quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

STRINDBERG : O AMOR E SEUS CONTRÁRIOS


Poucos foram os autores que se expuseram de maneira tão contundente em suas obras como o sueco August Strindberg (1849-1912). Toda obra de arte tem um “quê” de autobiografia, o que varia é apenas a intensidade na presença do autor. Alguns se protegem mais do que os outros. Em Strindberg a separação entre vida e obra é uma linha tênue, extremamente frágil, prestes a se romper. O que vemos é um autor revelado em cada palavra ou sussurro, em cada pequeno gesto ou num olhar quase despercebido. Ao levar para o palco emoções intensas e relações tão extremadas, Strindberg não esconde suas próprias emoções e o fracasso de suas relações amorosas (experimentou o primeiro casamento em 1877, com a aristocrata Siri von Essen, para se divorciar em 1891, depois de terríveis crises conjugais; em 1893 casa-se com a pintora austríaca Frieda Uhl, para se divorciar quatro anos depois e, finalmente, em 1901 casa-se com a atriz norueguesa Harriet Bosse, para separar-se três anos mais tarde). Seus fracassos amorosos aliados a uma esquizofrenia que o acompanha por praticamente toda sua vida fizeram dele um homem para o qual “não há nada sagrado: nem moral, nem família, nem pátria, quando se trata de seu amor pela verdade ou, melhor, ao que ele, em dado momento, considera única verdade”. Entre uma crise e outra, durante o período de casamento com Siri, escreveu os dois volumes de contos intitulados CASAMENTOS, onde manifesta toda sua ira contra a igreja, a educação puritana e o feminismo. O resultado foi um processo por anti-religiosidade e obscenidade do qual consegue escapar, mas o acontecimento leva-o a viajar para a Suíça, de onde só retornaria em 1889. Mas seus fracassos contribuíram também para sua misoginia. O seu teatro passou a ser o fiel depositário do seu ódio pelas mulheres. A todas considera suas inimigas, como bem o afirma o Capitão, em O PAI: Estou convencido de que todas vocês são minhas inimigas. Minha mãe, que não que me queria trazer ao mundo. Minha irmã foi minha inimiga quando me ensinou que eu lhe devia submissão. A primeira mulher que abracei foi minha inimiga ao dar-me dez anos de enfermidade em pagamento a todo o amor que eu lhe havia entregado. Minha filha se tornou minha inimiga quando teve que escolher entre você e eu. E você foi minha inimiga mortal porque não se deu por satisfeita enquanto não me viu caído, sem vida.

Sua dor se manifesta em cada cena, em cada ato. Seu teatro é um grito de desespero; um desabafo de quem sofreu todas as dores e a única forma de vingança que tem é a palavra tornada ação e instrumento de ataque. Luta aguerrida contra um mundo carcomido e habitado por hipocrisias e falsos moralismos. Teatro que se confunde com sua própria existência. Fundidos – autor e obra -, seu teatro é a expressão de sua dor, a tábua de salvação em que se agarra e acumula forças para continuar lutando. Enfrenta as adversidades que lhe são jogadas na cara e as devolve, contrariando Newton, pois sua reação não é igual e contrária, mas muito maior. Sua genialidade está no mesmo nível que seu sofrimento e angústia. Strindberg sabia que só mesmo expondo suas entranhas poderia fazer um teatro que discutisse a relação amorosa tão profundamente, que, às vezes, chega a nos dar medo pensar - ainda que só de brincadeira - em casamento e suas possíveis conseqüências. Sua obra tem um poder arrasador de proporções assustadoras, tal a força de suas palavras e a violência dos sentimentos que desenha para os personagens, que se confrontam numa guerra psicológica tão intensa que certamente um deles não vai ficar para contar a história. O inconsciente é jogado em cena. Personagens se confrontam até a morte. Ódio e rancor são atirados na cara um do outro sem a menor complacência. As agressões só param quando um deles está derrotado e não tem mais forças para continuar a luta.

Arthur Adamov nos fala da obra de Strindberg como “um incessante ajuste de contas entre indivíduos que se defrontam numa contínua reivindicação, num contínuo protesto. São pessoas que lançam aos gritos na cara uma das outras a conta de todos os seus atos censuráveis, atos do passado que mancham o presente e comprometem o futuro...” Em CREDORES, Gustavo, primeiro marido de Tekla, que reaparece para atormentar a vida da ex-mulher, joga na cara dela: Todos nós temos um lugarzinho onde se escondem nossas culpas. E os credores se apresentam, cedo ou tarde, para cobrar suas dívidas. Tekla, mesmo sabendo a resposta, pergunta: E agora você veio cobrar suas dívidas? Gustavo reafirma: Vim cobrar minhas dívidas. Você roubou minha honra, e isso eu só posso superar levando a sua... Adamov tinha razão! Não há limites para as cobranças. Não se coloca panos quentes para resolver qualquer situação de conflito: ele é levado ao seu extremo ainda que a dor provocada deixe marcas que dificilmente se apagarão.

Em Dança da Morte, com certeza sua obra mais bem acabada, que trata da relação de um casal de meia idade (Edgar e Alice) que recebe a visita de um primo da mulher (Kurt), que também é seu amante, Alice expõe as fraquezas do marido, na frente do primo: É o demônio, não é um homem.  Para ele não há leis, nem regulamentos, nem disciplina... Está acima de tudo e de todos, o universo foi criado para seu uso pessoal; o sol e a lua movem-se apenas para cantar louvores aos astros; aqui está como é o meu marido. Um capitão coisa nenhuma, incapaz até de se tornar comandante, inchado de orgulho até ao ponto de imaginar que o temem, quando toda a gente se ri dele, um infeliz que tem medo do escuro e que se fia nos barômetros, finalmente uma carrada de estrume que nem sequer é de primeira qualidade. Edgar retruca: Ela me quer mal por eu não ter morrido ontem. Ao que Alice não deixa por menos:  Não! Te quero mal por não ter morrido há vinte e cinco anos. Morto antes mesmo de eu ter nascido.

As agressões buscam, na verdade, esconder as contradições de cada personagem, mas elas se revelam a cada instante, e se revelam no que há de mais desesperador: o medo de ficar sozinho. É o outro que o completa e justifica sua existência. Então, cada briga retroalimenta a relação que, por sua vez, gera novas brigas. Na cobrança de cada um, no que mutuamente se joga na cara do outro é que se manifesta a profunda necessidade daquele que se nega. É um círculo vicioso que não pode ser interrompido sob o risco de uma infelicidade maior. O outro é necessário pois sem ele a existência fica sem sentido. É ele quem me entende, e a ele entendo eu. E, mais do que entender, nos aceitamos reciprocamente. A simbiose se estabelece de forma brutal. A agressão gera uma nova agressão, e elas se multiplicam, pois são elas que sustentam o convívio diário. E a relação caminha trôpega, aos pedaços, mas continua existindo e assim serve de apanágio para outras dores que ainda virão.

Strindberg foi, antes de tudo, um inquieto e provocador. Inquieto, pois nunca se deu por satisfeito com os parâmetros sociais, éticos e estéticos do seu tempo; provocador, pois apontou e debochou de todas as hipocrisias e rompeu com modelos arraigados na estética teatral. Abandonou o naturalismo – do qual foi um dos mais importantes autores – para lançar as bases do seu antagônico, o expressionismo. Promoveu inovações irreversíveis no teatro: foi o primeiro a romper com a divisão de uma peça em atos. Em seu Prefácio para SENHORITA JÚLIA, argumenta: “a título de experiência, aboli a divisão em atos. Penso que é bastante provável que nossa decadente capacidade para a ilusão sofra uma quebra devido aos entreatos que permitem ao espectador a possibilidade de refletir e, consequentemente, romper com a identificação emocional...”. Ainda sob a égide do naturalismo zolaniano, pensa em inovações estruturais da encenação, seja a nível da cenografia ou iluminação, que permitam um caráter mais expressivo aos atores e à própria cena. Não está satisfeito! Sua busca não consiste mais em simplesmente colocar uma “fatia da vida” sobre o palco. “Acaso não seria possível dar aos atores, através de uma iluminação lateral, um novo recurso artístico: enriquecer a capacidade expressiva dos seus rostos e dos seus olhos?”

Em peças como O CAMINHO PARA DAMASCO (1898-1900) ou O SONHO (1902), dentre outras, lança os fundamentos do expressionismo - na Alemanha, Frank Wedekind (1864-1918) também irá contribuir no mesmo sentido -; o drama de estações inaugura uma nova maneira de escrever para o teatro, tanto em termos técnicos quanto em termos filosóficos. Para John Gassner suas obras desta fase “nasceram de uma inteligência intensa e perscrutadora e de uma infinita sensibilidade em relação à dor de existir. Suas peças expressionistas possuem inúmeras simbolizações incisiva tanto do mundo externo quanto interno do homem atual”. Strindberg está à frente deste movimento, influenciando autores como Toller, Hasenclaver, Kaiser, Sorge, etc.

“Será que no mundo existe alguém mais infeliz do que nós?” Essa patética indagação de Alice (DANÇA DA MORTE), que já traz dentro de si uma terrível confirmação, nos mostra a que ponto chegaram aquelas criaturas colocadas em cena e que, inevitavelmente, nos faz lembrar Gorki: “criaturas que um dia foram homens”. A dor humana não tem limites em Strindberg. Jogando impiedosamente o inconsciente em cena, nos apresenta seres esfacelados e corroídos dando ao teatro os mais belos momentos de análise da mente humana, inaugurando assim o chamado realismo psicológico. O’Neill, Albee, Pinter, Osborne e tantos outros, certamente não seriam os mesmos não fosse a genialidade de Strindberg que, como ninguém antes, operou em cena uma autópsia do cérebro, desvendando-nos seus mais profundos mistérios. Se Ibsen nos deu uma estrutura dramática perfeita, onde todos os conflitos se amarram com precisão milimétrica e Tchekov nos ensinou que o silêncio tem o mesmo ou mais peso que uma enxurrada de palavras, esse louco Strindberg nos mostrou o caos e os desvios da mente, nos revelando a neurose humana em sua última potência, os desvios a que somos acometidos e suas conseqüências mais dolorosas, levando Gassner a considerá-lo, não sem razão, o “mestre do drama psicológico”.

Para Strindberg escrever era um ato de extrema dor. A densidade autobiográfica de sua obra nos revela todo o seu sofrimento, é como se abrisse o coração e o derramasse sobre nós, ensangüentado, em partes despedaçadas, pulsando ainda desesperado por um momento que seja de tranqüilidade e paz. Por que é que nós, os oprimidos, sofremos tanto? Parece-me que este processo emocional é qualquer coisa como isto: Primeiro, sou eu a vítima! Oh, que horrível sensação! Mas basta-me olhar para a direita e para a esquerda e logo encontro alguém mais que sofre a mesmo dor. E logo sofro com ele. E a dor é dupla. E vejo outros ainda, e o meu sangue gela. No meu estado emocional começo a pensar que todo o universo está debaixo de uma tirania e é oprimido. A minha angústia cresce - e em mim eu tomo, eu absorvo os sofrimentos de toda a humanidade. Transformo-me numa espécie de Cristo, porta-voz de toda a humanidade. Suas crises pessoais vão encontrar no teatro o espaço adequado e definitivo para se manifestar na condição de arte. “Partindo de seu sofrimento e do inferno matrimonial em que vivia, transportou para o teatro de maneira admirável os conflitos entre um homem e uma mulher”.

Aos 14 de maio de 1912, morre sozinho, abandonado, mas ao seu enterro comparece uma multidão de concidadãos que o louvam como autor nacional sueco. Em INFERNO, um de seus romances assumidamente autobiográficos, deixa seu registro revoltado, ao mesmo tempo que melancólico sobre a existência: A mim educaram-me no mais profundo desprezo pelo inferno, ensinaram-me a tomá-lo só por fantasia que deve rejeitar-se para a lista dos preconceitos! A verdade, porém, é que não posso negar o fato, há embora uma diferença, e nela reside a novidade que é a interpretação das penas chamadas eternas: no inferno nós já estamos. A terra é o inferno, prisão construída com superior inteligência, ao ponto de eu não poder dar um passo sem beliscar a felicidade alheia, e os outros não poderem ser felizes sem me fazer sofrer.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

ARENA DE BRASILIDADE


Depoimento ao PROGRAMA AGENDA, da Rede Minas

A segunda metade da década de 1950 foi extremamente produtiva para a arte e a cultura brasileiras. A euforia “juscelinista” contagiou a todos. O “desenvolvimentismo” não prevaleceu apenas na indústria e setores da economia formal. As liberdades democráticas formaram um solo fértil para uma diferenciada manifestação do saber e do fazer. Na música, a Bossa Nova embalou a jovens e maduros com um novo ritmo e uma nova concepção poética: falar de amor, sim; mas de outra maneira, foi o que nos ensinou Vinicius de Moraes, quando rimou amor com dor sem o pieguismo tão tradicional em nosso cancioneiro. No cinema, destacam-se, entre outros, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade, que vão determinar os rumos do Cinema Novo. RIO 40 GRAUS, de Nelson Pereira dos Santos, de 1955, é um marco no cinema sócio-político brasileiro.

O teatro brasileiro, capitaneado pelo TBC – Teatro Brasileiro de Comédia, estava marcado por profundas influências européias, estava preso a um modelo que em nada refletia nossa realidade e suas contradições. O TBC contribui sensivelmente para a ampliação da qualidade do nosso teatro; estabelece uma relação profissional com todos os artistas; contrata encenadores europeus (particularmente, italianos) que trouxeram técnicas e conhecimentos e, inegavelmente, impuseram um diferencial ao nosso ator. O TBC deixa sua marca na história, mas comete um pecado muito grande: não tem uma política de valorização e mesmo estímulo à formação do autor brasileiro. Obviamente, a ausência do autor nacional no palco impede que os problemas da nossa gente sejam discutidos.

Em 1958 a história mudou! O teatro não seria mais o mesmo! O Grupo Arena de São Paulo, que vinha atuante desde 1953, atravessa uma crise financeira sem precedentes e, para encerrar suas atividades em grande estilo, resolve encenar um peça de autor brasileiro. Escolhe Gianfrancesco Guarnieri, membro atuante do grupo. A peça, ELES NÃO USAM BLACK-TIE. Guarnieri, militante do Partido Comunista Brasileiro, aplica sua prática política e seu conhecimento teórico para elaborar um texto complexo e dinâmico. Traz para o palco os conflitos, os anseios, as necessidades, as possibilidades e as lutas do homem do povo e, junto com ele, sua prosódia, seu modo de viver, suas ambições e suas fraquezas. Através de um microcosmo familiar, discute a greve, a traição, a firmeza ideológica e as condições a que os operários eram submetidos financeira e economicamente.

 Uma busca exaustiva para encontrar uma linguagem que corresponda às nossas necessidades, aliada ao sucesso de BLACK-TIE, que teve sua estréia em 22 de fevereiro de 58, dão ao Arena um novo fôlego que o permite arriscar-se em vôos mais altos. O mês de abril define, para o teatro, um novo divisor de águas, com a realização do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, em São Paulo. Nascido da experiência vitoriosa de ELES NÃO USAM BLACK-TIE, o Seminário tem como objetivo o desenvolvimento de um teatro comprometido com a realidade sócio-política brasileira.  A busca de uma identidade nacional, que passa necessariamente por uma identidade cultural, inaugura uma dramaturgia voltada para as questões sociais mais prementes. BLACK-TIE, ao trazer para o palco o movimento operário brasileiro, aponta esse caminho e traz mais do que simplesmente um teatro engajado politicamente: mostra que é possível e urgente uma reflexão sobre o homem brasileiro que, até então, esteve quase que completamente alijado do teatro.

O Seminário torna-se espaço democrático de discussões estéticas e políticas, embora muitas vezes marcadas pelo radicalismo. Hegemonizada pelo pensamento de esquerda, (afinal, não só Guarnieri era militante comunista; Vianninha também pertencia aos quadros do PCB, assim com Milton Gonçalves e vários outros), a discussão vai ganhar contornos ideológicos e promover uma reflexão profunda sobre o papel da arte e, particularmente do “teatro como expressão da realidade nacional”, tendo o materialismo como processo de análise dessa realidade. O Seminário se debruça não apenas sobre os aspectos técnicos e estruturais da dramaturgia, mas também e, principalmente, sobre os aspectos sociais e políticos da sociedade brasileira.

O exercício exaustivo de escrever e reescrever suas obras por diversas vezes, a partir das críticas elaboradas no Seminário, levaram os autores a um conhecimento e aprofundamento da consciência sobre a realidade para transportá-la para os palcos. Não se tratava de uma transposição mecânica dos movimentos sociais e personagens caracteristicamente brasileiros, mas de uma análise materialista e dialética, que possibilitasse uma reflexão sobre as contradições do capitalismo e sua conseqüente superação.

Simultaneamente às discussões de dramaturgia, o Arena promove também “laboratórios” de interpretação, baseados no processo de Stanislavski – diretor russo que sistematiza técnicas aplicadas ao trabalho do ator. Nada mais lógico: se se procurava uma dramaturgia que refletisse o brasileiro em sua plenitude, era necessário estabelecer novos parâmetros para a criação de personagem e interpretação dramática. Stanislavski orienta seu trabalho a partir da observação do comportamento humano e sua recriação no palco. O ator tinha, a partir de seus estudos e formulações, ferramentas fundamentais para o seu trabalho criador. Orientado pelo realismo/naturalismo, na perspectiva de se ter a realidade objetiva como referência, Stanislavski cai feito uma luva para o Arena, que vai desenvolver toda sua pesquisa exatamente a partir da análise da realidade brasileira.

Dramaturgia e interpretação caminhando juntas num mesmo rumo, embora que colocadas em um espetáculo que se baliza por duas estéticas contrárias: o realismo do texto e da criação dos personagens e os recursos não realistas exigidos pela encenação num palco não convencional, com o claro rompimento da teoria da quarta parede. Essa contradição, em vez de prejudicar, vem contribuir decisivamente para o desenvolvimento de uma estética própria, que já vinha sendo aplicada desde o surgimento do grupo.

Um ano depois, mais precisamente, em 17 de março de 1959, estréia a primeira peça nascida a partir do Seminário: CHAPETUBA FUTEBOL CLUBE, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, com direção de Augusto Boal. CHAPETUBA traz para o palco o futebol como pano de fundo para se discutir a corrupção. Vianninha, peça fundamental no Arena, era um arguto investigador e um dramaturgo extremamente criativo, além de excelente ator. Sua peça tem uma dimensão humana fantástica. Personagens repletos de contradições. Em nenhum momento permite que o maniqueísmo se sobreponha à análise do comportamento e da própria realidade em que foi baseado.
Gente Como a Gente, de Roberto Freire e A Farsa da Esposa Perfeita, de Edy Lima, ambas em 1959; Fogo Frio, de Benedito Ruy Barbosa, e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, 1960; O Testamento do Cangaceiro, de Francisco de Assis, 1961, são algumas peças, fruto do Seminário, que foram encenadas no espaço de apenas três anos. O Arena marca sua presença definitiva no teatro brasileiro, a partir de suas experiências formais e discussão da realidade. Na verdade, sofre nítidas influências do realismo socialista (embora, alguns de seus integrantes o neguem), e não podia ser de outra forma, já que a transformação da sociedade se daria, incontestavelmente, pela revolução socialista.

Em 64, o Golpe Militar, obriga o Arena se reorientar esteticamente para continuar fiel aos seus princípios políticos e ideológicos. Busca em nossos heróis – Zumbi, Tiradentes – referencia para uma discussão sobre as liberdades democráticas. Novas propostas são incorporadas e resiste até 68, quando o AI-5 recrudesce a repressão política, atingindo todos os artistas brasileiros e, muito particularmente, os artistas de teatro. Daí pra frente, o Arena vai sofrendo os revezes e tentando sempre resistir, sem abrir mão do caráter político-ideológico do seu teatro; em 71, Boal, seu principal líder, tem que deixar o país e, no exílio, aprofunda sua pesquisa de um teatro político – são diversas técnicas que são conhecidas como TEATRO DO OPRIMIDO, que têm no Arena sua origem.

O golpe de 64 representou um corte brusco numa pesquisa extraordinária, que surgira com o Seminário de Dramaturgia. Momento em que a dramaturgia brasileira estava se aprofundando e amadurecendo. Nunca antes se tinha vivenciado um momento tão efervescente. Tínhamos as condições propícias para um grande avanço do fazer teatral. Uma dramaturgia consistente seria substituída por um teatro imediatista, que se utilizou do palco para gritar “Abaixo a Ditadura!”, e assim o fez. E gritou em alto e bom som! E foi importantíssimo! O teatro se transformou numa trincheira de luta, mas perdeu. Poucas obras conseguiram furar o terrível cerco da Censura Federal, e trazer discussões mais profundas sobre a nossa realidade e nosso povo. O Arena nos deixou um legado: a consciência e a possibilidade de um teatro genuinamente brasileiro, que ainda influencia dramaturgos e encenadores preocupados com um teatro comprometido com a análise de nossa sociedade. E isso, nem todos os tacões da ditadura militar conseguiram abafar.

Deixamos a última palavra com Guarnieri, reafirmando sua fundamental importância para com um teatro compromissado com seu tempo e sua história: “O espírito do Arena foi tão importante que moveu para sempre os seus integrantes. Negamos a arte pela arte não a arte com responsabilidade social”.

TEATRO E REVOLUÇÃO


“O homem é a única maravilha sobre a terra, todas as outras são o produto de sua imaginação, de sua inteligência, de sua vontade criadora”. A crença no ser humano e em sua capacidade de transformação, fez do autor dessa frase um dos dramaturgos mais vigorosos da história do teatro ocidental. A arte e a vida de Maksim Gorki (1868-1936) confluem para um mesmo objetivo: a profunda compreensão do homem e a certeza da possibilidade da revolução social! Respondendo às necessidades do seu tempo e ao momento de transformações que passava a Rússia, tanto no período pré-revolucionário quanto na tomada do poder e na construção do socialismo, Gorki colocou sua obra a serviço de uma causa que abraçou até o seu último dia, sem vacilar um instante sequer.

“Mais e melhor que nos livros, aprendi marxismo com Siemionov, padeiro em Kazan”. Em momento algum Gorki negou suas origens e, em momento algum, se esqueceu da fundamental importância que sua vida de dificuldades teve de determinante em seu trabalho artístico. Desde suas primeiras obras, quando já trazia consigo uma consciência política e a necessidade de participação no processo revolucionário russo, manifestou essa consciência e transformou sua literatura e seu teatro num instrumento de luta e conscientização. Preso por diversas vezes, exilado, não se deixou vergar pela força da repressão e não abandonou seu mais claro objetivo: a revolução socialista.

            “... a vida não tem nada de trágico... vai passando lenta, monótona, como um rio lamacento. E quando se vê o rio correr, os olhos vão se cansando... um tédio vai tomando conta de tudo, a cabeça vai ficando pesada e nem se tem mais vontade de saber por que é que ele corre...” A obra de Gorki, para muitos, é bastante influenciada por Tchekov, no que diz respeito à “falta” de conflitos objetivos. Mas a diferença pára por aí: Tchecov trata, sim, da decadência da burguesia, mas vê os burgueses com bastante complacência, enquanto Gorki que, em princípio, trata do mesmo assunto, tem um posicionamento crítico completamente diferente, pois em seu teatro a burguesia é tratada do ponto de vista de um marxista que luta pela sua derrota e destruição enquanto classe. Vemos, sim, o confronto da burguesia com o operariado (“Pequenos Burgueses” ou “Os Inimigos”), onde a luta de classes é o grande personagem que, mesmo sem ser citado, continua ocupando a mente dos personagens e determinando o comportamento de cada um. Ao contrário de Tchecov, era um esperançoso no destino do homem, não que Tchecov não o fosse também (ele fala muito de um tempo em que uma tempestade vai varrer tudo e que todos trabalharão), mas o era de maneira diferente. Os dois acreditavam que a sociedade podia ser transformada para melhor, mas os caminhos eram distintos. Gorki partiu para confronto direto!

            “Os pequenos burgueses encolheram, encurtaram, reduziram tudo...” Gorki descarrega todo o seu “amargor” (lembrar que Gorki, em russo, significa amargo – Máximo, o Amargo.) contra uma classe que ele considera inútil, sanguessuga do próprio homem; uma classe que está voltada o tempo todo para o seu próprio umbigo; que vive da exploração do trabalho alheio; que vive para acumular riqueza e se enterra em sua própria ambição. Ele sabe que a burguesia vai ser derrotada, o chamado “ensaio geral”, em 1905, já anunciara a tempestade que se preparava.  Em 1917, o que era apenas prognóstico, torna-se realidade e a Rússia transforma-se no primeiro país socialista. Do exílio, Gorki ajuda organizar a revolução e, em 1914, de volta para a Rússia, participa, juntamente com Lênin, do movimento de libertação do seu país e é considerado herói.

Em 1900, dezessete anos antes do triunfo da revolução, Gorki denunciava a burguesia em “Pequenos Burgueses” e, no final da peça, Teteriev, o bêbedo mais sóbrio e consciente da história do teatro, não pesa suas palavras no momento em que se volta contra o pequeno burguês Bessemenov que, desesperado com a saída do filho Piotr de casa, expulsa todos que o cercam: “Não grite, velho... Você não pode mandar embora todos os que te atacam. Não se preocupe, o seu filho volta! (...) Quando você estiver morto, vai reformar alguma coisa deste estábulo... vai mudar os móveis de lugar... e vai viver como você vive agora... tranqüilo, razoável, acomodado... (...) Vai mudar os móveis de lugar, e vai viver com a consciência tranqüila de que cumpriu plenamente o seu dever perante a vida e os homens... É completamente idêntico a você! (...) Completamente idêntico, covarde e bobo! (...) E será, com o tempo, tão avarento como você. Tão seguro de si mesmo, como você... tão mau, como você... E um dia... será até infeliz como você é agora!... A vida avança, velho, e quem não avança ao lado dela, fica só! Como você...”

            Em 1934, Gorki participa ativamente do Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos, com atuação destacada. Defende o realismo socialista que preconizava muito mais o caráter ético do que o estético na obra de arte. Podemos discutir (e devemos!) os rumos tomados pelo realismo socialista durante o período stalinista, que pode ser entendido por alguns como a estética do Estado sobre a liberdade do artista, a obra de arte atrelada irreversivelmente ao pensamento do Estado. Obviamente, não cabe aqui uma discussão mais aprofundada sobre essa questão extremamente polêmica, mas julgo necessário acentuar alguns pontos históricos para um melhor entendimento do teatro em Gorki: o romantismo foi um movimento de afirmação burguesa contra o classicismo aristocrático; o realismo socialista pretende a afirmação do trabalho sobre o capital. A nova sociedade – a sociedade socialista – necessitava de uma arte que afirmasse seus valores humanos trazendo para a cena não mais a particularização do individuo, mas questões maiores da sociedade; não o herói idealizado, mas o homem atuante no seu meio, compromissado com o seu tempo e a sua realidade, cujas preocupações se sobreponham às preocupações dos “pequenos burgueses” denunciados por Gorki. A história é dinâmica e o próprio Marx já levantara uma questão fundamental: “Será que o modo de investigação não deve mudar com o objeto?”.

Gorki, num pronunciamento histórico, defende e esclarece que o novo realismo deveria refletir os anseios e necessidades do homem que vive numa nova sociedade, inspirada pela igualdade social e movida pelo modo de produção socialista: “Sem querer negar a grande obra do realismo crítico do século XIX, reconhecendo todo o valor de seus resultados formais, devemos compreender que este realismo nos serve unicamente para mostrar o passado, para lutar contra ele e para extirpá-lo. Porém, este realismo não nos serve mais (...) O realismo socialista afirma a existência como ação e estabelece que seu objetivo principal é o desenvolvimento das mais preciosas qualidades para se alcançar a vitória do homem sobre as leis da natureza, para alcançar a felicidade de viver sobre uma terra que ele, respondendo ao incessante aumento de suas exigências, quer trabalhar e transformar em uma esplêndida casa para toda a humanidade...”
            É preciso entender, porém, que todo o trabalho literário de Gorki, seja no teatro, no romance, contos ou autobiografias, já apontava, desde suas primeiras obras no início do século, e continuaram apontando sempre rumo a uma sociedade mais justa. Apesar do “amargo” de suas palavras, sua obra (talvez, com única exceção para “Ralé”, quando vai tratar de “criaturas que um dia foram homens”) é uma obra esperançosa, positiva, que mostra sempre homens lutando contra a opressão e aspirando dias melhores. Os princípios do realismo socialista já estavam presentes em “Pequenos Burgueses” (teatro) ou em “Mãe”, 1907 (romance transformado em ópera na URSS e adaptado para o teatro por Bertolt Brecht), antecipando, de certa forma, toda discussão do Primeiro Congresso.  

Gorki viveu apenas dois anos após a “decretação” do realismo socialista. Sua obra influenciou decisivamente os autores de sua época e aqueles que viveram sob a égide da estética socialista. Sua obra extrapola os limites meramente estéticos, pois continua absolutamente atual ainda hoje, quando já decretada a falência do modelo soviético de socialismo, o mundo se depara com as fissuras e profundas contradições do capitalismo, cada vez mais acentuadas. Sua obra vai calar fundo no coração de cada um que pensa que um mundo diferente desse que vivemos é possível, e queira lutar por ele. Como observou Cholokhov, “o humanista não é aquele que lamenta e pobre vitima e deplora a existência do crime na terra, o humanista é aquele que luta, que ajuda a desviar a mão do criminoso a impedi-lo de prejudicar”. E Gorki, com certeza, se faz presente nessa galeria de humanistas que colocaram suas próprias vidas a serviço de uma causa justa, lutando concretamente para o que ele chamou de “terceira realidade”: “Não podemos limitar-nos ao conhecimento de duas realidades apenas, a de ontem e a de hoje, na criação da qual nós participamos em certa medida. É necessário conhecer uma terceira realidade: a realidade do futuro, terceira realidade que nós devemos daqui em diante assimilar e descrever”. Assim pensava; assim o fez! E para fazer, precisou destruir e construir. Tchekov um dia afirmou que “Gorki é um destruidor que deve destruir tudo o que merece destruição. Nisso está toda sua força e é para isso que a vida o chamou.”.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

VEREDAS PARA UM TEATRO POLÍTICO


O teatro brasileiro sofre, ainda hoje, um preconceito absurdo em relação ao chamado teatro político que, se não nasceu nos anos de chumbo, impostos pela ditadura militar na madrugada de primeiro de abril de 64, teve aí o seu maior referencial. E esse preconceito é resultado da postura mesma do teatro em relação ao processo político imposto a partir de então. Como resposta e resistência ao golpe, o teatro se armou com todas as suas forças e não se calou diante ameaças constantes, como também não se calaram diversos segmentos da sociedade brasileira, sejam eles artísticos ou não. Mas o teatro, por suas próprias características, foi das artes a mais perseguida. Como bem ressaltou o saudoso Yan Michalski, “Seria exagerado dizer que o teatro foi erigido em inimigo público número um; mas dizer que foi erigido num dos inimigos públicos mais declarados, e, por conseguinte, tratado com sistemática desconfiança, hostilidade, e não raras vezes com brutalidade, é constatar uma verdade histórica inegável”.

Ao longo de todo o período de obscurantismo e perseguições políticas, o teatro procurou formas, as mais diversas, para escapulir das garras do monstro da Censura Federal, e dizer, viva-voz, o que pensava. Sem medo e sem se intimidar um instante sequer, trouxe para a cena discussões profundas e fundamentais, denúncias severas e críticas mordazes ao regime; lançou mão da metáfora e da parábola como seus principais recursos; às vezes, situando a ação dramática em outro tempo e espaço, ou mesmo criando situações absurdas, mostrou os desmandos cometidos pelos generais de plantão. Porém, as perseguições foram terríveis. Prisões! Exílios! Muitos resistiram bravamente; outros, nem tanto. Alguns chegaram mesmo a apoiar o regime.

Nos primeiros meses de 73, Fernando Peixoto, um dos maiores símbolos de resistência e luta do nosso teatro, traça um quadro bastante pessimista e cáustico do momento por que passa a cena brasileira: “o teatro no Brasil, hoje, não está morto por milagre. Todo o processo cultural nacional está interrompido. As perspectivas são difíceis, os horizontes quase fechados. Existe em todo país uma indisfarçável crise de pensamento e ação. Intelectuais e artistas estão paralisados. Atores, encenadores, cenógrafos, dramaturgos, alguns produtores independentes – são todos vítimas queimando numa imensa fogueira. São poucos os que ainda conseguem, mantendo a lucidez e coragem, transmitir sinais de dentro das chamas. Muitos intelectualmente morrem sem consciência. Para outros, a consciência é a causa mortis”.

A luta contra a ditadura militar ganhou contornos irreversíveis com a mobilização das massas trabalhadoras e, mesmo a classe média, que em 64 marchou com a família tendo Deus como o principal guardião da liberdade, percebeu o erro que cometera e engrossa o coro contra os desmandos, e a derrota do regime de força é inevitável. O teatro brasileiro desata o nó da garganta e grita seu grito de liberdade. Uma enxurrada de peças desabafo são montadas, mas sem outro objetivo senão aquele de mostrar para os generais que somos livres, inúmeras obras censuradas são agora levadas à cena, o que possibilita a quem não viveu aquele triste momento um contato com essa dramaturgia e esse teatro que foram tão perseguidos. Foi uma vitória ver as peças de Plínio Marcos ou Vianninha encenadas. O nosso teatro precisava disso para refletir sobre si mesmo e os novos caminhos a seguir, agora, sem a tesoura censura. Porém, logo após este momento, a dramaturgia brasileira cai no marasmo e na perplexidade e não sabe como reagir. Poucos são os momentos vitoriosos de uma dramaturgia vigorosa e responsável e de um teatro que provoque a reflexão. O besteirol acaba se consagrando a grande vedete. E ainda pagamos um preço muito alto para a sua inútil existência.

Junte-se a isto a queda da União Soviética e o movimento mundial contra o comunismo. Neste sentido, falar de teatro político, hoje, quando grassa no mundo um globalizante sentimento anticomunista jamais imaginado, chegando mesmo a suplantar os tempos da guerra fria e do Comitê de Atividades Anti-americanas, é quase um pecado. Como se o teatro não fosse, em sua essência mesma, político. É preciso não confundir as coisas para não banalizar a discussão. Jorge Andrade, sem dúvida, o maior dramaturgo brasileiro, foi taxativo: “o palco não é um palanque”. O palco é, sim, um foro privilegiado para discussões das relações sociais. É no palco que o confronto artista/público se revela de forma inteira e complexa. Arte absolutamente viva que é, o teatro estabelece uma relação diferenciada com o seu público e o nível de discussão atinge proporções que nenhuma outra arte possibilita. É nessa relação que o fenômeno teatral se realiza e se democratiza, criando vínculos com a platéia e ampliando, assim, o grau de consciência e liberdade de cada um.

É preciso, sim, saber distinguir o teatro político do teatro de protesto, que, muitas pessoas, algumas por ignorância, outras por preconceito ou mesmo má-fé, insistem em confundir. Ainda que tenham uma mesma origem, os dois se diferenciam substancialmente em sua proposta estética e imediatismo da discussão proposta. Novamente Fernando Peixoto nos esclarece e aponta as diferenças fundamentais entre um e outro: “o verdadeiro teatro político propõe não apenas um simples ato esquemático de indignação e protesto, mas uma reflexão. Atores e espectadores, palco e platéia, trocam um diálogo que procura ser transformador. O teatro não transforma diretamente a sociedade, mas pode ajudar a transformar os homens, que são os que transformam as relações sociais. (...) O chamado teatro de protesto, geralmente pobre em recursos de produção, válido e extremamente importante, sobretudo em circunstâncias especiais, quando é necessário usar o espetáculo como uma arma específica a favor de uma causa urgente, quase sempre despreza, em instantes onde isso não seria necessário pois a urgência não é premente, a linguagem cênica. Ou a utiliza com estrema pobreza”.

O teatro brasileiro passou por profundas transformações no final dos anos 50 e início dos 60, particularmente com o grupo do Teatro de Arena, quando a procura por uma identidade nacional e cultural orientou sua pesquisa estética com o objetivo de trazer o homem brasileiro para a cena, com todas as suas contradições. O golpe de 64 interrompeu um dos momentos politicamente mais ricos do nosso teatro, que compreendia a manifestação cênica como resultado de uma análise dialética da realidade, para, dando-lhe contornos artísticos interferir na própria realidade e transforma-la, confirmando o que nos aponta Ernst Fischer, quando diz que “a arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser íntegro, total. A arte capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suporta-la como a transforma-la, aumentando-lhe a determinação de torna-la mais humana e mais hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria, é uma realidade social.”

O estado democrático abre uma perspectiva real de aprofundamento nas discussões essenciais da realidade, seja no campo político, seja no campo ideológico. A análise das contradições sociais e políticas pode ser efetuada de maneira clara e objetiva. Essas contradições que, no estado democrático parecem estar superadas, não sofreram transformações ao longo dos anos, particularmente, se nos fixarmos na história recente do nosso país, quando reconquistamos o estado de direito, através da mobilização e da luta contra a ditadura. Essa vitória, que nos permitiu avanços políticos, não proporcionou os mesmos avanços no campo econômico, social ou mesmo ideológico. Pouco ou quase nada modificou nas respostas às necessidades básicas da população, pois o Estado insiste em privilegiar aqueles que se locupletaram dos desmandos e abusos do poder durante os vinte anos de regime militar. A luta, porém, deve continuar, cada vez mais voltada para as conquistas populares.

Rediscutir a nossa história, buscar a compreensão de erros e acertos de determinado momento, traçar um painel, ainda que não definitivo (nem o teatro pode alimentar tal pretensão!) do comportamento e contradições vivenciados naquele determinado período é, para mim, motivo do teatro que sempre fiz, faço e continuarei fazendo. Sustento que o chamado teatro político não perdeu e nem perderá seu espaço, pois as contradições do capitalismo ainda estão por ser superadas: se o socialismo errou não quer dizer que o capitalismo acertou. Debruçar sobre o processo de formação da sociedade brasileira para entende-la e, conseqüentemente, lutar para transforma-la. Bertolt Brecht afirmou com muita segurança: “Nosso teatro precisa estimular a avidez da inteligência e instruir o povo no prazer de mudar a realidade. Nossas platéias precisam não apenas saber que Prometeu foi libertado, mas também precisam familiarizar-se com o prazer de liberta-lo. Nosso público precisa aprender a sentir no teatro toda a satisfação e a alegria experimentadas pelo inventor e pelo descobridor, todo o triunfo vivido pelo libertador.”

Falar em teatro político, hoje, é falar de resgate de nossa identidade nacional e cultural, pois uma não existe sem a outra e, para reafirmar nossa identidade nacional não podemos ignorar o processo histórico, a formação mesma do povo brasileiro, de sua luta, suas conquistas e suas derrotas. A análise dialética da nossa sociedade como ponto de partida fundamental para o seu amplo entendimento. E sem esse entendimento estaremos reféns da nossa própria ignorância. Não estamos soltos no tempo e no espaço, buscamos ser síntese da nossa história, não como herança imutável, mas movimento dinâmico e em constante transformação. Não é possível entender a nós mesmos sem entender a nossa história. A formação da sociedade brasileira, em todos os seus aspectos, precisa ser entendida e discutida hoje, sem o medo da tesoura implacável da censura federal. Neste sentido, arte e realidade se encontram para tentar entender o momento atual. No espetáculo CANUDOS, no qual enceno um dos mais trágicos episódios da história brasileira, busco um entendimento para a complexa discussão em torno da reforma agrária no país. Não se pode hoje falar da luta pela terra sem recorrer à luta da Antônio Conselheiro e a resistência de Canudos, como um dos momentos mais significativos dessa mesma luta; uma experiência ímpar que nos legou um modelo absolutamente revolucionário de organização social. Como bem ressalta Edmundo Moniz, “lutando contra o latifúndio, desafiando a monarquia e a república, derrotando o exército várias vezes, Antônio Conselheiro, à frente dos camponeses insubmissos, tornou-se a figura mais destacada dos que se bateram, entre nós pela revolução agrária”. A ditadura tentou apagar a história de Canudos e esconder a sua vergonhosa campanha e conseqüente derrota militar, mas sempre na época da seca, na vazante do açude de Cocorobó, a segunda Canudos ressurge das águas como que a nos lembrar a luta dos que tombaram e a vergonha dos que usaram do fogo para destruir a Canudos de Antônio Conselheiro.

Falar em teatro político, hoje, é resgatar, sim, a dignidade de nossos heróis esquecidos, aqueles que se alevantaram na luta por uma sociedade mais justa e humana e que, muitos deles, a ditadura tentou apagar de nossa memória, apagando com isso a nossa própria identidade. A cidadania implica no grau de conhecimento do nosso passado. Falar em teatro político, hoje, antes de ser ultrapassado e fora de hora, deveria ser prática constante em cada instante que se discute o fazer teatral, pois se estamos falando de teatro estamos falando de política pois estamos falando do homem inserido em sua própria história.