapunham frontalmente às posições dos três grandes trágicos (talvez, se aproximando um pouco mais de Eurípides), mas também é certo que bases estruturais do seu teatro são encontradas na tragédia que se fez na Grécia antiga. Obvio que cada um no seu momento, mas não tão distantes na maneira de entender p teatro enquanto fenômeno provocado a partir de uma relação palco/platéia. Muito do que os gregos fizeram sofreu um aprofundamento crítico e mesmo urna reformulação estrutural por parte do Berliner Ensemble.

Outras características da Tragédia Grega poderiam ser levantadas para discutir essa proximidade, porém, nos fixamos no caráter essencialmente épico para não fugirmos à finalidade deste estudo que, ainda precário, pretende situar esse pontos referenciais de uma e outra obra. Elementos como a música - enquanto estruturação melódica -, por exemplo, não foram aqui analisados pela quase total falta de informações a respeito.

Muito de Brecht encontramos no teatro grego e, vale dizer, não só lá. Brecht buscou, onde quer que fosse, elementos que permitissem essa nova visão de teatro. E é preciso ressaltar que justamente neste ponto está a grande qualidade do gênio de Brecht: sem falsos pudores buscou em outras épocas e em outros povos elementos para comporem sua estética, uma estética comprometida com o seu tempo.

Se discordava radicalmente de Aristóteles quando à teoria da catarse, não descartou de todo o teatro grego e nele encontrou elementos para fazer um teatro dos maiores e mais importantes de todos os tempos e que hoje, por mais anti-Brecht que se possa ser, não se pode negar sua fundamental contribuição ao inaugurar uma nova etapa no teatro ocidental. Hoje não se tala de teatro sem se falar em Brecht. Pode-se não concordar com Brecht, mas não se pode negar Brecht, sob o risco de se estar falseando a própria História do Teatro.


BIBLIOGRAFIA CITADA
ARISTÓTELES. Arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. RJ: Edições de Ouro, nd
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. RJ: Civilização Brasileira, 1975
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GASSNER, John.  Mestres do teatro, vol. I. Trad. Alberto Guzik e Jacob Guinsburg. SP: Perspectiva, 1974
GRIMAL, Pierre. O teatro antigo. Trad. Antônio M. Gomes da Silva. Lisboa: Edições 70, 1986
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