TEMPO/ESPAÇO:
PERSONAGEM
PLURIDIMENSIONAL NA OBRA
Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho
Monografia
apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade Federal de Minas Gerais
como
requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Literatura.
Orientador:
Prof. Dr. Antônio Augusto Moreira de Faria
Isso
é um teatro.
Aqui
os homens se encontram e
democratizam
o grau de liberdade de cada um.
Aqui
os homens vêm discutir a liberdade que já conquistaram,
vêm
procurar caminhos para ampliá-la.
Aqui
o que comove é o sonho humano da gratuidade.
Oduvaldo Vianna Filho
Revolução
pra mim já foi uma coisa pirotécnica,
agora
é todo dia, lá no mundo, ardendo,
usando
as palavras, os gestos, os costumes,
a
esperança desse mundo...
Manguari Pistolão
Resumo
O presente trabalho visa a analisar a utilização do flash-back na peça Rasga coração, segundo o conceito de cronotopo de Mikhail Bakhtin, e demonstrar como a relação
tempo/espaço interfere não só no desenvolvimento técnico-dramatúrgico, mas
também e, sobretudo, no comportamento psicológico, político, ideológico e emocional
dos personagens, focando seu personagem principal, Manguari Pistolão.
Palavras-chave: teatro, dramaturgia, flashback, cronotopo.
SUMÁRIO
1 - Do objeto e de como a obra será analisada no trabalho
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1
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2 - Vida e
obra a serviço de uma causa
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9
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Estética, política e censura
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13
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3 – Um mergulho no tempo e no
espaço
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18
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3.1 – Rio de Janeiro: dois tempos/dois
espaços
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21
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3.1.1– Tempo de luta
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22
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3.1.2
– Espaço de luta
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24
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4 –
Rasgando o coração e as estruturas dramatúrgicas
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27
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Cena 1 - Brecht e realismo
psicológico: uma mistura para resgatar e explicar o passado e refletir sobre
o presente
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29
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Cena 2 - De casa pra rua; de volta à casa: um comunista se
apresenta
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34
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Cena 3 - A luta de Luca é também uma luta de Manguari
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39
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Cena 4 - Uma contradição que rasga o coração
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42
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Cena 5 - Exercitando a autocrítica
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48
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Cena 6 - Luta armada versus
organização popular
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50
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Cena 7 - Interrogatório e tortura; resistência e delação: quando
se tem consciência, não se tem traição
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54
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Cena 8 - O desbunde como fuga
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58
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Cena 9 - Realidade e ficção se confundem: um velado elogio aos
dominicanos
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61
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Cena 10 - Ode para um incansável
lutador
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63
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5 – Rasga coração resiste
ainda
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65
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6 – Biografia
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69
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7 – Bibliografia
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72
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1 - DO OBJETO E DE COMO A OBRA SERÁ
ANALISADA NO TRABALHO
Rasga coração, obra máxima de Vianninha[1],
se utiliza da técnica dramatúrgica do flashback
para traçar um painel histórico que percorre aproximadamente 40 anos da
história política do Brasil. Estabelecendo dois momentos cruciais para formação
mesma da consciência política do homem brasileiro (1930 a 1945 e 1972), aborda
o primeiro governo Vargas, desde a Revolução de 30, passando pelo Estado Novo
até a redemocratização em 45; a partir daí, opera um salto temporal e nos
apresenta os primeiros anos da década dos 70, com a ditadura militar atingindo
o seu mais alto grau de repressão na luta contra a “subversão” e o “comunismo
internacional”.
A metaforização da relação tempo/espaço como personagem, no
título do trabalho, vincula-se à percepção teatral de que a noção de personagem
não se reduz apenas ao ser ficcional, mas também à importância dramática que
algum elemento inanimado possa adquirir ao se manifestar na peça, tanto no
âmbito estrito do texto, quanto na sua realização cênica. O objeto, ou qualquer
outro elemento, recebe um tratamento diferenciado, conferindo-lhe novas significações
que estão para além de si mesmo.
Tal dimensão conferida interfere significativamente na vida
dos personagens ficcionais, podendo, também, interferir na própria trama. A
título de exemplo, podemos citar o galho de jabuticabeira que acompanha a vida
do personagem Quim, em A moratória,
ou o mapa da África, em Tio Vania, de
Tchekhov, ou ainda, a “presença” do personagem Calabar, na peça homônima, de
Chico Buarque e Rui Guerra, que, apesar de no início da peça já ter morrido,
continua a existir no imaginário de todos os outros personagens, interferindo
nos rumos da ação dramática. O cinema também se apropria de tal efeito, e
podemos citar, a título de exemplificação, a frase melódica recorrente no filme
Tubarão, a tensão criada por ela
assume status de personagem dramático.
Ao nosso juízo, a relação tempo/espaço tem essa mesma
dimensão dramática na peça Rasga coração
e, com essa perspectiva é que nos lançamos em investigá-la. Intercalando os tempos presente e passado
que, muitas vezes são colocados e vividos pelo personagem central simultaneamente,
a peça, apesar de sua estrutura fragmentada, nos possibilita uma compreensão
mais apurada da realidade histórica brasileira, através da ação de personagens.
Rasga Coração resgata o passado e
recupera dados considerados pertinentes para a elucidação do presente. (...) O
instrumento da consciência criadora, que urde os fatos dramáticos e empreende a
crítica da história nacional, é a memória. É ela que tece relações e fixa
significados. Na representação é ela que potencializa os planos periféricos da
ação ou da expressão nos quais o passado se ilumina e se carrega de sentido.
(BETTI, 1997, 301).
O flashback tem
sido um recurso amplamente utilizado no teatro, e tem como objetivo principal ampliar
as relações tempo/espaço na dramaturgia, permitindo que a memória do personagem
seja presentificada e personificada em cena. O recurso se solidifica como
categoria dramatúrgica a partir dos anos 50: A morte do caixeiro viajante (1949), de Arthur Miller[2]
e A moratória , de Jorge Andrade[3],
são dois exemplos que ilustram bem a habilidade dos autores em construir peças
em que fazem uso da evocação da memória de personagens; são obras que
utilizando-se do flashback,
desenvolvem a ação dramática e constroem dois ou mais universos que caminham
lado a lado, que se entrecruzam para aprofundar e explicar os conflitos
expostos. Não podemos nos esquecer, é claro, de que em 1942, Nelson Rodrigues[4]
escandalizou o teatro brasileiro fazendo um extraordinário uso da fragmentação
dramática a partir do flashback, em Vestido de noiva, peça em que trabalhou
com três planos simultaneamente – realidade,
memória e alucinação.
Nossa pesquisa se propôs a fazer um estudo desses mecanismos
do flashback, na obra Rasga coração, procurando demonstrar
como o binômio tempo/espaço pode atuar na formação política do homem, através
do seu acúmulo de experiências, no enfrentamento das forças sociais que
determinam formas de luta; os encontros e desencontros de gerações que se
enfrentam, o caráter cíclico da história e à superação de contradições que
pareciam insuperáveis.
Por outro lado, ao acompanhar o processo de transformação
pelo qual passa seu personagem central – Manguari Pistolão –, e sua luta pela
conquista de uma sociedade mais justa e igualitária, nos defrontamos com um
herói popular anônimo inserido em diversos momentos da nossa história. Sua atuação,
na maior parte das vezes, se dá de forma clandestina, pois sua participação no
processo político estava restrita e/ou proibida. É essa luta que nos interessou
discutir a partir da relação tempo/espaço: como ela se efetiva no dia-a-dia de
um cidadão que se entrega a uma causa e à sustentação de uma ideologia, apesar
de todas as adversidades enfrentadas.
Manguari, à parte eventuais divergências ideológicas, é um
pouco cada um de nós, pois é “um homem comum”; suas lutas, suas frustrações,
suas crenças e suas derrotas são colocadas nesse painel histórico para que
reflitamos, com Vianninha, sobre as contradições entre novo/velho,
revolucionário/conservador:
Rasga coração é a história de Manguari
Pistolão, lutador anônimo, que depois de quarenta anos de luta por aquilo que
ele acha novo, revolucionário, vê o filho acusá-lo de conservadorismo,
antiguidade, anacronismo. Para investigar essas razões, a peça ilumina quarenta
anos de nossa vida política, mostrando a repetição do conflito de percepção do
verdadeiramente novo. Esse conflito se dá na percepção de gerações diferentes
mas, principalmente, estala dentro de cada geração, e é dentro de cada uma
delas que se define. (...) No final, no frigir dos ovos, o revolucionário para
mim, o novo, é o velho Manguari. Revolucionário seria a luta contra o
cotidiano, feita de cotidiano. A descoberta do mecanismo mais secreto do
cotidiano, que só sua vivência pode revelar. (VIANNA FILHO, 1980, p. 13)
A relação novo/velho foi entendida e analisada como um
processo dialético, em que forças contrárias tentam se superar mutuamente,
visando a atingir uma nova etapa do desenvolvimento. Esse sentido materialista e dialético nos
pareceu estar mais próximo do pensamento oduvaldiano, que sempre pautou seu
trabalho na análise marxista da realidade, tendo como base teórica o
materialismo histórico e dialético. Entendemos o materialismo com Krapívine,
que o define como um
sistema filosófico, segundo o qual o mundo é
material, existe objetivamente, fora e independentemente da consciência, a
matéria é primária, não foi criada e existe eternamente. Sustenta também que a
consciência e o pensamento são propriedades da matéria e que o mundo e suas
leis podem ser conhecidos. (1986, p. 296-297)
Nesse sentido, nossa análise esteve sempre pautada na
perspectiva da terceira lei da dialética - negação
da negação. Negação, no sentido dialético, deve ser entendida como
A substituição do velho, do caduco, pelo
novo, isto é, a sucessão das etapas do desenvolvimento. (...) A negação reside
na unidade e oposição dos elementos contraditórios que tem valores diferentes e
desempenham papeis diferentes no desenvolvimento do objecto ou fenómeno. Um
deles tende a modificar o objecto ou fenómeno
dado e, por conseguinte, o seu papel é progressista. Todavia, o outro expressa
a estabilidade, o equilíbrio deste objecto ou fenómeno e por isso tem o
carácter conservador. Neste contexto, a negação significa a solução dessa
contradição interna mediante a destruição do elemento velho, conservador, e a
implantação do novo, progressista. (...) o desenvolvimento é o processo em que
o elemento novo nega e substitui constantemente o velho. (...) dado que o
desenvolvimento é irreversível, o que era novo torna-se, cedo ou tarde, velho
e, portanto, deve ser necessariamente substituído. E assim ocorre a negação
daquilo que, outrora, era também a negação. Em suma, a negação da negação, a
substituição do velho pelo novo e deste por outro novo constitui a lei do
desenvolvimento. (KRAPÍVINE, 1986, p. 174-175 e 179)
A relação entre Manguari e Luca, seu filho, deve ser encarada
sob esses parâmetros, pois a luta entre os dois se dá no campo das ideias, é
uma luta travada por opostos, em que um tenta negar o outro, buscando assim,
superar as contradições e avançar no desenvolvimento. Vianna, no entanto,
entende que o novo na relação é o velho, ou seja, o pensamento de Luca, apesar
de ser o mais jovem na idade, representa o velho, já que não conseguiu, através
do acúmulo de experiências, superar seu próprio pensamento. Vianna entende que
o pensamento está estreitamente vinculado à consciência política e social. E
Luca não demonstra nenhuma preocupação neste sentido; mesmo a sua preocupação
ambiental se manifesta como expressão do individualismo, pois está contaminada
pelo caráter místico. Manguari, ao contrário, passa por constantes reflexões
sobre suas ações, exercendo permanentemente a autocrítica.
Com a preocupação de exemplificar nosso raciocínio, tomemos
dois momentos em que ambos os personagens reveem suas posições: Luca, na Cena 2, p. 34, depois de um confronto
com o pai, volta e pede desculpas: “Me desculpa, viu?... olha... eu te acho pá
legal, viu?... você é um... como é?... herói popular anônimo... te acho pá
legal...”; - Manguari, na Cena 5, p. 55, também depois de um confronto com o
filho, volta atrás e faz sua autocrítica[5]:
“... queria pedir desculpas, Luís Carlos, quero
fazer autocrítica... desculpe eu ter pedido pra você cortar o cabelo...” (grifo nosso)
A diferença entre os dois se manifesta em suas próprias
posturas nos momentos após a confirmação do erro e o pedido de desculpas: Luca
continuará com as mesmas posturas de antes, já Manguari, que fez autocrítica,
muda sua postura em relação ao filho, superando assim seu comportamento
anterior.
Por outro lado, nos deparamos com a relação passado/presente,
como recurso dramático para apresentação e desenvolvimento dos conflitos
apresentados. Estruturada dramaturgicamente visando a estabelecer os contrastes
e aproximações do tempo passado e do tempo presente, a peça tem no flashback seu mecanismo principal, que
revela o passado do personagem como resultado de suas memórias ativadas por
fatores externos e de maneira inconsciente. Raros são os momentos em que o
personagem Manguari busca arbitrariamente o seu passado. Podemos citar, a
título de exemplo, quando da morte do seu amigo Lorde Bundinha, Nena, sua
esposa, pede a ele “Não vai contar isso de novo, Custódio, por favor...”
(p.70), mas ele já nem consegue mais se dominar e faz sua última imersão em
direção à lembrança do amigo morto.
Como afirma Ricoeur, “nos lembramos daquilo que fizemos,
experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância particular.” (2010,
p. 42) Assim como Olga Benário em sua última carta a Luís Carlos Prestes: “Lutei pelo justo, pelo
bom e pelo melhor do mundo” [6],
Manguari, por entender
que a sua história é digna, correta e justa, busca seu passado como referência
para entender o filho.
Le Goff (2008) esclarece que
a memória, como propriedade de conservar
certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções
psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, ou que ele representa como passadas. (p. 419)
O processo de lembrança em Manguari Pistolão, que será
estimulado por uma situação cotidiana e social, se aprofunda à medida que seus
conflitos com o filho ganham corpo; à medida que os conflitos se aprofundam, sua
memória torna-se mais excitada, portanto, mais sujeita a deformações e
imprecisões. Por isso, a cronologia não é absolutamente respeitada nas cenas do
passado. É necessário compreender, então, que estamos diante de uma obra
ficcional e que se trata da memória de um personagem também ficcional e que a
mobilidade temporal faz parte do efeito dramático almejado. Como nos alerta
Sarlo (2007),
o passado é sempre conflituoso. A ele se referem,
em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue
acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não
coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça,
de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas
perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum. (p. 9).
Portanto, não podemos exigir de uma obra ficcional
dramatúrgica o rigor dos fatos. As referências históricas existem para que Manguari,
ao fazer uma revisão de sua própria história de lutas, consiga refletir com
mais clareza sobre o seu próprio presente. É como se ele buscasse em seu
passado formas de entendimento do seu presente, mas para entender e explicar
seu presente, precisa, antes, entender o seu passado. Através de uma avaliação
autocrítica de seus comportamentos que estão guardados em sua memória, busca
mecanismos para contrapor-se aos argumentos e comportamentos do filho. A
repetição das situações não é mecânica, respeita a um fluxo dramático de
relação tempo-espaço altamente elaborado. A sofisticada carpintaria
dramatúrgica nos proporciona estabelecer um pacto
ficcional, que nos permite aceitar as variações temporais e espaciais como
resultante da memória turbulenta do personagem central.
A recorrência ao passado, por parte de Manguari, é resultante
do vislumbramento de uma possível continuidade da sua história de lutas. Ele sonha
para o filho a mesma postura que tem diante das questões sociais, das
injustiças e, até mesmo, da política enquanto atividade cotidiana do homem;
deseja um filho que continue sua luta por uma sociedade mais justa; recorre a
Gonçalves Dias para demonstrar qual modelo sonha para o filho:
Manguari – Como é que um pai que se preza pede a um
filho que ele se proteja, se cuide, se poupe, que não lute, se despedace
cicatrizes, gilvazes fraturas punhaladas rasga o coração na ponta de todas as
dores filho meu “tu choraste em presença da morte? na presença de estranhos
choraste? não descende o cobarde do forte: pois choraste, meu filho não és!”[7]
Luta menino, luta te quero aleijado, marcado a ferro mergulhado, em batalha que
a vida bate e brilha no fundo das lutas... (p. 52)
Sua frustração com as decisões do filho alimenta ainda mais o
seu passado, que insiste em se refletir em seu presente: Manguari não parou de
lutar, não se entregou, mesmo não tendo conseguido nada com a política, pois
não foi almejando proveito próprio que se entregou à luta. A luta faz parte de
sua vida, e dela não consegue se apartar. Até os últimos instantes da cena
final, sua lembrança é ativada, demonstrando a necessidade de se continuar
lutando: o telefonema para Marco Aurélio no presente, se completa com seu
passado, na figura de Camargo Velho anunciando o fim da guerra e o início de
novos tempos.
Como metodologia de
trabalho, desenvolvemos um
estudo biobibliográfico (depoimentos,
estudos, biografias, ensaios, análises históricas etc.) referente à vida e obra de Oduvaldo Vianna
Filho. Fundamental para
nosso trabalho foi contar com a edição histórica de Rasga coração, publicada pelo extinto Serviço Nacional de Teatro,
órgão da Funarte, que traz em anexo toda pesquisa efetuada por Vianninha para
composição da peça. Aí encontramos piadas, músicas, informações sobre o Rio de
Janeiro na década de 30, dicionários de gírias e expressões de época, entre
outras informações que foram fundamentais para um melhor entendimento da obra.
Realizamos um estudo de detalhamento da peça, que é composta de dois atos, assim
divididos: o primeiro ato contém
quatro cenas numeradas de 1 a 4, e o segundo
ato seis cenas numeradas de 5 a 10. Em relação às cenas de passado não
existe um rigor cronológico, os momentos históricos são revelados de acordo com
a necessidade dramática e o movimento psicológico do personagem, ao contrário
do presente, no qual a sequência de ações respeita rigorosamente a cronologia
dos acontecimentos. Trabalhamos cena a cena, analisando em cada uma como se
movimenta o tempo/espaço e como o personagem central – Manguari Pistolão –
reage a cada instante e como se efetuam suas transformações – passado/presente
– ao longo da peça.
O trabalho foi dividido em quatro partes:
Na primeira parte do trabalho, Vida e obra a serviço de uma causa, apresentamos alguns dados biográficos de Oduvaldo Vianna Filho: um
pequeno painel de sua obra mais significativa, ressaltando características do
seu teatro. Destacamos, sobretudo, como o dramaturgo assumiu declaradamente uma
postura política e ideológica em favor das camadas mais exploradas da sociedade,
colocando sua obra a serviço dessa causa. Apresentamos, também, no subitem Estética, política e censura, uma
análise da ação da censura federal, implantada no Brasil, a partir de 1º. de abril de 1964, visando a preservação do
regime militar, e os prejuízos provocados em nossa cultura e arte,
particularmente, em relação o teatro. Ressaltamos a proibição da peça Rasga
coração e a luta que se travou pela sua liberação.
Na segunda parte, Um
mergulho no tempo/espaço, apresentamos o fundamento teórico - o conceito de
cronotopo, de Mikhail Bakhtin - que orientou nossa pesquisa e sua aplicação em nossa análise dramatúrgica da
peça. Discutiremos, também, nesta seção, a localização espaçotemporal em que se
situa o corpus dramatúrgico, no
subitem Rio de Janeiro: dois tempos /
dois espaços, no qual relacionamos o tempo e o espaço real da cidade do Rio
de Janeiro, nos anos 1930/40 e em 1972, e sua ficcionalização dramática, já que
servem de cenário para o desenvolvimento da peça.
Em Rasgando o coração
e as estruturas dramatúrgicas, analisamos, detalhadamente, as dez cenas
integrantes da peça Rasga coração e,
como o autor se utilizou da técnica dramatúrgica do flash-back para recontar parte significativa da História do Brasil,
através de um mergulho na memória, nas práticas e nos conflitos enfrentados
pelo seu personagem central, um lutador popular anônimo.
Rasga coração resiste ainda é
a última parte do trabalho. Apresentamos nossa opinião no sentido de ressaltar
que a peça Rasga coração, mais de
trinta anos depois de escrita, continua refletindo a realidade brasileira, portanto,
continua atual em sua análise do comportamento o homem brasileiro e na
identificação de problemas que não foram superados com a derrota da ditadura
militar. Nesta seção apontamos nossas conclusões finais.
2 - VIDA E OBRA A SERVIÇO DE UMA
CAUSA
O teatro de Oduvaldo Vianna Filho – Vianninha – se
caracteriza por uma profunda tentativa de explicar o homem brasileiro em suas
necessidades e suas possibilidades. Uma dramaturgia se expressa carregada de
significados sociais e forjada na procura de uma linguagem que se aproxime à do
homem comum que, ainda nos anos cinquenta, estava bastante distante de nossa
realidade teatral, profundamente influenciada que era pelo teatro europeu. Vianninha
se apropria de diversas formas dramáticas para construir sua obra, desde a
literatura popular nordestina[8]
até uma linguagem mais sofisticada como em Mão
na luva[9] ou Papa Highirte[10], ou quando lança mão
de elementos do teatro épico de Bertolt Brecht[11].
Vianninha dimensiona seu homem dramático dentro de um mundo
onde a esperança e o jogo de cintura para se livrar da opressão capitalista que
o esmaga são palavras de ordem. Mesmo que o homem se sinta parcialmente
derrotado, seus textos não deixam de transparecer uma perspectiva de
continuidade e luta. Jamais a derrota total e passiva diante do sistema. Jamais
a acomodação. Mesmo na peça Corpo a corpo[12], onde o
personagem Vivacqua assume que faz parte do sistema, há todo um questionamento
deste mesmo sistema e uma lúcida opção em se entregar a ele. Não tendo como se
isolar, o personagem, no caso, opta por fazer parte da máquina, mas sua
consciência do processo condicionador dos meios publicitários o leva a se
questionar todo o tempo. E Vivacqua, ainda que cabotinamente, se justifica,
afirmando que tenta dar alegria às pessoas com seus comerciais, acredita que é
possível fazer poesia com publicidade. Mas está vendido, aí reside sua crise. Vianninha
não consegue se proteger e se esconder e, de certa forma, se revela no
personagem Vivacqua:
A peça era efetivamente um
desabafo amargurado de Vianinha, do artista que se interroga sobre sua atuação
em ambiente intensamente desfavorável à concretização de seus sonhos. Desabafo
do dramaturgo que, aos 34 anos, não conseguia sobreviver do ofício de escrever
e precisava fazer concessões. (MORAES, 1991, p. 216)
Em depoimento a um
jornal, Vianninha faz como que uma análise de sua obra e tenta explicar o
processo artístico pelo qual está passando, no qual, sem deixar de lado a
denúncia, aprofunda as contradições de seus personagens:
Comecei a me
preocupar muito mais com a existência do ser humano nesse redemoinho e tentar
mostrar o processo de deformação. (...) Mas meu objetivo continua sendo a
denúncia. Só que tento mostrar que a superação desse estado de coisas não
depende de uma decisão simples, de uma vontade romântica. Exige paciência,
ironia, organização, sabedoria e um conhecimento profundo da realidade. É um
pouco o domínio do desespero.[13]
Em Rasga coração, Vianninha consegue a síntese da pesquisa que empreendeu
na busca por um teatro brasileiro que trouxesse para a cena os problemas
brasileiros; politicamente, a síntese também é atingida, não só em seu aspecto
histórico, já que abrange um grande período da luta dos comunistas brasileiros,
mas também por aquilo que Manguari Pistolão representa em sua galeria dos
heróis populares.
Desde as primeiras experiências no Teatro de Arena, a busca por uma
linguagem cênica que expressasse a essência do homem brasileiro, torna-se quase
obsessiva para Vianninha. Portanto, esse caráter de pesquisa está inserido em
um projeto coletivo, porém Vianninha é quem vai, segundo nosso entendimento,
aprofundá-lo de maneira mais definitiva. Suas experiências, seja no Arena[14],
no CPC[15]
ou no Opinião[16],
grupos aos quais esteve vinculado, ou mesmo no processo de criação individual, quando
suas produções mais representativas são realizadas, podemos detectar avanços
fundamentais em suas pesquisas. O aprimoramento dos diálogos, as situações
dramáticas, as relações entre personagens, tudo é fruto desse projeto de busca
incansável da representação cênica do homem brasileiro. Um personagem como
Lorde Bundinha não está ali apenas para ser o contraponto dramático, mas para
reforçar esse caráter brasileiro na peça. Essa atitude não se propõe apenas a
conseguir determinado efeito enquanto recurso cômico, mas para acentuar o
próprio caráter da personagem central, Manguari Pistolão. Com Lorde Bundinha,
Manguari amadurece e se forma enquanto homem ligado à boemia, apesar de seu
compromisso revolucionário regido pelo rigor stalinista. No agon final com seu filho, Manguari em
sua profissão de fé, afirma: “Sou um homem comum”. É nesse homem comum que ainda
se manifesta o antigo boêmio ao observar a vizinha trocar de roupa. Aí encontramos o homem brasileiro em sua
inteireza, em sua integridade, em sua luta constante por uma vida melhor, e
essa luta pode ser realizada sem se perder o bom humor.
Como dissemos, desde sua primeira
peça, Bilbao via Copacabana (1957), na
qual nos mostra um anti-herói-macunaímico-urbano, até Rasga coração (1974), seu último trabalho, há uma profunda investigação
da linguagem do homem brasileiro. Vianninha se dedica a encontrar suas nuances,
seu ritmo e sua melodia para assim revelar o processo mesmo de formação do povo
brasileiro, suas contradições e sua capacidade de superação quando se lhe confronta
uma realidade adversa. Discute o trabalhador urbano e rural e a classe média,
que já iniciara seu processo de proletarização a partir do golpe de 64, em
praticamente toda sua obra. Com exceção feita a Papa Highirte, em que trata de um ditador latino-americano no
exílio. Nesses dois universos, trabalhador e classe média, levanta questões que
os afligem e, em cada um procura a maneira própria de atingir o público, desde
o radicalismo do CPC até uma análise
mais abrangente da situação caótica a que foi jogada a classe média.
Dotado de uma percepção aguçada e privilegiada, uma
consciência marxista apuradíssima, Vianninha não permite que seus personagens
se movimentem aleatoriamente e os coloca em xeque consigo mesmos, denunciando
suas contradições. Levanta dúvidas, suas e dos personagens, transformando-as em
substância dramática, chegando ao seu limite extremo, quando faz uma reflexão
sobre a própria construção do pensamento crítico brasileiro de esquerda (mais
precisamente, comunista), com Manguari
Pistolão.
Mais do que grande dramaturgo - cuja obra revela um
amadurecimento extraordinário ao longo dos anos -, ou homem de teatro ativo e
inquieto com o processo cultural - seus artigos de análise da realidade
artística e cultural brasileiras revelam um profundo conhecimento e apuro
crítico[17]
-, Vianninha foi uma pessoa que viveu o seu tempo intensamente,
foi a inquietação permanente, a procura
constante, a dedicação íntegra, a fidelidade a seus primeiros compromissos.
Inquebrantável mesmo nos instantes mais adversos, nas ocasiões em que
desesperar não pareceria um absurdo impossível. (...) Mas não consigo pensar
Vianninha só como dramaturgo. Ao lado da amizade e da admiração, de alguns
instantes difíceis passados juntos (nas ruas, com a polícia na frente...),
guardo sobretudo sua personalidade aguda, penetrante, os olhos firmes, a
inteligência certa e provocante. O rosto de garoto, o incentivo ao trabalho. A
afirmação de trabalho e vida nas vésperas da morte. (PEIXOTO, 1983, p. 9-10)
Fiel ao Partido Comunista Brasileiro[18]
(com apenas nove anos de idade já fazia campanha eleitoral para o pai,
candidato a deputado pelo PCB), foi um lutador incansável. Lutador contra a
injustiça social, contra a dominação cultural e lutador ferrenho contra a
morte, que o levou aos 34 anos de idade. As últimas cenas de Rasga coração foram ditadas para sua mãe
num leito de hospital, onde ele travava sua derradeira luta contra o câncer.
Não se limitou a escrever grandes textos e deixá-los para a eternidade.
Observador arguto da realidade escreveu uma dramaturgia comprometida com seu
tempo e sua história, revelando suas preocupações em entender o povo
brasileiro, situando-o no centro da luta social, discutindo sempre a
contradição fundamental entre necessidade e possibilidade:
Existe uma
drástica discrepância entre, por um lado, o que eles [os personagens] gostariam
de ser e como gostariam de viver e, por outro, o que eles de fato são e como
eles de fato vivem; e é justamente sobre esta diferença, mais talvez do que
sobre qualquer outro aspecto das suas existências e das circunstâncias que as
envolvem, que Vianinha escreve, com dolorida compreensão e compaixão humana,
que não exclui uma lúcida e por vezes impiedosa análise das suas contradições.
(MICHALSKY, 1984, p. 5)
Não tinha preocupações em escrever
obras primas, ainda assim, nos deixou pelo menos duas, que estão entre o que há
de melhor no teatro brasileiro[19]:
Rasga coração e Papa Highirte. Muitas de suas obras foram compostas para um momento
específico, de caráter nitidamente imediatista, respondendo a uma necessidade
do momento político. Uma obra atuante em seu momento histórico. Mas de forma
alguma um teatro velho, morto. A vitalidade de suas peças é sentida à flor da
pele.
Ele, que acreditava que o teatro é
um lugar onde “os homens se encontram e democratizam o grau de liberdade de
cada um” e onde “os homens vêm discutir a liberdade que já conquistaram e
procurar caminhos para ampliá-la”, nos dá uma lição de humanidade e democracia,
em saber recuar em determinados momentos para avançar depois por outros
caminhos.
Estética, política e censura
O estado militar brasileiro, implantado no golpe de 1º. de
abril de 64, se armou com um aparato repressivo de contenção e controle da
sociedade, visando a silenciar qualquer manifestação contrária ao regime. A
proibição de greves de trabalhadores; o impedimento da organização e
manifestação estudantil através do Decreto
477; as perseguições, cassações de direitos políticos, a prisão, a tortura,
o desaparecimento, o exílio e, finalmente, a morte de seus adversários, foram
alguns dos mecanismos de terror experimentados e utilizados, sempre pautados
pela Doutrina de Segurança Nacional e
amparados pela Lei de Segurança Nacional.
A censura política imposta por esse mesmo regime, não foi
apenas um mecanismo para impedir o acesso a determinadas obras de arte,
consideradas ameaçadoras à ordem política e social; a censura foi
substancialmente uma forma de impedir o artista de se comunicar com o seu
público. Não foram apenas obras pontuais. Alguns dos nossos maiores nomes, seja
no teatro, na música, na literatura, mereceram atenção especial pelos órgãos de
repressão política. O seu pensamento sobre a realidade nacional, expressado nas
peças, nas músicas, na ficção ou na poesia, sofreram, além da vigilância
cerrada, um processo de desarticulação promovido pelo impedimento de suas
obras. Artista e público se distanciaram, pois tiveram entre si, a tesoura do
censor, sempre pronta a agir de acordo com o humor do seu manipulador, que
detinha o poder absoluto para determinar o que podia ou não ser assistido,
ouvido ou lido. Um técnico, que tinha por obrigação cercear o acesso e impedir
a transmissão do pensamento entre o artista e seu público, e que lançou mão
desse poder sem critérios objetivos, seguindo apenas sua intuição de agente da
repressão política. No teatro, verificou-se uma perseguição mais obstinada do que
em qualquer outra forma artística:
Fazer teatro e escrever sobre teatro sem ter
em mente a existência da Censura se tornaria rapidamente uma impossibilidade, a
partir do momento em que o regime implantado em 1964 começou a definir as suas
características. A presença das autoridades censórias oficiais ou oficiosas,
ocupou resolutamente o primeiro plano, imiscuiu-se em todas as fases e todos os
setores da criação, transformou-se numa espada de Dâmocles que pesava sobre
tudo que se escrevia, que se escolhia para montar, que se ensaiava, tudo que se
criticava, tudo que se mantinha em cartaz. Seria exagerado dizer que o teatro
foi erigido em inimigo público número um; mas dizer que foi erigido num dos
inimigos públicos mais declarados, e, por conseguinte, tratado com sistemática
desconfiança, hostilidade, e não raras vezes com brutalidade, é constatar uma
verdade histórica inegável. (MICHALSKI, 1979, p. 8-9)
A censura proibiu obras, mas não calou seus autores, que se
colocaram indiscutivelmente na zona de confronto, através de diversos
artifícios que se lhes apresentavam, para tentar desviar a atenção do censor e
assim “passar” o que lhes interessava, mas o prejuízo para o teatro tornou-se
incalculável:
Nunca saberemos quantas [peças] ficaram
mofando sem resposta nas gavetas da censura; quantas foram liberadas com cortes
tão substanciais que se tornaram irrepresentáveis; quantas foram encenadas com
modificações que deturparam o seu sentido original; quantas nem sequer foram
submetidas à censura, quer por receio da ação do lápis vermelho, quer por ter
sido o seu envio desaconselhado pelos
próprios censores; quantas – suprema especulação – deixaram de ser escritas,
porque aquilo que os autores tinham a dizer seria obviamente incompatível com
os critérios da censura. (MICHALSKI, 1979, p. 44-45 – grifado no original)
Produzindo incansavelmente, Vianninha não cedeu em momento
algum. Antes, soube perceber, nos diversos momentos históricos, que tipo de
teatro fazer para atingir determinado público, que julgava ser o seu principal
alvo naquele momento. Essa percepção tornou Vianninha um dos dramaturgos mais
visados pelo regime militar, cerrando fileiras com Plínio Marcos, Guarnieri,
Dias Gomes. Desde o Arena, quando ao
perceber contradições profundas entre o teatro que se produzia e o público que
era atingido por aqueles espetáculos, se afasta do grupo para formar o CPC, que buscava com um teatro de
agitação se aproximar das camadas populares e dos trabalhadores. O próprio
Vianna, em seu artigo Do Arena ao CPC,
esclarece que
o teatro de Arena, porém, trazia dentro de sua estrutura um
estrangulamento que aparecia na medida mesmo em que cumprisse a sua tarefa. O
Arena era porta-voz das massas populares num teatro de cento e cinquenta
lugares... O Arena não atingia o público popular e, o que é talvez mais
importante, não podia mobilizar um grande número de ativistas para o seu
trabalho. (...) o Arena contentou-se com a produção de cultura popular, não
colocou diante de si a responsabilidade de divulgação e massificação. Isto sem
dúvida repercutia em seu repertório, fazendo surgir um teatro que denuncia os
vícios do capitalismo mas que não denuncia o capitalismo ele mesmo. (...)
Nenhum movimento de cultura pode ser feito com um autor, um ator etc. É preciso
massa, multidão. (PEIXOTO, 1983, p. 93)
O CPC pretendia-se
um veículo conscientizador e, consequentemente, orientador das massas em suas
reivindicações sociais e políticas; um farol que apontasse para a transformação
social. No entanto, as precárias condições em que era realizado o projeto
impediu o desenvolvimento do trabalho, como bem ressalta Vianna, em entrevista
a Ivo Cardoso:
Qualquer trabalho de profundidade cultural,
de horizontalização, de levar frutos culturais, exige em primeiro lugar um
trabalho de continuidade, e essa continuidade para nós praticamente não
existia. Eu acho que realizei espetáculos teatrais em praticamente todas as
favelas do Rio de Janeiro. Mas eu devo ter realizado um ou dois em cada uma.
Isso significa uma total descontinuidade. Realmente não tinha nenhum
significado. (Idem, p. 175)
Com o golpe de 64, não seria mais possível continuar com o
projeto do CPC. Vianninha funda com
Ferreira Gullar o grupo Opinião, que
dirige seu foco para a classe média, que estava narcotizada pelo movimento
militar vitorioso, acreditando-se livre da ameaça do comunismo internacional,
que marchou com a família ao lado de Deus em direção à liberdade.
Vianna percebeu que era necessário dialogar com essas pessoas
e apontar as contradições do capitalismo e do próprio regime militar vigente.
Sua capacidade de análise da realidade foi o que lhe permitiu essas mudanças de
rumo para continuar em seu projeto de um teatro combativo e transformador. Continuava
fiel à velha proposta do Arena em
discutir o homem brasileiro e sua realidade. Agora, a partir de 65, era necessário
discutir o brasileiro classe média, que se deixara levar pelas promessas da
chamada revolução de 64. Em 68, o projeto de teatro de grupo foi esfacelado;
Vianninha foi “obrigado” a partir para um trabalho individual, embora ainda
mantivesse parceria com outros dramaturgos[20].
A história conturbada de Rasga coração nos revela uma contradição
produzida no interior mesmo do sistema[21]:
o SNT- Serviço Nacional do Teatro,
órgão federal de fomento e estímulo ao teatro brasileiro, subordinado ao
Ministério da Educação e Cultura, promotor do mais importante concurso de
dramaturgia em território nacional, confere o primeiro prêmio ao texto,
considerando Rasga coração a peça
mais importante escrita no ano de 1974; por outro lado, na contramão da
história, o Departamento de Censura
Federal, órgão vinculado à Polícia Federal, subordinado ao Ministério da
Justiça, proíbe a divulgação, edição e encenação da peça.
Dois órgãos federais, subordinados a dois ministérios
distintos, adotam duas posições contraditórias, tornando públicas suas
divergências quanto à atuação mesma do Governo Federal, através de seus entes,
no cenário cultural brasileiro, e deixando patente certa hierarquização
política entre os ministérios do governo militar: os tacões do Ministério da
Justiça pisaram na cultura e em sua manifestação mais suprema de criação de uma
obra prima. Rasga coração foi
oficialmente proibida em 1977; só viria a ser liberada em 1979, tendo sua
estreia no Teatro Guaíra, Curitiba, em 21 de setembro do mesmo ano[22].
Segundo Betti,
Rasga
Coração, marcado de forma
especial pelo fato de ser o último [texto] de um autor carismático como
Vianinha, fazia-se agora marcar com a ironia de receber o primeiro prêmio num
concurso que havia sido interrompido sete anos antes, em 1968, precisamente
quando outro texto também seu, Papa
Highirte[23],
fora o vencedor. Dessa forma, Rasga
Coração tornou-se mais um nome na crescente e interminável lista de obras
rigorosamente vetadas. Rapidamente essa circunstância reaviva o espírito de
resistência ao autoritarismo: versões clandestinas, mimeografadas em condições
precárias, começam a circular; leituras dramáticas a portas fechadas sucedem-se
no Rio de Janeiro e São Paulo, em clima fortemente emocional[24].
(1997, p. 291-292)
3 - UM MERGULHO NO TEMPO/ESPAÇO
Bakhtin (2010) conceitua o cronotopo, “como uma categoria conteudístico-formal” que reflete “a
expressão de indissolubilidade de espaço e de tempo” (p. 211). Sua descoberta e
definição da relação tempo/espaço como categoria artístico-literária
possibilitou uma nova compreensão do personagem teatral como ser atuante, e da
própria ação dramática que, a partir de agora, podem ser entendidos em sua
completude ficcional, já que a indissolubilidade espaçotemporal determina um
lugar geográfico que estabelece uma estreita relação com o período de tempo em
que o personagem atua e sofre as influências necessárias à sua transformação.
A arte e a literatura estão impregnadas por valores cronotópicos de diversos graus e
dimensões. Cada momento, cada elemento destacado de uma obra de arte são estes
valores. (...) toda imagem de arte literária é cronotópica. A linguagem é
essencialmente cronotópica, como tesouro de imagens. É cronotópica a forma
interna da palavra, ou seja, o signo mediador que ajuda a transportar os
significados originais e espaciais para as relações temporais (no sentido mais
amplo). (BAKHTIN: 2010, p. 349 e 356 – grifado no original)
No teatro, devemos considerar duas dimensões artísticas: a
literária e a espetacular. O presente trabalho pretende uma análise literária
de uma peça de teatro, embora não nos seja possível descartar, ainda que
virtualmente, a realização cênica do texto. Neste sentido, o vislumbre da
encenação nos permite uma percepção ainda mais apurada dos diversos cronotopos
do texto. É necessário que se destaque também a existência de inúmeros
cronotopos, e de cronotopos menores que se localizam internamente em outros
cronotopos maiores. Bakhtin ressalta que
cada um destes [grandes] cronotopos pode
incluir em si uma quantidade ilimitada de pequenos cronotopos: pois cada tema
possui o seu próprio cronotopo (...) Nos limites de uma única obra e da criação
de um único autor, observamos uma grande quantidade de cronotopos e as suas
interrelações complexas e específicas da obra e do autor, sendo que um deles é
frequentemente englobador ou dominante. (...) Os cronotopos podem se incorporar
um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, se opor ou se
encontrar nas relações mais complexas. (2010, p. 357)
Em Rasga coração observamos e trabalhamos com dois cronotopos
dominantes: a rua (o externo) e a casa (o interno), nos diversos tempos
abordados pela peça. Ainda nesta seção, trataremos de como será operada nossa
análise.
Bakhin sugere um rompimento com a aparente dicotomia
existente entre forma e conteúdo, já que classifica o cronotopo como “categoria
conteudístico-formal”, portanto, a forma deve ser considerada como expressão do
conteúdo, sem a qual este não se manifesta. Sendo o cronotopo a “ideologia modeladora
da forma” (e aqui devemos entender a forma não em seu sentido absoluto, mas
“contaminada” pelo conteúdo), entendemos que o autor, ao optar por esta e não
outra forma, tenha em mente sua eficácia enquanto mediadora entre a ideologia
da obra e o seu receptor, uma vez que a ideologia do cronotopo é que “modela a
forma”. Assim, concluímos que o cronotopo é dotado da capacidade de moldar a
imagem do indivíduo, pois se configura como um mecanismo de cognição; portanto,
o cronotopo é responsável pela formação da consciência do homem, consciência que
deve ser compreendida como
[o] acto pelo qual [o homem] toma consciência
do seu ser, como propriedade da matéria altamente organizada, como imagem
subjectiva do mundo objectivo, como elemento ideal oposto ao material, mas em
unidade com este último. No sentido mais restrito, a forma superior de reflexo
psíquico inerente ao homem socialmente desenvolvido e relacionada com a
linguagem; o aspecto ideal da actividade laboral orientada para um determinado
fim. Formou-se como resultado e com base na prática social e manifesta-se em
duas formas: individual e social. A consciência social não é senão o reflexo do
ser social. As formas de consciência social são a filosofia, a ciência, a arte,
a moralidade, a religião, a política, o direito. (KRAPÍVINE, 1986, p. 278-279)
Neste sentido, compreendemos a cena dramática, em sua
localização espaçotemporal, como modeladora do comportamento do personagem. O cronotopo age diretamente no
desenvolvimento da cena, estimulando as ações dos diversos personagens nela
inseridos e que se movimentam nesse “todo” em que se configuram o tempo e o
espaço. Essa mobilidade aprimora, de acordo com a experiência vivida, sua
percepção da realidade, promovendo a partir do conflito dramático de
ação/reação, uma tomada de consciência, que se aprofunda e se molda, contribuindo
para o seu aprimoramento moral, psicológico, social e político.
Em
seu sentido primário, um cronótopo[25]
é uma maneira de compreender a experiência; é uma ideologia modeladora da forma
específica para compreensão da natureza dos eventos e ações. (...) As ações são
necessariamente praticadas num contexto específico; os cronótopos diferem
segundo os modos pelos quais compreendem o contexto e a relação que as ações e
os eventos mantêm com ele. (MORSON & EMERSON, 2008, p. 384)
Aplicando tal conceito à obra Rasga coração, entendemos que a relação cronotópica contribuiu para
moldar o caráter do seu personagem central, a partir de suas experiências
políticas e de suas relações pessoais com um amigo, Lorde Bundinha. Manguari
Pistolão sofre essa influência determinante em sua formação política,
ideológica e, sobretudo, moral[26].
Estar em determinado lugar em determinado instante, interfere na maneira como o
homem se relaciona com aquele acontecimento que, influindo em sua percepção,
influi também em seu comportamento. Mais do que simples abstração, o binômio
tempo/espaço possui a qualidade de influir social, política e psicologicamente
no indivíduo, contribuindo para sua transformação.
Bakhtin ressalta que o cronotopo
não é apenas uma “metáfora”, exatamente por considerá-lo como uma categoria
fundamental para a construção da imagem do personagem, suas relações com os
outros personagens e consigo mesmo, e para a construção do próprio
desenvolvimento do enredo. Bakhtin o define como “ideologia modeladora da
forma”, destacando que
O cronotopo determina a unidade artística de
uma obra literária no que ela diz respeito à realidade efetiva. Por isso, numa
obra, o cronotopo sempre contém um elemento valioso que só pode ser isolado do
conjunto do cronotopo literário apenas numa análise abstrata. Em arte e em
literatura, todas as definições espaço-temporais são inseparáveis umas das
outras e são sempre tingidas de um matiz emocional. (2010, p. 349)
Em nossa pesquisa, percebemos que Rasga coração prima por se configurar como uma peça teatral onde a
relação cronotópica é marcada de maneira bastante significativa e determinante.
Ao situar a ação em dois momentos marcantes da história política brasileira, o
autor manifesta a clara consciência das influências exercidas por esses
momentos sobre o personagem, particularmente na relação com sua coloração
ideológica e partidária. Nessa perspectiva, devemos entender a ideologia como
representação da “maneira como os homens exercem seus papeis na sociedade de
classes, os valores, as ideias e as imagens que os amarram às suas funções
sociais e assim evitam que conheçam verdadeiramente a sociedade como um todo”
(EAGLETON, 2011, p. 36)
Entendemos, a partir de tal definição, que o personagem
dramático atua movido não apenas por seus impulsos psicológicos, mas por suas
motivações ideológicas que o levam a questionar as relações sociais impostas
pela ideologia dominante, e lutar para transformá-la. Ao definir o cronotopo
como “ideologia modeladora da forma”, Bakhtin nos sugere a compreensão de que a
arte não existe fora do contexto ideológico[27];
todo seu movimento vai de ou ao encontro à ideologia dominante.
Colocada claramente como uma proposta alternativa à ideologia
capitalista, Rasga coração se
compromete com a luta pela transformação social, política e econômica. Seus
diversos cronotopos “modelam” o comportamento do personagem central, que
entende que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao
contrário, seu ser social determina sua consciência”[28]
Ao optar por dois momentos de intensa efervescência política, Vianna coloca o
personagem – militante comunista – diante de forças antagônicas poderosíssimas –
Estado Novo e Ditadura Militar –, que em ambos os períodos são representantes
do governo e contam com todo o aparato policial-militar à sua disposição[29],
levando-o a embates, tanto no nível das ideias quanto no próprio nível físico,
pois a reação nos dois momentos se utiliza do instrumento da tortura como
mecanismo que visa a silenciar os opositores ao regime. Tais confrontos serão
decisivos em sua vida de militante comunista.
3.1 – RIO DE JANEIRO: DOIS TEMPOS / DOIS
ESPAÇOS
(...) toda narrativa, para ser percebida como
tal, pressupõe pelo menos: tempo, espaço e sujeito. Tais categorias são, sem
dúvida, flexíveis, podendo ser nomeadas de muitas formas, em função do desejo
de ampliação de sua abrangência. Toda narrativa é caracterizada por uma
duração, uma localização e uma voz; ou que o movimento narrativo se efetua
quando há uma conjugação dos verbos transcorrer, estar e ser. (SANTOS, 2002, p.
182)
A cidade do Rio de Janeiro é o cenário onde a peça se
desenvolve, tanto no tempo presente quanto no tempo passado. Dois momentos
distintos da cidade fornecem a ambientação política e ideológica, física e emocional
para contar a saga da luta dos comunistas pela transformação social do Brasil,
através da vida de um lutador popular
anônimo.
No passado, a representação política
ganha contornos especiais, pois trata-se da capital da República. Espaço
privilegiado onde são tomadas decisões e onde se efetiva a Revolução de 30,
momento histórico determinante e detonador da ação dramática. No presente, já
sem o status de capital, a cidade do Rio de Janeiro não perde importância no
cenário político nacional: basta lembrarmos que ali foi o palco de grandes
manifestações contra a ditadura e ali, no restaurante Calabouço, foi assassinado o estudante Edson Luís, episódio que
serviu de estopim para mobilização e luta dos estudantes contra o regime
autoritário.
A escolha de um espaço urbano como a cidade do Rio de Janeiro
para o desenvolvimento da ação dramática, não foi obra do acaso. Nesse ambiente
estão reunidas todas as condições para movimentação de militantes comunistas,
integralistas, boêmios e grupos de esquerda radical, assim como, no tempo presente.
É uma cidade que dita modas e modelos, aglutina pessoas e promove movimentos
políticos.
3.1.1 – Tempo de luta
O tempo move-se do presente para o futuro; somente através da
memória é possível resgatar o passado e tentar aproximá-lo do nosso presente.
Não temos uma memória absoluta, tampouco vamos conseguir esquecer tudo o que
nos aconteceu, a não ser em situações excepcionais. Naturalmente, somos
seletivos; os acontecimentos estão armazenados, mas nem todos estão à nossa
disposição no exato momento em que necessitamos deles. Muitas vezes é preciso
garimpar, “fazer um esforço de memória” para recuperarmos algum dado do nosso
passado. Não podemos lembrar tudo! Mnemosine
não reina absoluta; o Esquecimento estabelece
o equilíbrio. Para isso foi feito o esquecimento: para o nosso conforto. Funes[30] só conhecia Mnemosine. Ricoeur (2010) nos fala da
conquista da
distância temporal, conquista situada sob o critério que podemos qualificar de
gradiente de distanciamento. A operação descritiva consiste então em
classificar as experiências relativas à profundidade temporal, desde aquele em
que, de algum modo, o passado adere ao presente, até aquelas em que o passado é
reconhecido em sua preteridade passada. (p. 43)
Neste sentido, quanto mais distante teoricamente se torna
mais difícil efetivar a aproximação, porém, a associação dos fatos pode nos
levar a cada vez mais longe em nossas lembranças. Ainda segundo Ricoeur, “não
temos outro recurso a respeito da referência do passado, senão a própria
memória” (p. 40). Nossa descrição do passado é feita do presente e depende da
nossa memória para lhe conferir o máximo de confiabilidade possível. O passado
pode ser para nós um fardo muito pesado de carregar, então nos esforçamos para
deixá-lo quieto lá no seu canto; ou pode ser um passado glorioso, no qual nos
refugiamos para fugir das inquietações do presente; mas passado pode ser também
processo de reflexão que vise ao conhecimento e ao aperfeiçoamento do presente.
A ação dramática de Rasga
coração se desenvolve em dois tempos bastante significativos da história da
República, quando as tensões políticas dominavam o cenário brasileiro[31]:
durante o primeiro governo Vargas (1930-1945), que é “coroado” com a ditadura
do Estado Novo, sendo superada apenas em 45, com a redemocratização do país; e
os primeiros anos da década dos 70, quando a ditadura militar instaurada em 64,
atinge o auge da repressão política, durante o governo do general-presidente Emílio
Garrastazu Médici.
O percurso dramático de Manguari Pistolão ocorre,
simultaneamente, nos dois períodos de tempo, nos revelando seu processo de
formação enquanto homem e revolucionário comunista. Aproximadamente quarenta
anos da história do
Brasil são revistados, através da figura de Manguari, que os enfrenta com seus
conflitos, seus anseios e suas frustrações. Sua vida pessoal e de ativista
político se misturam e se mesclam num todo em que a coerência é balizadora de
seu comportamento, moldando-o a partir de suas contradições, naquilo que ele
mesmo se qualifica: “homem comum”.
Em termos de luta política, identificamos no tempo passado um
Manguari inicialmente entusiasmado com a Revolução vitoriosa, acreditando nas
transformações sociais, portanto, aliado do governo Vargas que prometia avanços
reais para os trabalhadores, para depois enfrentar o golpe de estado de 37 e a repressão
política que persegue implacavelmente os comunistas. A luta contra a ditadura
vai levá-lo à prisão, juntamente com seu companheiro de partido, Camargo Velho,
dentre tantos outros comunistas que foram barbaramente torturados.
No tempo presente não há mais a euforia de uma vitória: o
golpe de 64 não tinha motivos para ser comemorado por aqueles que acreditavam
na transformação social, assim como o personagem da peça. Mais uma vez a luta contra uma ditadura que a
cada dia se torna mais violenta, é a palavra de ordem, e se manifesta tanto no
campo estritamente político quanto no confronto armado. Em 1972, a luta armada,
seja na guerrilha urbana ou rural, que se apresenta como alternativa política
para derrubada do regime é uma realidade e o governo militar, que já vinha reagindo,
encontra no recrudescimento da violência a principal forma de reprimir a
oposição ao governo. Aquilo que já se tornara prática vigente desde 68, com a
promulgação do AI-5, torna-se agora sua principal forma de luta: mortes,
prisões, torturas, exílios.
Manguari continua um comunista comprometido com as lutas
sociais, só que, como ele mesmo diz, sem pirotecnia. O próprio Partido
Comunista Brasileiro abandona suas teses de enfrentamento armado, defendidas
até fins da década de 50. A luta de Manguari agora é feita no dia-a-dia, na
organização de trabalhadores, através de associações profissionais e
sindicatos. É nesse espaço histórico que enfrenta mais uma luta: seu filho,
Luca; na realidade Luís Carlos, em homenagem ao então Secretário Geral do PCB,
Luis Carlos Prestes.
Os dois momentos políticos caminham lado a lado, se
entrecruzando, e se autoexplicando, de acordo com a necessidade dramática do
momento em que surgem. O presente sempre buscando referências o passado para
melhor se compreender e compreender, também, o próprio movimento histórico.
3.1.2 – Espaço de luta
O espaço geográfico se limita, em um primeiro plano de
análise, ao espaço físico ocupado pelos personagens, mas espaço não é só
físico, é emocional, é lembrança, é lugar de sofrimentos e alegrias. O espaço
estabelece com a vida um jogo dialético em que leva o homem a confrontar-se com
suas contradições. O espaço não determina apenas o tópoi, pois está intrinsecamente ligado ao chrónos. A relação tempo/espaço é que vai criar o ambiente em que o
personagem se move e a ação se desenrola. Segundo Bakhtin, a ideia de cronotopo
visa a explicar cientificamente essa interpenetração tempo/espaço e vai
determinar os gêneros e suas variações:
No cronotopo artístico-literário ocorre a
fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto.
(...) O próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo
e da historia. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço
reveste-se de sentido e é medido com o tempo. (...) O cronotopo como categoria
conteudístico-formal determina (em medida significativa) também a imagem do
individuo na literatura; essa imagem sempre é fundamentalmente cronotópica.
(BAKHTIN, 1990, p. 211-212)
Portanto, consideramos que não só o
espaço modifica o homem, como o homem também pode modificar o espaço e, a
partir daí, novas relações homem/espaço se estabelecem. Por outro lado, o
espaço interfere na obra determinando sua linguagem; para se falar sobre o
espaço é preciso compreender que linguagem poderá explicar tal espaço. Pois ele
só existe enquanto resultado de um tratamento específico da linguagem: cada
espaço há que exigir uma linguagem específica para que se traduza em sua
inteireza e assim revelar seu caráter e sua importância psicológica na obra,
transformando-se por vezes em personagem de destaque na narrativa. Esse diálogo
se estabelece e na linguagem se completa e se traduz em sua forma literária,
exprimindo dentro de si mesma a aridez ou exuberância do espaço que se quer
como ambiente de encenação.
O espaço físico deve ser, portanto, encarado dialeticamente:
do todo para a parte ou da parte para o todo. A trama (ou enredo) se desenvolve
em um determinado país; o personagem mora ou atua em uma cidade que pertence a
esse país, dentro dessa cidade existe um bairro, uma rua, uma casa e nela suas
dependências, nas quais o personagem circula com segurança. Este espaço
concreto e frio o ampara, protegendo-o das intempéries naturais e possíveis
agressões geradas pela violência urbana.
Se, num primeiro plano de análise, o espaço se limita ao
espaço físico ocupado pelos personagens, num segundo plano de análise
entendemos que o “espaço concreto e frio” deixa de ser apenas físico: passa a
constituir uma relação de afeto com aquele que protege, ainda que o personagem
esteja ali apenas de passagem (como em um quarto de hotel, por exemplo). O
personagem se relaciona com o espaço
e no espaço. Sua “proteção” não é
apenas objetiva, é psicológica e emocional.
Tempo e espaço não são abstrações ou metáforas literárias. Como
nos ensina Bakhtin, se determinam por um arranjo arquitetônico e geográfico,
estando aí inseridos, de maneira indissolúvel, construindo linguagens próprias
onde movem personagens que respondem psicologicamente a essa arquitetura cênica
criada, estabelecendo novas relações, pois assim como o homem está no espaço, o
espaço também está no homem.
Em Rasga coração, a
relação espaço interno / espaço externo
é bastante significativa, pois contribui na determinação de padrões de
comportamentos, fornecendo elementos que acumulam os conflitos entre
personagens.
No tempo passado, o espaço externo é preponderante, pois
Manguari foi expulso de casa, tendo que ir morar num quarto de pensão com o
amigo Lorde Bundinha. Poucas vezes, ao longo da peça, este espaço é mencionado
enquanto cena. Já as cenas em que os personagens da memória aparecem sozinhos,
das quais Manguari não participa objetivamente, acontecem quase que em sua
totalidade, em espaços não definidos, portanto, consideraremos sempre como
espaços exteriores.
É no ambiente familiar, no interior da casa, que a ação
presente se desenvolve. Existem somente duas cenas do presente – a reunião na
casa de Milena e o interrogatório dos jovens na diretoria do Liceu – que
acontecem fora desse ambiente. Como o conflito principal é entre pai e filho, a
casa torna-se ambiente propício. O externo-presente, no caso o Liceu Castro
Cott, é apenas citado, embora seja ele o detonador do conflito Manguari/Luca.
4 – RASGANDO O CORAÇÃO E AS
ESTRUTURAS DRAMATÚRGICAS
A recorrência ao passado em Rasga coração, através do recurso do flasback, serve, não somente para resgatar a memória de Manguari Pistolão,
mas também, para criar no âmbito da cena dramática, um paralelo
político-histórico dos dois períodos abordados. A aproximação dos dois tempos
visa a demonstrar o caráter cíclico da história e denunciar o regime de força
como resultado de ações que pretendem a exclusão da classe trabalhadora como
agente de seu próprio destino. Num primeiro momento, o discurso populista de
Vargas se presta a atenuar a ação repressiva do governo, aproximar-se da massa
e defender o jogo de interesses da recém-organizada burguesia nacional[32]
que, a partir do confronto rural (burguesia cafeeira) e urbano (modernização
através da industrialização do país) define os destinos da nação, pois como
acentua Sodré, “a Revolução de 1930, episódio marcante da ascensão burguesa em
nosso país, teria, essencialmente, esse sentido: adaptar o aparelho de Estado,
provavelmente obsoleto, às necessidades da expansão burguesa.” (1983, p. 237)
Vianninha, de maneira francamente didática, mostra o processo
de modernização do país. O conflito entre arcaico/moderno e urbano/rural, é-nos
apresentado não só por recursos narrativos, em que se apropria de efeitos do
teatro épico, mas também por meio de cenas expõe dramaticamente a discussão do
tema: Manguari e 666 se confrontam em vários momentos, motivados pelo futuro
profissional do jovem Manguari: o filho pretende ser um técnico, pois entende
que o Brasil será industrializado; o pai o quer funcionário público no Serviço de Endemias Rurais. Seja numa
discussão que envolve interesses pessoais e particulares, seja numa discussão político-ideológica
a respeito do momento vigente, 666, em seu reacionarismo declarado, não aceita
os avanços da industrialização, critica as conquistas dos trabalhadores urbanos
e continua acreditando que o futuro do país está em sua agricultura, “o Brasil
é um país agrícola, céu nos olhos, cabeça limpa...”; Manguari questiona “que
agrícola que compra enxada da Inglaterra, nunca ouviu falar em fertilizante,
país com bosta de vaca...” (p. 33)
Os tenentes de 22 são os generais de 64. Dão um golpe contra
o presidente João Goulart e assumem o poder para defender interesses da
burguesia multinacional[33]
e o país contra o comunismo internacional. Através do modelo opressor
implantado no Liceu Castro Cott,
Vianninha denuncia toda uma estrutura que utiliza da repressão como mecanismo
para se impor ideológica, social e politicamente sobre a sociedade; um regime
de força que, sob a aura da democracia ocidental, comete os maiores desmandos
para se perpetuar no poder. O Liceu
Castro Cott é a representação dramática e metafórica do regime vigente.
No presente, por motivos óbvios, não se tem o mesmo painel
histórico que nos é apresentado no passado. Dois serão os fatores para a opção
de Vianninha em trabalhar numa perspectiva linear: além do momento não permitir
uma referência explícita aos fatos políticos, as próprias características da
peça, no que se refere aos conflitos familiares, de conteúdo muito mais
psicológico, restringe sua ação ao universo familiar, determinando que a trama
fique limitada às quatro paredes. Tal recurso nos parece bastante sábio por
parte do autor, embora não tenha sido suficiente para desviar a atenção da Censura
Federal e impedir a sua proibição. Por outro lado, o choque entRe as duas formas
dramatúrgicas – o caráter épico das cenas de passado e o psicológico do
presente - permite uma mobilidade ao texto que se reflete em sua dinâmica final[34].
A seguir, apresentaremos uma análise particularizada de cada
uma das 10 cenas da peça.
CENA 1
Brecht e realismo psicológico: uma mistura para
resgatar
e explicar o passado e refletir sobre o presente
A dramaturgia oduvaldiana é marcada por uma profunda
influência do teatro épico brechtiano[35].
A utilização de recursos dramatúrgicos desenvolvidos pelo encenador e
dramaturgo alemão, Bertolt Brecht, se faz presente já em suas primeiras peças:
seja por uma análise materialista histórica e dialética da realidade ou mesmo por
estrutura dramatúrgica. A obra Vianninha, do ponto de vista
político-ideológico, se mantém íntegra e traduz claramente sua filiação ao
marxismo; do ponto de vista técnico, se apropria do verfrendungseffect[36]e outros recursos
do teatro épico. Suas peças para o CPC são um bom exemplo da utilização desses recursos.
Embora Rasga coração
seja considerada uma peça com características do realismo psicológico
(aproximação[37]) – todas as cenas do
passado surgem a partir da memória e lembranças do personagem central, que
manipula o tempo sem obedecer rigorosamente a uma cronologia –, encontraremos
em várias cenas, a narrativa épica. Na Cena
1, os personagens do passado se apresentam ao público, não exatamente como
uma lembrança de Manguari, pois seu recuo ao passado ainda não foi determinado
dramaticamente, mas por uma utilização da técnica do teatro épico, que se
utiliza da narração para explicar a cena. Assim, temos:
Apresentação
do integralista Castro Cott:
Castro
Cott – [se apresenta, com a
consciência de que é personagem] Castro Cott. (Abre foco sobre ele. Uniforme integralista. Capacete à Mussolini,
bandeira do sigma. Canta)
Avante, avante
Eis que desponta o arrebol
Marchar que é a primavera
O que a Pátria espera
É um novo sol!
[novamente, a consciência da narrativa para o público] Hino da Ação
Integralista Brasileira, letra do Dr. Plínio Salgado. Anauê! (p.19)
Apresentação de Lorde Bundinha, o
boêmio:
Lorde Bundinha – [se apresenta, enquanto personagem
dramático] Luís Campofiorito, conhecido como Lorde Bundinha devido ao aplomb do V-8, tanto no passo do urubu
malandro, como do siri candeia, jocotó, siri boceta. [convoca o público] Acompanhem
a sobranceira elegância búndea do corta-jaca. (Canta o Corta-jaca de Chiquinha Gonzaga, paródia, dança) Ai, ai,
como é bom gozar, ai corta a jaca assim assim assim. (p. 19)
Apresentação de 666 (Custódio Manhães,
pai) – o Cheira-cheira:
666 – [se apresenta] Fiscal 666 do Serviço de
Saneamento do Rio de Janeiro. (Farda de
brim pardo das brigadas sanitárias de Oswaldo Cruz. Seu número 666 está
inscrito na braçadeira. Bandeira amarela na mão. Carrega apetrechos de
desinfecção, inclusive seringa de metal de quase um metro)
Rato, rato, rato
Camundongo, percevejo, carrapato
Rato, rato, rato
Camundongo,
percevejo, carrapato (p. 20)
Apresentação de Camargo Velho, o
comunista:
Camargo Velho – [se apresenta] Camargo
Velho! (Usa um misto de farda do
Tenentismo e paletó comum. Lenço vermelho no pescoço. Uniforme da revolução de
30. (...) Camargo Velho canta)
João Pessoa, João
Pessoa
O teu vulto
varonil
vive ainda, vive
ainda
no coração do
Brasil
[postura narrativa em relação ao
público] Hino a João Pessoa, hino da revolução de 30. Viva a miserável gente
brasileira! (p. 20)
Os quatro personagens do passado se apresentam com nome,
profissão e nos oferecem nuances perceptíveis de sua coloração ideológica, num
espaço dramático não determinado, através de uma linguagem metateatral: o
personagem com consciência de si mesmo e da sua condição de personagem se
manifesta e esclarece sua função na fábula. Nesse aspecto, podemos observar que
o antagonismo ideológico e político se manifesta para permanecer ao longo da
peça: a polarização e radicalização do período entre esquerda, aqui
representada pelo personagem Camargo Velho, e direita, Castro Cott,
representante dramático do integralismo. Tal antagonismo será a tônica da peça:
o personagem Castro Cott, único remanescente do passado[38],
será o diretor do colégio no qual o filho de Manguari estuda e enfrenta o conservadorismo
e autoritarismo moralista do diretor. Essa situação se transforma em estopim
para o conflito entre pai e filho.
A manipulação dramatúrgica do
passado e do presente implica também no jogo entre o teatro realista
psicológico e o realismo dialético (ou, teatro épico). Essa utilização de
recursos estéticos diferenciados contribui de maneira decisiva para uma melhor
compreensão da peça. Quando o autor recorre aos recursos épicos para
apresentação dos personagens, nos oferece muito mais informações do que apenas
a caracterização desses personagens: está situando historicamente o tempo passado
da narrativa. Por outro lado, a análise materialista e dialética da realidade
não é contraditória com o realismo psicológico, pois nos leva a uma compreensão
mais elaborada do próprio comportamento do personagem. Seus recuos e avanços temporais
se tornam mais acentuados com a própria crítica, muitas vezes implícita, que
Manguari faz de si mesmo, sua recorrência ao passado é uma maneira de avaliar o
seu presente. Essa consciência crítica aproxima em muito a obra oduvaldiana ao
pensamento e propostas de Bertolt Brecht.
O processo de lembrança de Manguari Pistolão é estimulado por
um acidente de trânsito ocorrido na rua em que mora, embaixo mesmo de sua
janela: o corpo do acidentado já está ali “estendido há mais de cinco horas!”
(p. 20), portanto, o espaço urbano é determinante no mergulho em direção às
suas mais longínquas memórias. Observamos, também, que Manguari não é um homem
rico, pois traz na ponta-do-lápis as despesas da casa. Outro aspecto importantíssimo
que podemos depreender é a primeira informação sobre a indignação de Manguari
em relação às mazelas sociais: “(...) aquilo é o que vale a vida humana,
coberto com classificados...” (p. 20) – manifestação que nos remete a um signo
de comércio, portanto, um traço do capitalismo que o personagem sempre
combateu; nesse aspecto, cabe destacar que os “classificados” são o caderno
mais desprezado de um jornal, normalmente só se lê quando efetivamente se precisa
dele. Se o ser humano está coberto pelas
folhas dos “classificados”, é porque vale muito pouco ou quase nada na escala
social.
A partir dessa reflexão, o personagem vai aos poucos voltando
cada vez mais para dentro de si e imergindo em seu passado. O barulho da
cidade, o excesso de gente, “cada vez menos calçada”, os prédios impedindo o
sol entrar, “tinha sol, até o parapeito da janela ficava quente”, Nena, esposa
de Manguari potencializa sua “volta” ao passado: “me lembro dos versinhos dos
anúncios que a Companhia do Bonde punha nos jornais... meu pai me dizia os
versinhos...” (p. 21). Três momentos do cotidiano – o atropelamento, as contas
e a percepção de Nena sobre a realidade de Copacabana -, detonam o processo
irreversível das lembranças de Manguari. A partir do cotidiano se discute o
próprio cotidiano. Nas palavras do próprio Vianna, “a luta contra o cotidiano,
feita de cotidiano”. A partir do cotidiano se reflete sobre toda uma história
do próprio país.
A visão política do país se constrói a partir
da óptica da família e dentro do plano das lutas cotidianas e do exercício
anônimo da militância. É a família que possibilita, sob o ponto de vista da
abordagem temática, a perspectiva de fazer convergir para o plano cênico as
reflexões relativas à militância e a vivência histórica das gerações passadas.
(BETT, 1997, p. 292)
É só a partir desse instante que o
passado deixa de ser uma narrativa brechtiana para se apropriar de determinados
recursos do realismo psicológico; o épico dá lugar ao dramático. Nessa primeira
parte da cena podemos observar dois aspectos fundamentais para o desenvolvimento
do enredo da peça e do caráter do personagem: sua consciência política e seu
retorno ao passado: Manguari busca na sua própria história de participação
política uma tentativa de compreender o seu passado e, revivendo-o, busca
entender o seu presente e, de alguma forma, transformá-lo. Seu passado juvenil
irá confrontar-se com o presente, também juvenil, do filho.
Rasga
Coração resgata o passado e
recupera dados considerados pertinentes para a elucidação do presente. (...)
Cruzam-se, assim, as linhas da história oficial e as das vivencias e relatos
familiares: a história é vista sob a perspectiva da própria família e nessa se
encontra o germe da militância política. (BETTI, 1997, p. 301)
Na segunda parte da cena, as
relações familiares ganham relevo: no presente, Manguari, sempre fazendo
contas, expõe as dificuldades da família e sua esperança em um novo cargo
gratificado, o que representaria um aumento salarial, porém, Nena rebate: “Novo
cargo gratificado, depois dos relatórios
que você escreveu? Você não devia ter escrito esses relatórios...” (p. 24 –
grifos nossos) Relatórios que reforçam o caráter e o nível de participação política
de Manguari, a que já fomos apresentados no caso do acidente. Mesmo se
comprometendo e comprometendo com isso uma possível ascensão salarial, pois
está esperando um “novo cargo gratificado”, Manguari não se deixa levar por
interesses pessoais que se coloquem acima dos seus compromissos políticos. Não
transige, ainda que isso signifique
“prejuízo” para si mesmo. Nena, sua esposa, tenta ser a mulher prática; embora
não seja privilegiada com uma inteligência aprimorada. Nena é o contraponto,
aquela que tenta trazer o marido de volta àquilo que ela julga ser a realidade;
é a mãe que, embora fragilizada, faz de tudo para pacificar o conflito entre
pai e filho.
O conflito pai e filho se apresenta pela
primeira vez na peça em uma cena do passado, a partir de um posicionamento
reacionário e conservador do pai, que está muito mais próximo da direita[39]
do que dos ideais reformadores propostos pela Revolução de 30. Numa discussão
com o filho, o pai se manifesta claramente contra as conquistas populares:
666 - Povo? O povo? Agora, terminam as oito
horas, eles param o serviço! “Mas só falta desinfetar aquele canto, gentes! É a
saúde de uma família!”Mas eles estão se bujiando. “José, preciso de você
amanhã!” “Amanhã é meu dia de folga”. Duas horas para almoço agora, parados, à
fresca, perna estirada, os filhos sem comida, nus, dentes podres, eles passando
à rosa divina! Nojo do trabalho, isso que vocês criaram. (p. 25)
Guimarães (1984) destaca o caráter reacionário do personagem,
esclarecendo a significação do seu nome, o enigmático 666:
O
666 colocado num personagem que é peça da engrenagem e assume um papel contra a
democracia, a legislação trabalhista, o voto secreto e encara a autoridade como
coisa paternal e de bondade, prova o cuidado com que foi escrito esse texto,
medido em cada detalhe, em que nada, nem um número é desprovido de significado.
(p.110-111)
Na última parte da cena conhecemos Luca, sua visão de mundo:
“Está tudo muito organizado, parabéns, as pessoas todas cuidando do amanhã, a
vida trancada no coração, o defeito mais feio é viver espontâneo, gênio!” (p.
26) O autor permite a Luca um posicionamento coerente. Não se percebe uma
crítica implícita ao discurso de Luca, embora haja, sim, uma crítica ao
posicionamento do filho: o posicionamento pai é sempre considerado o mais justo.
Julgamos importante destacar que, embora o comportamento de
Luca, ao longo da peça, privilegie uma postura individualista, o seu discurso
busca a valorização da luta em defesa dos bens da natureza. Luca vacila nessa
contradição, mas não abre mão de determinados valores. Vianna oferece ao
personagem argumentos bastante sustentados, que tornam os enfrentamentos com o
pai, de grande nível intelectual, até mesmo mais ideológicos do que aqueles
entre Manguari e 666, já que o pai não possui uma formação intelectual que
sustente o seu discurso. Guimarães ressalta que
Vianninha ultrapassa o pensamento da sua
época, que via no movimento hippie um escapismo, e coloca na boca do jovem as
palavras que hoje expressariam uma nova forma de luta, a luta pela preservação
da natureza, pela ecologia, pelo meio ambiente, possivelmente a única forma de
preservar a luta do homem, preservando-se o próprio homem da autodestruição.
(1984, p. 107)
O existencial e ecológico (da parte de Luca) e o político
(Manguari) são dois discursos que se confrontam e criam as condições dramáticas
para o grande conflito entre as duas gerações, que percebem o mundo de maneiras
tão diferentes.
A tensão dramática desse conflito de valores
surge da paixão com que pai e filho defendem suas respectivas posições, bem
como do pathos de seu desejo de ser
entendido e de compreensão do que pode ser válido na posição do outro.
(DAMASCENO, 1994, p. 255 – grifado no original)
Embora ideologicamente em campos opostos, pai e filho se unem
(ou, pelo menos tentam) numa luta comum, quando Luca começa a enfrentar os
problemas no Liceu Castro Cott: “não pode mais entrar de blue-jean, nem tênis, nem
calça comprida pras moças”. (p. 27) Manguari “compra” a briga do filho e,
“preocupado em fazer do evento um pretexto para a iniciação política do filho,
Manguari procura orientá-lo no que diz respeito às implicações políticas do
movimento e oferece sua contribuição” (BETTI, 1997, p. 294)
CENA 2
De casa pra rua; de
volta à casa: um comunista se apresenta
Novamente, temos a utilização da
narrativa épica no início da cena: Lorde Bundinha se apresenta antes ao público
para só depois se dirigir diretamente a Manguari. Há, neste momento, a
utilização das duas técnicas dramatúrgicas simultaneamente, pois, ao mesmo
tempo em que Lorde Bundinha se dirige ao público, cria-se uma relação da
artrite de Manguari com as muitas gonorréias adquiridas por Bundinha, que surgiu
na memória do personagem central motivado pelas dores provocadas pela artrite.
Bundinha – [Dirige-se, diretamente à platéia, de
forma narrativa] ... de manhã, eu e o Manguari, saiamos pelas ruas do Rio, de
carvão na mão, escrevendo reclames nos muros – 10 réis por muro pichado:
“Gonorreia? Injeção King”, [estabelece uma relação psicológica com Manguari]
lembra Manguari Pistolão?
Manguari – (De
dentro) ... dói demais, Nena... não me deixa dormir... [a evocação de Lorde
Bundinha sendo provocada pela dor e pela insônia] (p. 28)
Já o aparecimento de Camargo Velho se relaciona, em sua
memória, com o anúncio dos bailes feito por Lorde Bundinha. Camargo surge e
cobra de Manguari sua participação política: “Companheiro Custódio, faz quase
uma semana que o companheiro não vai à Legião Cívica 5 de Julho!”[40]
Temos, também, através da referência “camarada Stalin” a definição ideológica de
Manguari Pistolão: “O camarada Stalin trabalha 18 horas por dia, lê 200 páginas
diárias de livros, será que não somos capazes de deixar de pensar um pouco em
nós mesmos?” (p. 28) Neste momento,
podemos ter certeza de que Manguari é um comunista, fato que já se anunciara,
mas ainda não estava claro. Outro dado importante é a forma de tratamento:
Camargo Velho trata-o como Companheiro Custódio, o que demonstra a formalidade
entre os dois comunistas; para Lorde Bundinha ele é o Lorde Manguari ou,
simplesmente, Manguari.
A mente de Manguari, no presente, se confunde entre a
lembrança de Bundinha e Camargo Velho: ao mesmo tempo em que há uma cobrança
política, Bundinha continua batendo na tecla da diversão. Dever e prazer se
misturam num fluxo contínuo. Camargo Velho denuncia a política populista de
Getúlio, através da promulgação das leis trabalhistas e o seu não cumprimento
por parte dos empresários, denuncia também a situação do trabalhador, que se vê
logrado em seus direitos. Tal fato é fundamental para se traçar um painel
político dos rumos seguidos pela Revolução de 30 e pelo governo Vargas[41]:
“Companheiro, as oito horas de trabalho não estão sendo cumpridas, as fábricas
obrigam os operário a assinar que tiveram férias, folga semanal”. Camargo denuncia
também a pressão exercida pela burguesia cafeeira contra Getúlio e sua
interferência no governo: “João Alberto foi demitido por Getúlio como
interventor de São Paulo por pressão dos cafeicultores.”(p. 29)
Manguari, na janela, fica olhando a vizinha tirar a roupa.
“... isso você ia gostar de ver, Bundinha... a vizinha tira a roupa de janela
aberta... ela sabe que eu estou aqui...” (p.29) Sua “conversa” com Bundinha
revela o quanto sua mente está voltada para o passado. Seu devaneio só é interrompido
por Luca, que o flagra olhando a vizinha. Luca brinca com o pai, que tenta
negar o “flagrante”. Imediatamente, o espaço externo do passado, surge para
Manguari que, quando ainda jovem, flagra o pai com uma mulher. Isso para a sua
cabeça “moralista” de jovem da década de 30 é imperdoável. Bundinha é quem não
deixa por menos: “Você está chorando? Tem 19 anos e chora porque descobriu que
o pai também tem mangalho?” (p. 31)
Voltamos ao presente e, pela primeira vez na peça, fala-se em
conflito de gerações, e é Luca quem introduz o assunto:
Luca – (...) Mas não fica dizendo que a minha
geração está perdida, que só pensa em sexo!
Manguari – Nunca disse isso, não seja...
Luca – Diz que todas as gerações só pensam em
sexo! Só que umas não querem encarar isso!
Manguari – Todas as gerações só pensam em justiça, só
que umas não querem encarar isso!
Luca – Que é a justiça, super? A mesma vida morta
pra cada um?
Manguari – O mesmo combate pra cada um... (p. 30)
Ao discutir a relação homem/mulher, a questão sexual, Luca
não deixa de alfinetar, com uma dose de ironia e bom humor: “Na Rússia como é?
Cinco coitos por quinquênio?” (p. 31) Mas a discussão não fica por aí, e ganha
novos contornos, pois o espaço externo (o quarto da vizinha) traz para dentro
de casa novos conflitos psicológicos e políticos. No desenrolar de uma conversa,
que envolve o caráter moral, novos aspectos são introduzidos na relação dos
dois: Luca confirma o que Nena havia dito: depois de se formar, pretende
exercer a medicina no interior. Há uma discussão política sobre a eficácia da
decisão de Luca:
Manguari – (Tempo)
... eu estava pensando num consultório
para você aqui, acho que até juntando todos meus pistolões quem sabe consigo um
lugar no IPASE[42]
para você, mesmo um consultório bem montado, precisa ver um ponto bom...
Luca - ... pensei que você preferisse minha
decisão proletária, decisão de justiça, de levar a medicina aos
desfavorecidos...
Manguari - ... é que não adianta levar um médico sozinho pra lá, Luca, tem que
ficar na cidade e lutar pra levar laboratório, raio x, leito de hospital pra
eles e... (p. 31)
Luca, finalmente, se revela como de fato é: seguidor de uma
filosofia alternativa, e percebemos claramente que os dois estão em campos
opostos. O monólogo de Luca é um discurso que mistura o antibelicismo com a
defesa do meio ambiente, concluindo que o “assalto” à natureza e as guerras não
estão deslocados um do outro:
... gás SO2, brometos, DDT, 40 toneladas de
corante, é isso que as pessoas comem! Vocês estão comendo coisas mortas,
fúnebres, e isso é que explode dentro do sangue de vocês! Hein? E para fugir
dessa morte, hein? Essa ansiedade! Pra
afogar essa ansiedade vocês resolveram fazer o reino da fartura e pulam em cima
da natureza, querem domá-la a porrada e comem morte e engolem carnes, bloqueiam
o corpo, o poros, sobra o cérebro pensando incendiado em descobrir um jeito de
não viver e a tensão toma conta de tudo e vocês só parem guerras, as guerras
pela justiça, pela liberdade, dignidade e nada descarrega a tensão, o cheiro de
podre vem martelando, então mais guerra e napalm e guerras... (p. 32)
Vianninha, em 1974,
ano de conclusão da peça, colocava na boca do personagem Luca temas que só mais
tarde fariam parte da pauta de lutas da sociedade, a defesa intransigente da
natureza como possibilidade de manutenção da existência da vida na Terra.
Naquele momento, tal discurso era tido como politicamente escapista, pois não
se colocava em favor da defesa da liberdade que sofria toda forma de opressão sob
os tacões da ditadura militar. Defender a natureza era fugir dos problemas
políticos imediatos, significava o mesmo que ceder à ditadura. Guimarães (1984) nos aponta que
Há uma comunhão de Vianninha com a geração
que está chegando, que é a do seu filho, que vai continuar a luta de outra
forma, por outros meios. Mas ele também precisa romper com essa geração, para
defender os princípios da sua, os princípios nos quais acreditou e pelos quais
pautou sua própria vida de militante político. (p. 107)
Percebemos, então, o conflito entre pai e filho situado no
campo das ideias, no qual os argumentos de ambos são extremamente consistentes
e pertinentes. O autor, embora não esconda ao longo da peça sua posição em
favor de Manguari[43],
empresta a Luca todos os argumentos para que possa defender sua posição. Manguari,
por seu lado, retruca: “Isso são palavras, Luca, palavras a gente junta, de
qualquer maneira, menino, isso que você falou dá o que pra fazer, fora ficar
nauseado? Hitler era vegetariano...” (p. 32). Para Manguari, não é apenas o
fato de defender a natureza que vai tornar o homem capaz de mudar a realidade
que o cerca, tornando a existência de outros homens melhor e mais digna.
No momento em que cita Hitler, em sua memória aparece a
figura de Castro Cott, que reclama o “campo aos jovens!”. A discussão entre pai
e filho é retomada dramaticamente no passado, e se inverte, pois Manguari quer
ficar na cidade e fazer um curso técnico, enquanto seu pai deseja para o filho um
cargo no Serviço de Endemias Rurais,
órgão do Ministério da Saúde, manifestando sua crença na estabilidade do
emprego público:
666 – Você vai para o interior, sim senhor, vai
pro interior, não tem que talvez!
Manguari – Não vou! Não vou! Quero ficar na cidade!
(...) Vou fazer curso técnico em metalurgia. (...)
666 – Técnico? O meu filho, único filho que sobrou, que aquela maldita
gripe espanhola me levou eles, meu único filho vai ser operário? (p. 32)
Também no passado a discussão ganha um conteúdo
politicoideológico, entre o conceito de país agrícola, defendido ardorosamente
pelo pai, e a promessa da modernidade, que teria como sua grande representante
a implantação da siderurgia nacional, defendida por Manguari jovem. 666 revela
seu extremo consevadorismo e reacionarismo contra a modernidade:
666 – (...) Mas o que é que você quer das cidades? Brahma Chope, agora
engarrafado? Mulheres de unhas pintadas? O cinema? Ah, o cinematógrafo com
heróis de vida galopante, não é? Filmes que anunciam vícios elegantes! Essa
Dercy Gonçalves nua pelos palcos, baratinha de capota arriada, indecências,
V-oitos? (...) Da cidade, os homens não vêem mais o céu, medem o seu tamanho
pelos arranha-céus, o Brasil é um país agrícola, céu nos olhos, cabeça limpa...
(...) Quero você funcionário público, menino! Nisso que eu faço cabedal! (p. 32-33)
A tensão política ganha novos
contornos, Castro Cott anuncia o crescimento do nazi-fascismo, através de
organizações como a AIB: “somos os Camisas Cáquis nos Estados unidos, os
Camisas Douradas no México, os Camisas Amarelas na China![44]”
(p. 33); Camargo Velho, tendo que se esconder de uma perseguição política,
denuncia o fechamento da Legião [Cívica 5 de Julho] e do Clube 3 de Outubro[45],
importantes entidades de organização e discussão política, e o perdão da dívida
dos cafeicultores, além da derrota dos paulistas na revolução
constitucionalista de 32; Lorde Bundinha lamenta a proibição “de fazer reclames
nos muros” e a substituição dos bailes, substituídos pelas “festinhas em casa”,
animadas pelas vitrolas. O Brasil está se modernizando cada vez mais.
No presente, Luca retorna e tenta
suavizar a tensão criada com o pai, criando um momento amigável com uma
declaração inesperada:
Luca - Melhorou da dor, pai...?
Manguari - ... melhorei um pouco... está
estudando ainda?...
Luca
- Me desculpa, viu?... olha... (Manguari
sorri) eu te acho pá legal, viu?... você é um... como é?... herói popular
anônimo... te acho pá legal... (p. 34)
CENA 3
A luta de Luca é
também uma luta de Manguari
Se as duas primeiras cenas são preparatórias, apresentando
personagens, algumas situações dramáticas e localização histórica, podemos
considerar a Cena 3 como definidora para
o desenvolvimento da trama, pois é aí que é apresentado o grande conflito a ser
enfrentado pelos personagens. O espaço externo atua significativamente nos dois
momentos: no passado, Manguari enfrenta o seu ritual de passagem, sendo expulso
de casa e, “na rua” passa a enfrentar a vida sob novos parâmetros, o que é
fundamental para sua formação como homem e como militante político; no
presente, os fatos externos dão a Manguari nova motivação para a militância,
sua “consultoria” política a Luca e o grupo de alunos do Liceu transforma-se em
sua própria luta contra a arbitrariedade da instituição de ensino, dirigida por
seu inimigo histórico, Castro Cott.
Na primeira parte da cena, o passado vem à tona estimulado
pelo fato de Nena flagrar Luca e sua namorada, Milena, fazendo sexo no quarto.
Nena, desesperada, manifesta seu moralismo de mãe: “Eles pensam que eu estou
morta aqui fora? Não estou morta! Não estou morta!” (p. 35) Na lembrança de
Manguari surge a cena em que ele está sendo expulso de casa pelo pai após ter sido
flagrado fazendo sexo com Nena, “na cama em que morreu sua mãe” (p. 36).
Manguari tenta argumentar, mas 666 é irredutível:
Manguari - ... não tenho pra onde ir,
pai...
666 – Vai pras legiões cívicas,
madraço. Dorme nos cinemas, come nos churrascos cívicos!
Manguari - Vou ser técnico, pai, lhe
juro... o Brasil comprava dobradiças, hoje nós fabricamos dobradiças! Vou ser
técnico!
666
– Fora, fora, fora! (p. 37).
Manguari conta com a ajuda do seu amigo Lorde Bundinha e vai
morar com ele na “pensão de puta”. Nesse sentido, as experiências de Manguari serão
bastante modeladoras de seu comportamento, que se refletirá no seu presente, já
que vimos na Cena 2, quando acompanha
de sua janela a vizinha trocar de roupa.
No presente, Nena
obriga Manguari a tomar uma posição. É o momento em que Nena manifesta sua
angústia, que a acompanhou a vida toda e agora, motivada pelo fato, consegue
colocar pra fora e cobra do marido uma atitude enérgica:
Nena - Se não é fato político, você não sabe como
fazer... Só pensou em política, você... 6 anos para casar, casamos em 1940,
Luca foi nascer em 1954... legalidade, manifesto da paz, Coréia, Petrobrás...
“Não posso ter filho, Nena, o petróleo é importante...” eu fiz em[46]
(sic)... dois... cinco... abortos... você só pensou em política... (p. 37)
O passado, imediatamente, demonstra
que Manguari, quando pensou em si, enfrentou o partido, que lhe cobrou
compromissos políticos. A cena com Camargo Velho acentua a contradição de
Manguari entre tentar ganhar a vida como cantor e cumprir as tarefas
partidárias
Manguari - ... hoje à noite não posso, Camargo Velho,
eu avisei, estou fanzendo um curso às terças e quintas, de técnico, meu pai me
expulsou de casa, estou na espinha...
Camargo
Velho – Mas a assembléia da
greve dos padeiros é hoje, não podemos escolher data pra você... (...)
Manguari
– ... estou sem dormir há
cinco dias em reuniões, companheiro... hoje, quer saber mesmo? Tenho um teste
pra cantor solista na Rádio Cajuti, é importante pra mim...
Camargo Velho – E o camarada acha tempo para problemas
pessoais, você vai cantar? As condições estão maduras para tomar o poder... (p.
37-38)
Do outro lado, Castro Cott exalta o crescimento dos fascistas
no mundo inteiro.
Com a entrada de Luca e Milena em cena, o fato, apesar da
autoridade imposta por Manguari, ganha contornos bem mais tranquilos e a
discussão se estabelece no campo da liberdade de ação, de individualidade. É o
que Luca reclama, quando tenta rebater o pai:
Luca – Isso é coisa pessoal, ninguém tem...
Manguari – Cala a boca, sou seu pai!
Luca – E daí? Isso não é coisa de família, é
pessoal, isso...
Manguari – Não gaste empáfia comigo, menino! Não
procure sua liberdade entre amigos! Há duas semanas você também quis falar dos
meus assuntos pessoais.
Luca – Quis falar, não quis dar ordem!
Manguari – Você quis ofender, machucar, espe...[47]
Contudo, essa questão não será suficiente para expulsar o
filho de casa, pois Manguari já passou por isso e sabe bem o que significa, e,
obviamente, tem uma mentalidade bem diferente da do pai, mas estabelece regras:
Manguari – Que isso não se repita mais
na minha casa, entendeu? Não se repita mais.
Luca
– Falou. Eu e a Milena vamos ter que arranjar outro lugar para ficar juntos.
(p. 39)
A paródia cantada por Lorde Bundinha,
Bundinha, Bundinha
Bundinha branca de cristal
Desta vez em vez da piroquinha
Tu serás a rainha do meu carnaval (p. 39),
funciona,
aqui, como recurso para transição de clima dramático. Nena, ao tentar recompor
as coisas e tornar a conversa um pouco mais amena, traz para dentro de casa,
agora de maneira definitiva, os problemas enfrentados pelos jovens no Liceu:
não podem mais entrar no colégio de cabelos compridos. Através de Manguari,
ficamos sabendo que o diretor do colégio é Castro Cott, antigo integralista nos
anos 30, “Castro Cott, o diretor do teu colégio continua fascista!” (p. 39)
Cria-se então, no espaço dramático, uma referência simbólica da ditadura
militar que o país enfrentava naquele momento. No Liceu Castro Cott estão todas as representações de enfrentamentos e
lutas contra o autoritarismo. Não podendo discutir a questão da luta contra a
ditadura de maneira explícita, Vianinha cria no colégio uma metáfora das
condições enfrentadas no país[48].
Milena anuncia que os alunos vão fazer uma manifestação:
Milena – Amanhã vamos juntar na porta
do colégio, ninguém entra. Fazer uma presença.
Manguari – Muito bem, isso mesmo, muito
bem, isso é estúpido. Nena! Será que nem constitucional acho que não pode ser!
(p. 39)
Nena, em
sua ingenuidade política, tenta intervir; Manguari, rispidamente, chama sua
atenção, demonstrando não só impaciência, mas superioridade em relação a ela:
Nena – Mas se o colégio decidiu, afinal
são educadores...
Manguari – Não seja imbecil, Nena, sim?
Por favor! Tenho uns amigos nos jornais, vou avisar... ele não agüenta essa
ordem! Fascitas! Tem que fazer essa concentração, sim, Nena, ora! (p. 39-40).
Luca e Milena saem de cena. Manguari
e Nena vivem aquele que é o momento de maior intimidade entre os dois. Manguari
fala de sua história para a esposa, canta “Fascinação” para ela; percebe que
“chegou a vez” do filho enfrentar as lutas e, é essa esperança que alimenta, que
Luca continue a sua própria luta por um mundo mais justo e igualitário, que assuma
o seu lugar. Ele espera que o filho mude e não o veja mais “como se eu não
passasse de um masoquista... uma pessoa que pensa nos outros porque tem medo de
si mesmo, medo de viver...” (p.40)
CENA 4
Uma contradição que
rasga o coração
A repressão política institucionalizada
ganha espaço dramatizado e mostra suas
garras, se manifestando com brutalidade na Cena
4, quando Luca, ao participar de uma manifestação dos alunos contra as
proibições impostas pelo diretor do colégio, é agredido. Nesse aspecto, vale
observar que a violência é promovida de maneira não oficial, não se trata da
utilização do aparato policial militar para conter a manifestação. Milena dá os
detalhes: “um inspetor possesso partiu pra cima, a gente correu, Luca ficou
olhando, o homem de cassetete na mão veio pá! Assim! O sangue jorrou...” (p. 41)
A repressão se caracteriza como uma operação “paramilitar”.
Não há como não estabelecer uma
relação do fato dramático - entendendo-se a cena como uma representação do
momento político -, com a denúncia da utilização de grupos clandestinos de
repressão política durante o regime ditatorial no Brasil. Já foi amplamente
denunciada a utilização de um aparato paramilitar de repressão, caça, tortura e
assassinato de “subversivos” e “terroristas”, financiado por empresas nacionais
e multinacionais[49]. Grupos como o CCC - Comando de Caça aos Comunistas ou MAC - Movimento Anticomunista ou, ainda,
GAC - Grupo Anticomunista foram
responsáveis por diversas ações clandestinas de violência política[50].
No tempo passado, a política está
radicalizada. O confronto direita/esquerda, representado pelos integralistas e comunistas,
é denunciado cenicamente por uma agressão sofrida por Manguari, que foi perseguido
e agredido pelos integralistas quando saia de uma reunião da Comissão de
Congresso da Juventude[51].
As duas narrativas, presente e
passado, se intercalam e destacam um fato bastante significativo para o todo da
peça: nos dois momentos a agressão política está relacionada a uma organização,
ou tentativa de organização da juventude. No passado, Manguari estava com 23
anos e Luca, no presente, com aproximadamente 17 para 18 anos. Dois jovens
enfrentando a violência política; dois jovens, cada um à sua maneira, tentando
resistir a um impedimento de se manifestar livremente; todos os dois envolvidos
com organização e manifestação política.
Não é por acaso que Vianninha localiza a luta no presente em
uma instituição de ensino: homenageia o movimento estudantil, extremamente
atuante naquele momento histórico. É a iniciação política de Luca, o
enfrentamento direto com a repressão, Manguari dá sua primeira lição, ao
comentar o ferimento sofrido por Luca, explica didaticamente: “Oito pontos,
filho? Tinha que ter pelo menos levantado o braço, Luca, a gente tem que
dificultar eles darem porrada na gente...” (p. 43)
Manguari faz uma ligação telefônica
para Castro Cott. A partir do diálogo dos dois é possível depreender algumas
características do discurso vigente, pois o diretor do colégio, como
representação do sistema, nos revela vários pontos relevantes desse discurso
que, além da questão política, também se sustentou no discurso moral e, tudo
isso, travestido de princípios democráticos. A fala de Castro Cott traz a marca
do reacionarismo ao afirmar literalmente que:
... o colégio estava virando terra de
ninguém, indisciplina, interpelações aos professores, gente que sai no meio da
aula, cigarros, sexo pelos cantos, cheiram cola de avião, meninas de seios
quase nus; eles [os alunos do Liceu] vivem numa sociedade democrática, não
tenho o direito de incentivar, sequer de tolerar esta auto-idolatria, esta
paixão pela impunidade... (p. 43).
Os militares que ocuparam o poder em momento algum admitiram que
o país vivesse sob uma ditadura[52].
Sempre insistiram no discurso da vitória da democracia contra a ameaça do
comunismo internacional, contra a “ditadura comunista”. Castro Cott apenas o repete,
reafirmando-se, mais uma vez, como a representação dramática do regime
instaurado em 64, um autêntico porta-voz, que em momento algum vai abrir mão da
função. Manguari, é claro, ironiza as palavras do diretor do colégio e, com
isso, ironiza também, os próprios militares: “Você agora é um democrata
intransigente, não é, Castro Cott?” (p. 43)
A luta está apenas começando. Manguari deixa claro que vai
ajudar, pois, ao se despedir de Luca para ir para o trabalho, afirma: “Trago
novidade.” (p.43), ou seja, vai pensar em alguma coisa, alguma forma de luta,
alguma ação que articular para ajudar o filho em sua luta. Luca e Nena ficam. No
diálogo dos dois identificamos um comentário que será a tônica do restante da
cena e do próprio ato:
Nena – Acho que teu pai está com vergonha de te
pedir pra voltar pro colégio...
Luca – Meu pai não vai me pedir isso.
Nena – Não. Claro que não... teu pai tem 57
anos... foi um custo conseguir essa bolsa... colégio do estado, só aparecia
vaga nos piores... teu pai não subiu na
vida por causa de política... (p. 44 – grifos nossos)
A dúvida de Nena e a certeza de Luca
estabelecem o conflito da cena, pois Manguari irá se encontrar em um de seus
momentos mais contraditórios. Mas antes, no passado, Manguari e Lorde Bundinha
vendem revista de música e partitura para piano. Manguari lamenta o fim do
curso técnico que estava fazendo; critica a política do governo para o ensino
técnico:
Manguari - Procurei por aí tudo. Não achei outro. Pra
cada mil brasileiros só tem uma indústria que ocupa 20 pessoas. Pra que curso?
E continuam queimando café. Estão crucificando a gente no meio da rua sem
vir-te nem guar-te! Quero uma escola! Escola! (p. 44-45)
Lorde Bundinha é acometido por um desmaio provocado pela
tuberculose, Manguari diz que vai procurar o pai, pois, “ele tem uns casacas no
Ministério da Saúde...” e pode ajudar no tratamento do amigo, apesar da
distância entre pai e filho: “Ele [o pai] tem que falar comigo. É pra você. [ou
seja, o personagem não está se aproximando do pai para que este ajude o amigo]”
(p. 45) Manguari lança mão de suas “influências”, seus pistolões.[53]
Quando os dois vão ao encontro de 666, este está sendo incorporado às fileiras
da Ação Integralista Brasileira, fazendo seu juramento de fidelidade. Manguari
tenta se justificar: “Meu pai não é nada disso. Meu pai não é isso, não tenho
pai assim.” (p. 45) Não foi muito diferente do que Luca afirmou em relação a
ele: “Meu pai não vai me pedir isso.”
A cena volta ao presente e deparamos
com um dos momentos mais contraditórios de Manguari, que se revela quando,
depois de conversar com Castro Cott, diz ao filho que conseguiu negociar com o
diretor do Liceu: “Então ele [o diretor] propôs o seguinte: eu faço uma
declaração dizendo que você pertence a um conjunto musical, entende? Que seu
cabelo comprido tem fins profissionais...” (p. 46). Nesse momento há uma reação
surpreendente de Luca: “Eu vou voltar sozinho de cabelo comprido e todo mundo
de cabelo cortado? (...) Volto sozinho, só meu problema resolvido? É o famoso
Manguari Pistolão que está me propondo isso?” (p. 46-47). O mesmo Luca que
havia dito para a mãe que, numa defesa moral e política do pai, afirmou que ele
não lhe pediria para voltar ao colégio. Para Luca, isso representa uma
decepção, na qual ele se recusa acreditar.
Simultaneamente, no passado, Lorde
Bundinha arranjou uma “garapa” com o governo Getúlio e pede Manguari para armar
o elenco e cantar numa revista[54],
ao que Manguari reage indignado:
Lorde Bundinha – Pistolão, mon choux,
arranjei uma garapa – o Serviço de Propaganda e Turismo do Governo, vai
patrocinar por trás do pano a montagem de uma revista teatral “Cadê o Gegê”?
Tenho um merda de um tio encastelado lá que me perguntou se eu podia armar um
elenco. Eu disse que podia, paga bem, você é casaca de gente lá na Rádio
Cajuti... Me ajuda a armar um elenco, você entra na revista também, canta um
solo com luz prateada, todo liró...
Manguari
– Que barriga é essa, Bundinha? Se enfia. Você acha que eu sou um engrossa do
Getúlio? (p. 46).
Manguari no presente enfrenta a oposição de Luca, que não
aceita em hipótese alguma sua proposta de cortar o cabelo e se passar por um
integrante de um conjunto musical, “não tenho trato com figura que quer decidir
minha fisionomia” (p.47). Manguari insiste, alegando não ter condições para
pagar os estudos do filho (ele é bolsista do Liceu), que ele tem que fazer
vestibular e não pode perder um ano. Luca é definitivo: “Essa de conjunto
musical não dá, viu, Manguari? Tenho vergonha de pensar, entende? Tenho vergonha até de pensar nessa proposta!”
(p. 47).
Manguari, um homem de partido que toda sua vida lutou contra
os privilégios da sociedade capitalista, se pega pedindo o filho para ser um
privilegiado; privilegiado numa luta de reivindicação política, na qual o
inimigo é um representante da burguesia; privilegiado numa sociedade que não
lhe permite sequer condições de pagar uma boa escola, mas ainda assim o filho
estuda numa boa escola. Manguari é um privilegiado sem o ser; Luca se recusa a
esse privilégio, embora o seja, pois se dá ao luxo de ser macrobiótico.
No passado, recusa ajudar o amigo: “Você está pedindo os meus
princípios, não dou e sai cinza, Bundinha!” (p.47). Manguari tem seus
princípios, mas se confronta com suas contradições quando o Lorde diz que ele
trabalha, sim, para o Governo, pois a Rádio Cajuti apoia Getúlio, e ele
trabalha no coro da Rádio. Manguari levanta uma questão dialética que marca os
dois tempos: “Porque tem coisa inevitável é que tem coisa evitável. Não pode
confundir as duas, senão vira destino” (p. 47). Para Luca a questão é
invertida: “Você não pode perder o ano, bolsista não pode perder ano, não tenho
condição de aguentar, Luis Carlos, você viu que minha nova gratificação está
perigando...” (p. 47).
Manguari é um homem complexo, sujeito a enfrentar suas
contradições e tentar entendê-las para superá-las. Processa suas autocríticas e
tenta avançar, buscando compreender o mundo em que vive, compreender seu filho,
sua própria condição de militante comunista que sempre lutou com profundas
dificuldades para manter a si e a família. No passado era um stalinista
ferrenho; no presente, assim como o PCB, abandona o radicalismo, a pirotecnia.
Mas continua sendo um ser humano complexo e contraditório. Ainda que acredite
na luta contra os privilégios, sabe que em certos momentos é preciso mesmo se
valer de privilégios para continuar sobrevivendo. Suas contradições, que são
contradições sociais – necessidade versus
possibilidade –, se transformam em conflitos que o fazem mover, tropeçando aqui
e ali.
Encerrando o momento de luta política, tanto no passado
quanto no presente, os dois personagens – Camargo Velho e Milena – nos apontam
um novo direcionamento, novas perspectivas de luta. No passado, Camargo anuncia
a eleição de Vargas pelo Congresso Nacional, o que ele (entenda-se: o PCB)
considera uma “traição à revolução de 30”. A partir de agora o Partido adota
uma postura de confronto direto com Vargas, o que irá culminar na formação da Aliança Nacional Libertadora – ANL e o
levante de 35. No presente, Milena radicaliza a luta e parte para a “ação
direta”, numa clara referência aos que optaram pela luta armada: “Tem é que
fazer presença forte sabe, Luca? Não pode coxamblância, precisa abrir as
janelas, abrir de par em par um puta janelão...” (p. 48). Essa opção pela “ação
direta” está linguisticamente marcada por termos como “presença forte”;
“coxamblância”, numa clara referência à posição do PCB em adotar uma política
de organização e mobilização da sociedade, que era considerada uma política de
conciliação com a ditadura[55]
e, finalmente, “abrir as janelas”, ou seja, escancarar a luta contra os
militares no poder.
O recurso épico é utilizado para encerrar o ato: a personagem
Milena, que, em nenhum outro momento adotou esse tipo de postura para fazer
qualquer comentário, assume uma narração sobre a capacidade produtiva do Brasil
no ano de 1934. Didática e criticamente relata diretamente para o público a
inutilidade social da produção industrial daquele ano:
Milena - O Brasil em 1934 produziu 5
milhões de vidros de água de colônia, 25 milhões de caixas de pós-de-arroz, 10
milhões de vidros de rouge líquido, oito milhões de vidros de brilhantina...
(p. 49)
A cena e o ato terminam com um
refrão extremamente irônico:
Oi que terra boa pra se farrear...
CENA 5
Exercitando a
autocrítica
A autocrítica é um instrumento de
aperfeiçoamento e aprimoramento ideológico e político, utilizado pelo comunista
para se reavaliar e se orientar a respeito de determinada posição assumida de
maneira equivocada e que contraria as orientações partidárias, ou desvios de sua
conduta ética e moral, de acordo com preceitos marxistas-leninistas:
Toda moralidade é determinada social e historicamente – eis a tese
fundamental da ética marxista. O conteúdo objectivo da moral traduz o carácter
das relações sociais, concretamente
das relações de propriedade dos meios de produção, da interação entre
diferentes grupos sociais e classes, das formas de distribuição e troca, etc.
(...) Se bem que a moral seja objectivamente determinada e o seu conteúdo tenha
um sentido sócio-histórico objectivo, representa a esfera de estímulo interno,
subjectivo do indivíduo que o leva a concretizar as suas esperanças, objectivos
e ideais, bem como transformação criadora da sociedade na qual os ideais servem
de pontos de referência. A essência dos elementos subjectivo e objectivo na
moral consistem em que o que é
socialmente valioso se transforma em interesse
pessoal, que é conscientemente adoptado como imperativo íntimo, interior,
como voz da consciência e do dever. A moral não surge unicamente no próprio
sujeito nem exclusivamente fora dele, mas na interligação dialéctica de
ambas as partes. (TITARÉNKO, 1982, 8 e 14 – grifado no original)
Portanto, para Manguari, a
autocrítica é um bem valiosíssimo, que não se nega em exercitar, quando se pega
assumindo posições que contrariam sua formação política e ideológica. Neste
sentido, os reflexos do erro cometido na cena
4 irão se manifestar num momento de encontro de Manguari consigo mesmo, momento
em que faz uma profunda autocrítica. De madrugada, num longo monólogo,
intercalado por cenas do passado, revê sua posição na discussão com Luca,
quando pediu a ele que dissesse pertencer a um grupo musical para continuar de
cabelo grande. O que fez, foi invocar um privilégio sustentado por uma mentira.
Percebe o seu erro e faz uma profunda autocrítica, acompanhada de uma
verdadeira profissão de fé, ao falar da luta que o filho deveria enfrentar na
vida:
Manguari - ... fiz mal em pedir pra ele
voltar para o colégio dizendo que era músico profissional, Nena. Como é que um
pai que se preza pede a um filho que ele se proteja, se cuide, se poupe, que
não lute, se despedace em cicatrizes, gilvazes fraturas punhaladas rasga o coração
na ponta de todas as dores filho meu (...) Luta menino, luta te quero aleijado,
marcado a fogo, mergulhado em batalha que a vida bate e brilha no fundo das
lutas. (p. 52)
No processo de autocrítica fala de
si mesmo e de sua luta, cotidiana, incansável:
Manguari - ... ô Nena, como é que eu
pude deixar o menino sozinho assim? Nunca abandonei ninguém, nem meu amigo
Lorde Bundinha nas vascas, golfadas de sangue, nem meu pai esclerosado, rodando
à noite aqui em casa... sou lutador, Nena, lutador dos bons, muita derrota,
muita decepção, fracassos e fracassos tempera muito, muita derrota dá cada vez
mais esperança... sou lutador, Nena, venho das desistências, paixões caladas,
deboche, solidão, isolamento, fome, cadeia, fui fabricado na miséria humana,
Nena... sou de boa cepa... sou um vencedor... tenho fé no fundo do poço... (p.
53)
Marx já afirmara que a prática é o critério da verdade[56].
A autocrítica não pode ficar só nas palavras e nas bravatas, somente na prática
ela se realiza e se completa. Espera o filho acordar e se desculpa com ele –
“... queria pedir desculpas, Luis Carlos, quero fazer autocrítica... desculpa
eu ter pedido pra você cortar o cabelo...” (p. 55) – e propõe um plano de ação,
de organização e mobilização dos alunos, buscando apoio na sociedade civil,
Manguari - ... fiz até plano, olha eu me metendo,
vocês podem usar muita coisa, entende? É a experiência da gente, longos anos de
pratica de levar porrada, são quarenta alunos, tinha que mobilizar os pais,
isso era importante, aí a comissão de alunos vai no Sindicato dos Professores,
nos jornais, comissão dos pais pode ir ao Conselho Nacional de Cultura,
Academia de Letras... as entidades estão aqui... (...) mesmo pra contratar um
advogado, precisa fazer finanças, eu me informei, mandado de segurança não cabe
no caso e o processo demora dois anos, quer dizer, dois anos você já saiu do
colégio mas sempre é bom travar a luta no campo judiciário também... (p. 55)
Manguari entende, seguindo as orientações do PCB, que “organização
é tudo” (p. 54) na luta política. É isso que propõe, não apenas como observador
externo, mas na certeza de que a luta também é sua, pois já fez pesquisas,
“ontem fui na Biblioteca Nacional” pesquisar o tema do cabelo comprido na
história das civilizações. Manguari já está atuante e a apresentação do plano
de luta une os dois e no seu decorrer, transforma-se na cena mais íntima entre
pai e filho, de toda a peça. Por um rápido momento, os dois se tornam
cúmplices, amigos:
Manguari - ... não faz mal você perder as provas,
Luca, já arranjei atestado médico que você esteve doente, faz prova em
agosto...
Luca - ... essa é super!...
Manguari - ... brigar, moço, brigar, é o sal da
terra, teu pai é o Manguari Pistolão.
Luca – Ai Manguari Pistolão.
Manguari – Êhe. Manguari Pistolão.
Luca – Olha o Pistolão! (Riem) (p. 55)
A intimidade entre os dois é
crescente. Luca quer saber se a vizinha que troca de roupa com a janela aberta
tornou aparecer. “... de camisola, no sol, saindo, ficou toda transparente...”
(p. 56) Tudo aponta para a resolução dos conflitos entre eles. A cena termina
com Manguari cantando trechos de Fascinação,
feliz.
Dentre as informações históricas, relacionadas ao passado,
merecem destaque a citação do DIP[57]
e de A Voz do Brasil[58],
na abertura da cena.
CENA 6
Luta armada versus organização popular
Quando Manguari elabora o “plano de ação” para Luca contra as
atitudes arbitrárias do colégio de Castro Cott, está projetando dramaticamente
a política pecebista de organização e mobilização das massas contra a ditadura
militar. A Declaração de Março, de
1958[59],
que seguia as orientações da transição pacífica, propõe novas formas de lutas,
agora sem o radicalismo do Manifesto de
Agosto, de 1950[60].
Com o golpe de abril de 64 e a incursão de alguns partidos e organizações
clandestinas na luta armada, isolam o PCB, classificando-o revisionista. O PCB
considera a luta armada uma aventura que, no seu entendimento, levaria a um
recrudescimento da violência e repressão por parte da ditadura militar. Sua
crença foi sempre de que só a organização popular seria capaz de derrotar o
regime de força. Neste sentido, é que entendemos ser o “plano de ação” uma
projeção da linha de ação pecebista, que propõe uma organização popular, buscando
apoio na e da sociedade civil organizada – OAB, Conselho Nacional de Cultura e
órgãos de imprensa etc.
Vianninha, contudo, não mostra apenas um lado dessa luta,
estabelecendo assim o contraditório e tornando-o o conflito dramático das duas
concepções de luta. As posições de Milena, defendendo a política da “ação
direta”, nos parece vincular claramente à luta armada que, ao contrário da
linha política do PCB, acreditava na derrubada da ditadura através da guerrilha
urbana e rural.
São duas visões antagônicas que se chocam do ponto de vista
tático, mas visam ao mesmo objetivo estratégico: lutar e derrubar a norma
arbitrária e autoritária do Liceu Castro
Cott. Na luta política firmada no país nos anos de chumbo, percebemos essa
mesma relação entre tática e estratégia: o fim era o mesmo, o que os diferiam e
separavam era a tática. A peça reflete também o confronto direto de opiniões,
aqui representado pelas figuras de Milena e Camargo Moço. O deboche de Milena a
respeito do “plano de ação”, não é diferente dos havidos entre grupos
antagônicos na luta contra a ditadura. O país estava inflamado, convulsionado e
o PCB “insistia” na transição pacífica, contra aqueles a quem a pressa impunha
a luta armada. Luca não tem firmeza ideológica, muito menos prática política
para enfrentar Milena, que apesar de ser sua namorada, está em campo político
oposto. Camargo Moço (sobrinho de Camargo Velho) é quem vai enfrentar Milena no
acirramento da reunião de estudantes. Provocado pelos comentários de Milena que
critica o plano de ação proposto por Manguari,
Milena - ... isso que o companheiro Luís Carlos
está apresentando aqui na reunião pra mim não é um plano de luta, é uma proposta
de turismo pela cidade, correto? (p. 57),
Luca, na sua
ingenuidade política, tenta defender o pai, mentor intelectual e político do
plano de ação:
Luca – Olha aí, Milena, olha aí, favor porra,
favor, isso é contribuição do meu pai, faz anos que ele faz isso, a vida dele é
isso (...) Assim não vai falar que meu pai tem experiência disso! (p. 57)
Camargo Moço toma a palavra e esclarece:
Camargo Moço - ... porque se a gente
veio aqui discutir história, Custódio Manhães faz parte da história desta terra
que não está nos livros e tenho muito orgulho de saber que estou sentado ao
lado do filho dele. Porque o combate
começa respeitando nossos combatentes...[61]
(p. 58 – grifos nossos)
O confronto de ideias e formas de
luta se acirra entre os dois. Camargo Moço defende a organização popular, acusa
as posições de Milena de “golpismo! Sem ouvir opinião, sem organizar as massas,
sempre cúpula, sempre na elite”. (p. 59) O PCB condenava a luta armada por
vários motivos, mas dentre eles, é importante destacar para uma maior
compreensão da peça: a não existência do caráter
subjetivo para realização de uma revolução armada e a substituição das
massas pelas organizações revolucionárias. Mas Milena, com seu discurso
inflamado, consegue convencer a reunião, como se verificará na próxima cena. A
reunião termina com Milena clamando:
Milena - ... ação direta, companheiro! Vocês
[os comunistas do PCB] acabaram com a ação direta, a fúria, a paixão... (...)
muita coragem, muita decisão, hino, mãos dadas, mas na hora do vamos lá – cada
um com sua calça arriada, sentado na sua latrina, reclamando que os outros
arriaram as calças! A única coisa que faz barulho nesta terra é o intestino! (p.
58 e 60)
No plano do passado, encontramos
Manguari escondendo armas e se preparando para o levante de 35, quando o PCB, em
nome da já ilegal ANL[62],
hegemonizada pelos comunistas, promove levantes em Recife, Natal e Rio de
Janeiro:
Manguari - ... Não dá mais! Não dá
mais, juro! Nem mais nem ontem! É embrulho! Passa! Essa terra faz 400 anos que
é uma imensa sala de espera dos aliados! Cheirava-te Pedro Ernesto, prefeito do
Getúlio, vai ficar com quem na hora de ver o preço da banha? Que o Ministro do
Trabalho é aliado! Pois não é ele que está pondo fuzileiro naval pra furar
todas as nossas greves? (p. 59)
Os dois tempos se mesclam e apontam dois momentos
fundamentais na vida do PCB e do próprio Manguari: no passado, o Partido
enfrenta o Governo Vargas de armas na mão, no presente, o mesmo Partido, já
tendo revisado suas posições, entende que a luta contra a ditadura será lenta e
prolongada, mas vitoriosa somente se contar com a participação popular. Se no
passado, como o próprio Lorde Bundinha acentua “até ontem não era a grande
frente democrática?” (p. 59), o PCB abandona um movimento democrático, de bases
populares (ANL) para pegar em armas; no presente, a história mostra o contrário
do movimento, do enfrentamento - Manifesto
de Agosto - para a frente democrática.
Paralelamente, no passado, temos a frustrada tentativa da
Ação Integralista em tomar o poder, no movimento de 38. Castro Cott e 666,
distribuem armas para diversos pontos do país, onde o integralismo está
organizado e tentará o golpe.
A cena volta para o espaço interno
do presente, quando encontramos Luca discutindo com o pai sobre a reunião dos
estudantes. Luca, em meio à discussão, estabelece um vínculo entre Manguari e
Camargo Moço. Ele percebe que os discursos dos dois são os mesmos:
Luca – Ele vai lá também com essas
posições...
Manguari – Que posições, Luca, que
posições, menino?
Luca – ... fala revolução, revolução,
revolução na boca o tempo todo, a super-boca cheia de revolução... (p. 61)
Luca, já contaminado pelo discurso inflamado e extremado de
Milena, entra em confronto com o pai, repetindo literalmente os argumentos de
Milena:
Manguari – Vai brigar comigo, menino? É
assim mesmo, todo político quando prefere brigar mesmo é com seu aliado
maior...
Luca - ... é outra, é outra. Não tem
essa de aliados não, vocês não são nossos aliados, a história política deste
país é a história da calça arriada...
Manguari – Mas o que é isso, menino?
Luca - ... fora Cabanagem, fora Canudos, que morreu ali o último, até o
último, fora isso o que é? Calça arriada! Não é mais ou mesmo essa a tua
herança, Manguari Pistolão?
Manguari – Ah, menino imbecil, moleque
sem respeito! Como eu já pensei também igual a você, menino, meu Deus, como eu
também acreditava em mim.
Luca – Mas se encheu de experiência,
não é?
Manguari – Repleto de experiência,
moleque, repleto! É só o que eu juntei!
Luca – Mas a experiência é pra isso?
Não quero, não quero ficar experimentado! Você é que é um revolucionário,
então? (...) Mas isso é experiência? Esse silêncio por dentro, que fica dentro
de você? Experiência é desistir de ser feliz? Ação direta! Ação direta! Ação
direta! (p. 62).
CENA 7
Interrogatório e tortura; resistência e delação:
quando se tem
consciência, não se tem traição.
A discussão fundamental que se trava
na cena está diretamente vinculada à firmeza ideológica. Manguari e Camargo
Velho são presos e torturados. Milena e Luca são chamados à diretoria do Liceu
por terem participado de uma invasão e depredação de dependências da escola. As
duas situações são contrapostas simultaneamente e o que temos é uma análise do
comportamento político diante de situações extremas.
Não discutimos aqui o caráter dos personagens; discutimos, sim,
até que ponto a convicção ideológica interfere como fator positivo no momento
do interrogatório e, eventualmente, da tortura[63].
Vianinha, ao confrontar os dois momentos, aponta uma crítica aos grupos
radicais dos anos 70, ao mesmo tempo em que manifesta apreço às resistências de
militantes realmente comprometidos com a revolução.
É preciso entender essa análise crítica
e bastante rigorosa, proposta por Vianinha, como resultado de um processo
histórico[64], entendendo também que
uma consciência ideológica elevada se transforma na arma mais importante para se
resistir a situações extremas, como é o caso da tortura. Manguari e Camargo
Velho, dois militantes forjados na luta, maduros ideologicamente, conseguem
superar a dor do interrogatório e da tortura e a certeza da prisão, como
penalização por defender uma causa. Mesmo torturados, não se reconhecem, não se
denunciam, não colocam em risco a organização partidária:
Camargo Velho – ... já disse que nunca vi esse indivíduo na minha vida!
Manguari – ... não conheço... nunca vi na minha vida... (p. 64)
Ambos se limitam a dizer nome, endereço e profissão:
Manguari – Meu nome é Custódio Manhães
Jr., moro na Rua Correia Dutra, 17, quarto 5, trabalho na Radio Cajuti como
corista, vendo “Modinha”, “Vamos Cantar”... não tenho mais nada a dizer. (p.
63)
Camargo
Velho – Meu nome é José Silveira
Camargo, estudante de medicina, morador na Rua Paissandu, 118, apto. 505. Nada
mais tenho a dizer. (p. 65)
No presente, confronta-se com o
passado a cena de Milena e Luca sendo chamados à diretoria do Liceu e
enfrentando o “interrogatório” de Castro Cott. Pressionada, Milena “abre” e
tenta tirar o corpo fora: “... eu vim... porque todos vieram entende? Todos
vieram... mas só fiquei dentro do colégio, não destruí nada!” (p. 64). Castro
Cott usa com ela um recurso amplamente utilizado pelas forças da repressão:
“... a senhorita vai continuar negando sua participação na invasão do colégio?
(...) Todos confirmaram, senhorita, tenho depoimentos gravados, senhorita,
pelos seus colegas, senhorita!” (p. 64).
No “interrogatório” de Luca, a técnica de “todos já
confirmaram” e “já sabemos de tudo” é mais uma vez utilizada e surte o efeito
desejado: Luca assume que as reuniões do grupo de alunos aconteceram na casa de
Milena, mas tenta “limpar a barra” da amiga: “(...) mas ela não é a responsável
pela invasão de nada.” (p. 64), para logo depois entregar: “(...) não sei quem
teve a iniciativa de estragar o arquivo de provas, não sei, juro! (...) ...
acho que foi a Milena, não sei, foi a Milena, não sei, foi ela mesmo.” (p. 65).
A ação abandona o espaço externo e a simultaneidade de tempo
e volta-se para dentro da casa de Manguari. Camargo Moço questiona Luca, querendo
saber quem o denunciou para a diretoria do colégio. Luca insiste em negar.
Manguari, que não admite delação, exige que Luca diga a verdade:
Manguari – ... jura que não foi você,
Luca?
Luca – ... qual é super Manguari, qual
é? Cavaleiro andante, está com a espada aí pra mim[65]
jurar?
Manguari – Estou falando sério, menino!
Nunca falei tão sério, garoto! Foi você quem entregou esse rapaz?
Luca – Qual é? Não tem essa de
engrossar comigo, não!
Manguari – ... responda seu pai,
menino, estou dizendo para responder a seu pai, seu pai está falando! (p. 66)
Luca entra numa crise de nervos e chorando jura “pela vida
livre” (p. 66) que não entregou Camargo Moço. Manguari se dá por satisfeito e
assume perante Camargo Moço que Luca realmente não o entregou, “não foi ele
não, eu conheço esse menino, não foi ele quem entregou você, rapaz...” (p. 65),
e acrescenta, pois essa é a dignidade do comunista, que não suporta dedo-duro:
“não deixa de encontrar quem acusou você...”, Camargo responde: “... Ah, isso é
tarefa santa, não deixo de mão, tenho de descobrir o cujo pra entregar ele pra
todo mundo... descobrir dedo-duro é tarefa santa...” (p. 66).
A cena se encerra com uma grande discussão: Camargo Moço
demonstra uma consciência extraordinária sobre a realidade educacional no
Brasil, ao mesmo tempo em que faz uma análise, na qual demonstra que o conflito
não é entre gerações, mas dentro da própria geração, de cada uma delas. E
termina dando uma grande lição a Manguari sobre a questão da dúvida como grande
arma, ponto que o próprio Marx já havia apontado e que Manguari diz que não
tinha pensado nisso como sendo a grande arma para entender a sociedade e lutar
contra um sistema opressor como o capitalismo.
Manguari - ... O meu filho, Luís Carlos, que é
ele? Por que é que eu entendo ele cada vez menos? O que é que ele faz esse
conflito de gerações ficar assim?
Camargo
Moço - ... Não saco muito
conflito de gerações, sabe? Pra mim, o importante não é o conflito de gerações, é a
luta que cada geração trava dentro de si mesmo... eu sou da geração de seu
filho, pô, mas sou outra pessoa. .. tem umas gerações que acham que a política
é a atividade mais nobre, a suprema, a exclusiva invenção do ser humano... Tem
outras gerações que pensam que a política é a coisa mais sórdida que o homem
faz... quero que a minha seja como a primeira ...
Manguari - Mas a sua geração fica cada vez mais
apolítica... você é minoria... qual é a minha culpa nisso? Minha geração é
política...
Camargo Moço
- Bom, aí eu não sei, seu Custódio, não sei... Sabe? O Colégio
Castro Cott mandou cortar cabelo e faz cumprir a ordem a ferro e fogo em
Laranjeiras porque lá em Laranjeiras vão construir um colégio do estado...
então, ele quer chamar atenção pro colégio Castro Cott de Laranjeiras, para
todos os pais moralistas de todos os bairros, é uma maneira de atrair
freguesia. Ninguém sabe disso lá no colégio, os 600 alunos, ninguém sabia, ninguém
sabe do problema educacional do país... acho que, vai ver, esse foi o erro de
vocês... vocês descobriram uma verdade luminosa, a luta de classes, e pronto, pensam que ela basta para explicar
tudo... a tarefa nossa não é esperar que uma verdade aconteça, nossa tarefa é descobrir novas verdades, todos os dias...
acho que vocês perderam a arma principal: a dúvida. Acho que é isso que o filho
do senhor quer... duvidar de tudo... e isso é muito bom... acorda... arrepia as
pessoas. (Longo silêncio)
Manguari - ... a dúvida, menino? ...a nossa principal arma, a
dúvida?.. (Novo silêncio) ... nunca tinha pensado nisso... (Silêncio.
Manguari imerso em si mesmo) (p.
67).
Para entender melhor as intenções de Vianinha sobre esse
tema, se faz necessário voltarmos a atenção para o “prefácio” que ele escreveu
para Rasga coração, que aqui reproduzimos em sua íntegra:
Em primeiro lugar, Rasga coração é
uma homenagem ao lutador anônimo político, aos campeões das lutas populares;
preito de gratidão à "Velha Guarda", à geração que me antecedeu, que
foi a que politizou em profundidade a consciência do país.
Acho que os conheci muito bem; minha
infância e adolescência, passei-as, vendo-os em minha casa, onde meus pais os
homiziavam diante da perseguição de Felinto, Ademar, Dutra.
Em segundo lugar, quis fazer uma peça que
estudasse as diferenças que existem entre o "novo" e o "revolucionário".
O "revolucionário" nem sempre é novo absolutamente e o novo nem
sempre é revolucionário.
Rasga coração é a história de Manguari Pistolão, lutador
anônimo, que depois de quarenta anos de luta por aquilo que ele acha novo,
revolucionário, vê o filho acusá-lo de conservadorismo, antiguidade,
anacronismo. Para investigar essas razões, a peça ilumina quarenta anos de
nossa vida política, mostrando a repetição do conflito de percepção do
verdadeiramente novo. Este conflito se dá na percepção de gerações diferentes
mas, principalmente, estala dentro de
cada geração, e é dentro de cada uma delas que se define.
A peça fixa desde o novo antigo (o
integralismo) até o novo anárquico (a boemia de 30, o hippie de hoje) que,
apesar de apresentar soluções antigas, percebe, detecta problemas novos que os
sistemas revolucionários organizados têm dificuldade em absorver,
principalmente quando atravessam fases de subestimação da teoria e criação da
consciência humana.
No final, no frigir dos ovos, o
revolucionário para mim, o novo, é o velho Manguari. Revolucionário seria a
luta contra o cotidiano, feita de cotidiano. A descoberta do mecanismo mais
secreto do cotidiano, que só sua vivência pode revelar.
A peça conta uma história, com todos os mecanismos do play-wright,
aproximação psicológica, crescendo de tensão, etc. Ao mesmo tempo, a peça
apresenta dados, remonta momentos históricos, etc., utilizando a técnica da
"colagem" que usamos em Opinião e outros espetáculos. Esta
combinação de técnicas parece-me que apresenta uma linguagem dramática nova. A
criação de formas novas parece-me importante assim: resultados compulsivos da
necessidade de expressão temática e não somente a procura artificiosa de novas
posturas. A originalidade como sofrido ponto de chegada, e não ponto de
partida. (p. 13-14 – grifos nossos)
Entendemos, portanto, que para discutir a relação dialética
novo/revolucionário e velho/conservador, Vianninha lança mão do conflito de
gerações, mas não se prende a ele, pois sua proposta vai além do simples
conflito, buscando a “percepção do verdadeiramente
novo” como instrumento surgido do cotidiano na luta contra o próprio cotidiano.
A luta se alimenta desse confronto com a realidade e na tentativa de sua
superação. É a percepção da necessidade da luta contra o cotidiano (e o modo
com o qual essa luta vai se estabelecer) que faz a tomada de posição de cada
geração. Situar a peça como uma discussão sobre o conflito de gerações é, em
nossa opinião, reduzir o seu valor revolucionário.
CENA 8
O
desbunde como fuga
Na rubrica inicial da cena, Vianninha
define:
Luca é um hippie agora. Colares. Batas.
Levou a extremos os modos que apresentava no começo da peça. O cabelo está mais
comprido, preso com fita na testa. Milena também hippie. (p. 68).
Luca e Milena “desbundaram”. Esta cena também aponta para uma
crítica ao movimento radical dos anos 70. A imersão nas drogas, a procura de
uma vida esotérica, até mesmo a religião, serviram como refúgio para a negação
de uma ação praticada que levou a consequências não pensadas, mas possíveis e
prováveis de acontecerem. Os personagens, depois de passarem por uma situação
extrema de pressão através do “interrogatório” e do afastamento compulsório do Liceu, se entregam à droga para fugir de
uma realidade que os colocou à prova[66].
No universo familiar, Nena está
apavorada e relata para o marido atitudes do filho:
Nena – ... Não toma mais banho, não
toma. Três meses, Custo, indo todo dia pra Santa Tereza, um convento, não sei o
que é, não me deixa varrer o quarto, a vitrola que minha cabeça não agüenta,
acho que ele toma essas drogas, hein? Bom, você não pode ficar assim como se
fossem inquilinos do mesmo apartamento, você é o pai dele... ontem foram na
casa de um chofer de taxi que viu um disco voador, vão num subúrbio aí que diz
que embaixo da terra tem outra civilização, você tem que falar com ele.
Manguari
- ... Não adianta, Nena, não adianta eu falar, você sabe disso. Ele não gosta de mim. (p. 68 – grifo
nosso)
Manguari, apesar da constatação de que o filho não gosta
dele, entende o momento e acha que Luca tem que procurar seu próprio caminho,
são experiências que ele deve vivenciar para conhecer a vida em todos os seus
aspectos. Para ele, Luca está derrotado e “quando a gente é derrotado, fica com
nojo da existência normal, precisa de outras portas pra se sentir separado,
entende? Não derrotado...” , e acrescenta que com ele aconteceu a mesma coisa
quando saiu da cadeia, “não ia trabalhar, dias com a mesma roupa no corpo,
lembra, tomei até morfina...” (p. 70). É Bundinha quem nos relata:
Bundinha – Vai ficar aí engasgado nessa cama,
Manguari Pistolão? ... Você nem ficou preso vendo o china-seco... E o Camargo
Velho que vai enfiar cinco anos? Está assim só porque tiraram suas unhas? Isso
é bom pro passo de seri-sem-unha... para de sofrer, Manguari, olha aqui,
morfina de qualidade, coisa organdi... não sabia que a moda é ser sonambulista?
Todo mundo quer ninar-se... está na moda não querer sofrer, passar à rosa
divina, precisa aproveitar essa época, são tão poucas... olha aí a morfina...
(p. 68)
A compreensão de Manguari pelo fato de já ter passado por
situação similar, é que faz com que ele se reaproxime do filho. A diferença é
que ele não abandonou a luta. Quando supera o “trauma” da prisão, continua um
combatente tão ardoroso quanto antes. Outro fato determinante é sua lembrança
da morte do amigo inseparável Lorde Bundinha. Uma outra derrota faz com que ele
supere a derrota anterior e saia da inércia para continuar lutando. Uma das
cenas mais emocionantes da peça, a morte de Bundinha, é o momento onde a
relação tempo/espaço rompe toda sua lógica e nos mostra o personagem
absolutamente perdido em seus pensamentos. Passado e presente se misturam de
uma forma extraordinária, o espaço do presente é invadido pela figura do Lorde,
e Manguari já nem sabe mais em que tempo está, pois, no espaço presente, tem o
amigo morrendo abraçado aos seus pés:
Manguari – ... O que me botou na vida de novo foi a
morte de Lorde Bundinha, ah, meu Deus, foi horrível!
Nena – Não vai contar isso de novo, Custódio, por
favor...
Manguari – ... Eram três horas da manhã, ele começou
a tossir, tossir, nós tínhamos tomado morfina...
Nena – ... Vamos terminar as contas...
(Lorde
Bundinha vem se aproximando até se abraçar com Manguari que continua sentado
contando e ao mesmo tempo contracenando com Lorde)
Lorde Bundinha
– ... Lorde Manguari... me ajuda aqui... não estou vendo bóia...
Manguari – (A
Nena) Ele começou a cuspir sangue de novo, eu estava tonto, Nena. (A Bundinha) ... que é isso, mon choux?
Está arriando a trouxa? Não quer sair barra-à-fora?
Lorde Bundinha
– ... Aperta meu peito... aperta meu peito... não quero tossir, não posso
tossir... (Faz força para não tossir)
Manguari – ... Não tosse, não, deixa dessa mania de
tossir, deixa correr o marfim... (A Nena)
... eu não estava entendendo que ele estava morrendo, Nena, entende?
Lorde Bundinha
– ... Estou morrendo, mon choux, vou bater o 31, não me deixe bater o 31, não
me deixe fazer tijolo!
Manguari – ... Relaxa, Bundinha, fica de gasosa, de
gasosa, no vago, anda no vago, Bundinha, deixa correr o marfim...
Lorde Bundinha
– ... Preciso de médico, mon choux... pelo amor de Deus, me acuda, me acuda,
não quero morrer, juro, não quero bater o 31... sabe porque... semana que vem
vai passar no cinema “A Volta do Dick Tracy”, “A Volta do Zorro”, “A Volta de
Pimpinela Escarlate”, não posso perder a volta de Dick Tracy, mon choux... não
posso per... Manguari! mon choux! Manguari, mon choux, eu... (Lorde Bundinha morre)
Manguari – Lorde?... Lorde?... Isso, mon choux, vê se dorme, tem é que ficar na
flauta... (A Nena) Ele estava morto
nos meus braços, Nena, e eu pedindo pra ele dormir... (A Lorde) Isso, mon choux, dorme bem à rosa divina... precisa tirar
cera e deitar verde...[67] (Lorde
Bundinha escorrega lento, rola no chão, ainda caído. Longo silêncio) (p.
70-71)
A morte de Bundinha faz com que
Manguari retome sua vida normal, sua luta cotidiana. O mesmo não acontece com
Luca que, definitivamente, se entrega às drogas e ao esoterismo, não frequenta
a escola. Manguari tenta uma aproximação e se esforça mesmo em apoiar o filho:
Manguari - (...) eu não tenho nada contra
experimentar coisas novas, entende, Luca? Não tenho nada contra... mas é que o
mundo você acha que é só de coisa nova, ele é cheio de seus velhos problemas,
você não pode frequentar um colégio, eu sei, fica essa ociosidade, eu sei...
mas eu acho que você está se abandonando muito, filho, não pode se abandonar
assim (...) você podia fazer uns cursos que tem aí nesse Museu de Arte Moderna,
estudar inglês, taquigrafia, você não lê um livro, filho! Isso não pode
continuar, esse desinteresse, a gente precisa se encher de problemas, filho, e
não fugir deles, entende? (p. 71-72)
O diálogo não se estabelece mais entre os dois. São mundos
completamente diversos. O conflito chegou ao seu limite. Luca pensa na
civilização como um fracasso, Manguari continua acreditando cada vez mais no
homem. A relação dos dois é patética e dolorosa. Luca afirma mesmo que não está
“largado” da vida, que tem atuado politicamente:
Luca - (...) ontem estive na porta de uma fábrica
de inseticida, fui explicar pros operários que eles não devem produzir isso...
vou em fábrica que produz enlatado... (Manguari
vira-lhe as costas) ... eu é que lhe pergunto! Não quer deixar a
repartição, o ônibus 415, pai, e tentar viver uma vida nova? (Silêncio; Manguari não se volta) ...
pai?... que é isso, pai? Está chorando?
Manguari – (Chora
quase convulsivo) ... Não... não é nada... é que realmente a gente está tão
diferente... (Luca vai até Manguari,
comovido, abraça-se com ele)
Luca – ... Ô, pai... ô, pai... que é isso?... Ô,
pai...
Manguari – ... Na porta das fábricas pedir pros
operários largarem seus empregos, são tão difíceis de conseguir, rapaz! (Chora)
Luca – ... Ô gente doce... não fica assim... não
fica assim... (Abraçados um tempo)
(p. 72-73)
Os ecos do passado, através da recorrência da morte de
Bundinha e da imagem de Camargo Velho e sua crença de que novas perspectivas estão
se abrindo a partir da entrada do Brasil na guerra contra a Alemanha, fecham a
cena, assim como que resumindo o conflito de pai e filho: a constatação por
parte de Manguari da falência da relação com Luca e, contrariando o discurso de
Camargo Velho, a falta de perspectiva de uma nova vida naquela família:
Camargo Velho - ... É preciso fazer campanha de
solidariedade às famílias dos presos políticos, companheiros... está havendo
uma grande ascensão do movimento de massas com a campanha da entrada do Brasil
na guerra contra a Alemanha... acho que este vai ser o nosso ano... as
perspectivas são todas favoráveis a nós! (p. 73)
CENA 9
Realidade e ficção
se confundem: um velado elogio aos dominicanos
Novamente Vianninha visa a estabelecer um vínculo do dramático
com a realidade histórica: Camargo Moço traz a notícia de que os frades
dominicanos vão aceitar os alunos expulsos do Liceu. Eles podem continuar os estudos e não precisam cortar os cabelos.
Os dominicanos dramátizados demonstram assim, uma relação com a realidade objetiva
a partir de sua contraposição ao regime vigente, o que de fato aconteceu quando
apoiaram a luta contra a ditadura e, particularmente, a Ação Libertadora Nacional, comandada por Carlos Marighella[68].
Camargo
Moço - ... ele é o prior dos
frades dominicanos.. que tinham acompanhado todo nosso caso... só vieram falar
agora porque tinham de fazer consultas... (p. 73)
Porém, o que parecia uma solução para todos os conflitos, alimenta
ainda mais o confronto entre Manguari e Luca, que se recusa a voltar a estudar
e prestar o vestibular, ele está totalmente voltado a uma experiência de vida
natural, o que, na visão de Manguari, demonstra um absurdo individualismo.
Manguari reage, não pode mais aceitar que seu filho continue “dando esse espetáculo
de enfarado da civilização”, ao que Luca se contrapõe:
Luca - ... mas vou continuar dando esse
espetáculo, sim! É só isso que eu quero aprender, não tenho nada pra aprender
nas universidades de vocês, nada! Mas nada! Vocês lá, ensinam essa vida que
está morta, essa vida de esmagar a natureza, de super-homens neuróticos, lá
vocês querem dominar a vida, eu quero que a vida me domine, vocês querem ter o
orgulho de saber tudo, eu quero a humildade de não saber, quero que a vida
aconteça em mim... não é revolução política, é revolução de tudo, é outro ser!
Como os cristãos... é como foi... (p.74)
A decepção de Manguari não é apenas
pelo fato de Luca não querer mais estudar, é sim, pelo fato de ele voltar-se
cada vez mais para dentro de si mesmo. Mesmo o discurso em defesa da natureza
proferido por Luca, parece a Manguari uma volta para o individualismo, ele não
vê no filho uma prática política em defesa da natureza. Um discurso bem
articulado que se perde em si mesmo. Luca não consegue pensar em termos
sociais, ele quer “que a vida aconteça em mim”, pensa em “revolução de tudo”[69],
em “outro ser”. Ele expulsa Luca de casa:
Manguari - ... Não posso mais, não
posso mais viver com uma pessoa que me olha como se eu estivesse morto! Como se
todas as pessoas que estão aí fora gemendo no mundo fosse a mesma coisa! Como
se não houvesse dois lados! E eu sempre estive ao lado dos que tem sede de
justiça, menino! Eu sou um revolucionário, entendeu? Só porque uso terno e
gravata e ando no ônibus 415 não posso ser revolucionário? Sou um homem comum,
isso é outra coisa, mas até hoje ferve meu sangue quando vejo do ônibus as
crianças na favela, no meio do lixo, como porcos, até hoje choro, choro quando
vejo cinco operários sentados na calçada, comendo marmitas frias, choro quando
vejo vigia de obras aos domingos, sentado, rádio de pilha no ouvido, a imensa
solidão dessa gente, a imensa injustiça. Revolução sou eu! Revolução pra mim já
foi uma coisa pirotécnica, agora é todo dia, lá no mundo, ardendo, usando as
palavras, os gestos, os costumes, a esperança desse mundo, você não é o
revolucionário, menino, você, no meu tempo, chamava-se Lorde Bundinha que nunca
negou que era um fugitivo, você é um covardezinho que quer fazer do medo de
viver, um espetáculo de coragem! (p. 75)
É importante destacar que Manguari não apenas “chora” ou
lamenta quando se depara com a injustiça social, ele luta para transformar essa
realidade. Todo o processo de luta contra as ordens de Castro Cott fizeram
Manguari acreditar que Luca talvez fosse um seguidor de suas lutas sociais e, o
que ele percebe é justamente o contrário, Luca cada vez mais se afastando dos
problemas em vez de enfrentá-los, se alienando da realidade social. Luca não
escuta calado. Reage agressivamente e chega mesmo a invadir o campo pessoal do
pai:
Luca - Você pensa que é um revolucionário, é a doce
imagem que você faz de você, pai, mas você é um funcionário público, você
trabalha para o governo! Para o governo! Anda de ônibus 415 com dinheiro
trocado para não brigar com o cobrador e que de noite fica na janela, vendo uma
senhora de peruca tirar a roupa e ficar nua! (Manguari dá um tapa na cara de Luca, avança para ele, Nena se
interpõe, ficam embolados) (p. 75)
Luca, que anteriormente discutiu com
o pai por sentir-se invadido em seus assuntos pessoais, expõe para todos,
inclusive para Camargo Moço, aquilo que era fruto da sua cumplicidade: os
segredos em relação à vizinha[70].
O que resta para Manguari são os ecos das vozes de 666 e Lorde Bundinha,
lembrando-o de quando foi expulso de casa. Manguari desiste do confronto físico
e sai. O que se vê a seguir é um novo confronto entre Luca e Camargo Moço, com
um acusando o pai e o outro defendendo o revolucionário comunista:
Luca – (...) meu pai tem que
descarregar em alguém ele ter vivido sem ter deixado marca de sua presença...
Camargo Moço – Ô Luca, ô Luca, não é
isso não, teu pai não deixou marca? Mas cada vez que começa uma assembleia num
sindicato, à luz baça, teu pai está lá, cada vez que um operário, chapéu na mão,
entra na Justiça do Trabalho, teu pai está lá, cada vez que, em vez de dizer
países essencialmente agrícolas, dizem países subdesenvolvidos, teu pai está
lá, cada vez que dizem imperialismo, em vez de países altamente
industrializados, teu pai está lá, cada vez que fecham um barril de petróleo na
Bahia, teu pai está lá... teu pai é um revolucionário, sim... (p. 76)
CENA 10
Ode para um
incansável lutador
Pai e filho se despedem “sem
rancor...” Não há mais o que falar, o que discutir...
Luca - ... tchau, pai... (Manguari em silêncio faz o relatório)... pai... estou saindo sem
rancor... de coração leve... sem rancor, pai...
Manguari – (Tempo)...
Sem rancor...
Luca - ... Posso lhe dar um beijo? (Manguari quieto. Luca vai até ele lento.
Beija a face de Manguari. Tempo.) Tchau...
Manguari - ... Até logo, Luís Carlos... (p. 77)
Como observou Cholokhov, “o
humanista não é aquele que lamenta a pobre vítima e deplora a existência do
crime na terra, o humanista é aquele que luta, que ajuda a desviar a mão do
criminoso a impedi-lo de prejudicar”[71].
Manguari, sempre fiel
aos seus compromissos políticos, liga para Marco Antônio, companheiro de lutas,
confirmando uma reunião para defender interesses de pensionistas, pois a luta
não pode parar, “eu sempre estive ao lado dos que têm sede de justiça” (p. 75):
Manguari - ... Marco Antônio? Custódio... como vai? [...]
os pensionistas do Departamento de Limpeza Urbana não estão recebendo pensão há
dois meses... que há gente em situação desesperadora... vamos reunir agora à
noite, você pode? então no mesmo lugar da semana passada, está bem? às oito..
um abraço, Marco... (p. 77)
As últimas palavras da peça são de
Camargo Velho, que anuncia o fim da guerra e a redemocratização do país, quando
o PCB conquista uma bancada significativa na Assembleia Constituinte de 46:
Camargo Velho - ... Agora, com o fim da
guerra contra a Alemanha, há grandes perspectivas de ascensão do movimento
democrático... esse vai ser o nosso ano, companheiro!... as perspectivas são
todas favoráveis a nós! (p. 77).
A música tema fecha o
espetáculo:
Se tu queres ver a imensidão do céu e mar
Refletindo a prismatização da luz solar
Rasga o coração vem te debruçar
Sobre a vastidão do meu penar
5 – RASGA CORAÇÃO RESISTE AINDA
Acreditamos que conseguimos demonstrar, ainda que
parcialmente, que a relação espaço/tempo é um dos principais recursos
dramatúrgicos de Rasga coração. Através
da manipulação desses dois elementos, Vianninha consegue traçar um painel
histórico do movimento político e histórico brasileiros, no período de
aproximadamente quarenta anos. Esse resgate dramatúrgico nos possibilita
compreender um pouco mais a nossa história.
Ao aproximar e contrapor os dois momentos históricos,
Vianninha, em nosso entendimento, tinha clareza do que pretendia: mostrar as
transformações políticas através do comportamento de um militante comunista que
viveu intensamente os dois períodos: nos anos 30, o PCB passa por uma
transformação radical na sua linha política, da frente democrática da ANL para
o radicalismo do Levante de 35; nos anos 60, que irão desembocar na década
abordada pela peça, o processo é inverso, de uma posição radical do Manifesto de Agosto à política de
transição pacífica da Declaração de Março.
A partir desse processo, forma-se a “personalidade política” de Manguari: em ambos
os momentos o personagem teve que passar por um processo de adaptação a uma
nova realidade política. Neste sentido, entendemos, com Krapivine que
A interpretação dialética e materialista do
tempo e do espaço tem tanto importância científica e teórica como também
prática, pois toda a actividade social não é senão a ação recíproca entre os
homens e os fenómenos e processos do mundo que possui características temporais
e espaciais. Estas características determinam os meios, as formas, os ritmos e
as direcções da prática social e, portanto, é preciso considerá-las no
trabalho, na vida política e social. O factor social determina em medida
considerável os meios de luta de libertação. O meio geográfico desempenha um
papel importante na distribuição e no desenvolvimento das forças produtivas. O
espaço ocupado pelo país está bastante ligado ao factor tempo. Os factores de
espaço e tempo devem ser considerados na elaboração estratégia económica, nas
transformações sociais e culturais, na criação de um sistema seguro de defesa
do país contra as agressões imperialista, etc. (1986, p. 104)
A apropriação do conceito de cronotopo desenvolvida por Bakhtin
foi fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho, pois nos proporcionou
um entendimento mais apurado e uma maior capacidade de relacionar os elementos tempo
e espaço e tratá-los como conceito literário aplicado à dramaturgia:
No cronotopo
artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo
compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se
artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento
do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço,
e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de
séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN, 1990, p. 211)
Pudemos registrar como o tempo/espaço influenciou, chegando
mesmo a determinar comportamentos. Manguari Pistolão sofre a ação do cronotopo na sua formação política,
ideológica e psicológica, nas suas relações cotidianas e, particularmente, na
sua relação com o filho, que é o seu antagonista na peça.
A peça inicia-se e logo nas primeiras cenas Manguari é
expulso de casa, indo para o espaço externo dos anos 30; em 72 ele expulsa o
filho de casa no final da peça. Ela termina como começou: espaço externo e o
tempo vão ser os grandes formadores de Luca, assim como o foram para o pai. Mais
uma vez reafirmamos: Rasga coração
não é uma peça que se esconde sob o conflito de gerações para se desviar da
luta de classes. Sob esse aspecto, gostaríamos, aqui, de manifestar nossa
posição em relação à análise do crítico
teatral Edelcio Mostaço, em seu artigo Rasga
coração, fígado, cérebro...[72]
Mostaço afirma que o personagem
Manguari Pistolão “não vendo saídas de ação no presente, refugia-se num passado
mais honroso”, e ainda, que a peça “operando o deslocamento da importância da
luta para dentro do conflito de gerações, introduz com sutileza uma obliteração
na teoria revolucionária, ao reverter o foco das atenções para longe da luta de
classes”. Não concordamos porque acreditamos que a análise de Mostaço está
contaminada por uma necessidade de afirmação político-partidária, que julgamos
não ser adequada numa análise dramatúrgica.
Fica-nos
bastante evidente que o resenhista ressente de uma análise mais objetiva e
menos apaixonada. Marcado, desde suas epígrafes, por um anticomunismo confesso[73], o texto
se preocupa muito mais em afirmar, através da negação de uma história
político-partidária do movimento comunista no Brasil, suas posições e suas
visões de uma esquerda mais vinculada ao Partido dos Trabalhadores. Parece-nos,
e isso pode ser detectado no artigo, que o PT é a única experiência existente comprometida
com a classe operária e verdadeiramente revolucionária. O autor pretende, ao
nosso juízo, negar, assim, a trajetória de lutas e conquistas do PCB.
Ao
partidarizar a discussão, buscando negar o valor da obra, visa a firmar uma
posição. Sua argumentação cai no vazio e traz para a superfície um
enfrentamento que nos parece desrespeitosa com a história de homens que lutaram
e muitas vezes perderam suas vidas em favor de uma sociedade mais justa no
Brasil. A história de luta da classe operária brasileira não se inicia em 1980
com a fundação do PT; o PT, sim, é resultado do acúmulo de lutas do movimento
operário no Brasil.
A posição
de Mostaço ao afirmar que Manguari busca “refúgio num passado mais honroso”,
aproxima-se em muito da posição de Luca, ao final da peça, quando afirma que o
pai viveu sem deixar “marca de sua presença”. Manguari, no entanto, se mostra
comprometido com as lutas e as conquistas populares, seja da maneira mais
simples da indignação com a condição humana dentro do sistema capitalista, seja
lutando junto a associações de classe, seja contribuindo à sua maneira com a
luta do filho.
Existem
métodos diferenciados de luta política, mas entendemos que a questão
fundamental discutida na peça é a organização popular, muito mais acentuada do
que a questão operária e/ou sindical, propriamente dita. Rasga coração não é uma peça sobre o movimento operário brasileiro,
embora, a luta proletária perpasse todo o texto, está presente em cada cena,
mas não é a principal discussão a que se propõe. No contexto da peça, seja no
passado ou no presente, os personagens são colocados em situações extremadas de
luta contra regimes autoritários. A luta que se estabelece com maior vigor é a
luta pela liberdade, seja no período Vargas, seja na ditadura pós-64.
Afirmar que
Vianninha se utiliza da discussão sobre o conflito de gerações para “reverter o
foco das atenções para longe da luta de classes” nos parece, no mínimo, agir de
má fé sobre um texto onde a luta de classes está presente da primeira à última
página. Manguari, em momento algum de sua vida, abandonou ou traiu a classe
trabalhadora. A cada momento seu compromisso se ampliava, mesmo com as formas
de luta se modificando ao longo do tempo. Mostaço fica sozinho em sua crítica
solitária, nadando contra a corrente do sem-número de vozes favoráveis a Rasga coração, não só pelo que
representava em termos culturais e dramatúrgicos, mas também, na análise
profunda política da sociedade brasileira[74].
Por meio da realização de uma análise detalhada, nos parece
possível demonstrar que Rasga coração
é uma peça que se pauta por uma discussão profunda sobre a realidade histórica
brasileira. Embora o movimento operário não seja o cerne da discussão,
percebemos que as lutas e conquistas do trabalhador perpassa toda a peça. É uma
obra que pauta-se na discussão sobre a organização popular na luta contra
regimes de exceção, como foi o caso do Estado Novo e da Ditadura Militar
pós-64.
Sob esse aspecto, acreditamos que Rasga coração não se caracteriza, como boa parte da obra de Vianninha
assim o é, como uma obra imediatista, que visava a um único objetivo que servia
essencialmente àquele momento histórico. A análise da obra nos mostrou
claramente que, mesmo localizada num tempo e espaço que não correspondem mais à
realidade atual, nos mostra o homem brasileiro como ator principal na
construção da história.
Houve, é claro, uma mudança de foco nas nossas lutas, não
enfrentamos mais ditaduras, mas a luta pela sobrevivência e pela transformação
visando a uma sociedade mais justa continua na ordem do dia. Se hoje não
enfrentamos mais as ditaduras, foi porque homens como Manguari Pistolão
dedicaram todas suas horas a transformar a realidade. O movimento operário hoje
é suficientemente organizado para elaborar sua pauta de reivindicações e suas
formas de luta. Os partidos políticos gozam de liberdade de ação. Podemos ler e
encenar uma obra como Rasga coração,
que foi proibida pela Censura Federal por aproximadamente seis anos, impedindo
o seu autor de assistir a sua encenação[75].
Todas essas conquistas foram resultado de lutas como as que a
peça nos mostra. Rasga coração é uma
peça atual porque nos denuncia parte da nossa história; é atual porque coloca
no palco o homem brasileiro pleno, com seus trejeitos, suas contradições, seus
desejos; é atual porque nos mostra um tempo de arbítrio e nos lembra que
devemos lutar para garantir que não volte mais; é atual porque nos aponta a
luta e a organização política como única alternativa para transformação da
sociedade.
Nossa pesquisa no mostrou também, como objetivo secundário,
que o PCB teve uma atuação destacada na história republicana brasileira durante
as ditaduras e os processos de redemocratização do país, nos dois momentos
abordados. Seus representantes dramáticos, Manguari, Camargo Velho e Camargo
Moço, demonstram, ao longo da peça, uma consciência apurada da realidade brasileira
e das possibilidades de luta do povo.
Para finalizar,
gostaríamos de registrar o nosso imenso prazer em poder debruçar sobre uma peça
da envergadura de Rasga coração e
analisar a obra de um autor como Oduvaldo Vianna Filho, que foi e continua sendo
uma referência para o trabalho que desenvolvemos no teatro. E delegamos a ele
nossas últimas palavras escritas em um prólogo para Rasga coração, que ficou inédito por muitos anos, mesmo com a
publicação da peça:
(...) queremos
apresentar uma psicologia de aspiração de um mundo melhor
e o queremos
dividido, mais dividido.
não o queremos
uno, inteiro, soberbo.
nós o queremos
dividido.
A única maneira de
negar a nós mesmos
é negar o mundo
que nos obriga a ser contra nós
e negar o mundo
não é virar-lhe as costas
esta é uma maneira
de confirmá-lo
nem é inventar um
novo homem neste mundo velho
a única maneira de
negar o mundo
é nos dividirmos,
dolorosamente, sofrer nossa divisão
usarmos um homem
para sobreviver e outro para lutar contra essa sobrevivência
Não podemos deixar
de ser nós mesmos
a não ser que não
possamos mais ser nós mesmos
Não podemos deixar
de ser hipócritas, medíocres,
individualistas,
medrosos,
se não terminam as
raízes da hipocrisia, do isolamento, do medo
não queremos
portanto exortá-lo
a deixar de ser
como é
queremos provar
que você tem que ser como é
que a sua
psicologia não é a sua escolha,
é o seu destino, é
o seu fardo,
a sua raiz,
estamos aqui para
nos contemplar a nós mesmos
alegre e
ferozmente
porque temos
certeza que o homem é o único ser capaz de suportar a sua divisão interior
e desfazer-se do
homem dentro de si que não o deixa ser humano
estamos aqui para
festejar isso
e para
identificar esse homem oculto em nós (PEIXOTO, 1983, p. 191)
1936 - nasce no Rio de Janeiro,
Oduvaldo Vianna, filho de Oduvaldo Vianna e Deocélia Vianna. Com 3 meses, atua
no filme Bonequinha de Seda, de Oduvaldo Vianna, seu pai.
1938 - atua no filme Alegria, de Oduvaldo Vianna, seu pai.
1939 - transfere-se para Buenos Aires, acompanhando a família.
1941 - retorna ao Rio de Janeiro e transfere-se para São Paulo,
acompanhando a família.
1946 - escreve a história Zé Galinha ganha no Boxe, Perde no Amor, mas
não passa do segundo capítulo.
1953 - ingressa na Faculdade de Arquitetura, da Universidade Mackenzie, e
estuda até o 3o. ano.
1954 frequenta o Teatro Paulista
do Estudante, dirigido por Ruggero Jacobbi.
1955 atua, pela primeira vez, na
peça Rua da Igreja, de Lennox Robinson; e, posteriormente, em Rapto
das Cebolinhas de Maria Clara Machado; Escola de Maridos, de Molière,
além de outras produções do Teatro Paulista do Estudante.
1956 - permanece em São Paulo, e os pais retornam ao Rio de Janeiro. Atua profissionalmente, o Teatro Paulista do
Estudante funde-se ao Teatro de Arena de São Paulo, em Ratos e Homens, de Steinbeck; A Margem da Vida, de
Tennessee Williams; Só o Faraó Tem Alma, de Silveira Sampaio; Marido Gordo, Mulher
Chata, de Augusto Boal; e Juno e o Pavão, de Sean O'Casey, quando recebe o prêmio Saci e
Governador do Estado, como melhor ator coadjuvante.
1957 - ingressa na Faculdade de
Filosofia, da Universidade Mackenzie, mas não cursa. Casa-se com Vera Gertel .
Escreve Bilbao, via Copacabana (teatro), e recebe o prêmio da Caixa Econômica Federal, por
concurso.
1958 - nasce o primeiro filho, Vinícius Vianna. Atua em Eles Não Usam Black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri; Gente Como a Gente, de Roberto Freire; e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, produções do Teatro de Arena de São Paulo.
1959 - escreve, e é encenada em São Paulo e no Rio de Janeiro, Chapetuba Futebol Clube, participando como ator , Recebe, então, os prêmios Saci, Governador do Estado e Associação Brasileira de Críticos Teatrais, no Rio de Janeiro, como a melhor peça do ano.
1960 - desliga-se do Teatro de Arena de São Paulo, e retorna ao Rio de Janeiro.
1961- escreve, e é encenada, A Mais Valia Vai Acabar Seu Edgar, sob a direção de Francisco de Assis. Funda o Centro de Cultura Popular, órgão cultural da União Nacional dos Estudantes, juntamente com Leon Hirzman e Carlos Estevam. Escreve várias peças curtas (autos) para encenações CPC, entre elas, Brasil Versão Brasileira, e percorre o Brasil inteiro, dentro da proposta do CPC.
1962 - atua no filme Cinco Vezes Favela, no episódio dirigido por
Carlos Diegues, 1963 escreve Quatro Quadras de Terra (teatro). Recebe, então,
o prêmio Latino-Americano de Teatro, da Casa de las Américas, de Havana, por concurso.
Carlos Diegues, 1963 escreve Quatro Quadras de Terra (teatro). Recebe, então,
o prêmio Latino-Americano de Teatro, da Casa de las Américas, de Havana, por concurso.
1964 - escreve as tele-peças O Matador e O Morto do Encantado Saúda e Pede Passagem. Com a primeira, recebe o prêmio de melhor peça para televisão, em concurso no Rio de Janeiro e São Paulo. Funda o Grupo Opinião, juntamente com Denoy de Oliveira, Armando Costa, Ferreira Gullar, Thereza Aragão, Pichin Plá, Paulo Pontes e João das Neves. Escreve, e é encenado, o show Opinião, juntamente com Armando Costa e Paulo Pontes.
1965 - atua no filme O Desafio, de Paulo Cesar Sarraceni. Atua em Liberdade, Liberdade, de Millor Fernandes e Flávio Rangel. Escreve Moço em Estado de Sítio (teatro). Escreve e é encenada, Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, juntamente com Ferreira Gullar, participando como ator. Recebe, então, os prêmios Molière, no Rio de Janeiro, e Saci e Governador do Estado, em São Paulo, como a melhor peça do ano.
1966 - escreve, e é encenado, o show Telecoteco Opus No. 1, juntamente com Thereza Aragão . Escreve Os Azeredos Mais os Benevides (teatro), que recebe o premio Menção honrosa no concurso do Serviço Nacional de Teatro.
1967 - escreve, e é encenada, Meia Volta Volver, sob a direção de Armando Costa, na qual participa como ator.
1968 - Conhece Maria Lucia Marins. Atua em A Saída? Onde Fica a Saida, de Antônio Carlos Fontoura, Armando Costa e Ferreira Gullar. Escreve, c é encenado, o musical Dura Lex Sed Lex no Cabelo só Gumex, sob a direção de Gianni Ratto, no qual participa como ator. Trabalha para a televisão, juntamente com Paulo Pontes, na produção do programa de Bibi Ferreira. Escreve Papa Highirte (teatro), que recebe o 1º. prêmio do concurso do Serviço Nacional de Teatro, e é, imediatamente, censurada.
1969 - atua em A Comédia dos Erros, de William Shakespeare. Escreve, e é encenada, Brasil e Cia., juntamente com Armando Costa, Ferreira Gullar e Paulo Pontes. Escreve A Longa Noite de Cristal, que recebe o prêmio Coroa de Teatro, por concurso.
1970 - Casa-se com Maria Lucia Marins. Atua no filme Um Homem Sem Importância, de Alberto Salvá. Escreve, e é encenada, Em Família, sob a direção de Sérgio Brito. É encenada, em São Paulo, A Longa Noite de Cristal, sob a direção de Celso Nunes, que recebe o prêmio Molière, como a melhor peça do ano. Escreve Corpo a Corpo (teatro).
1971 - escreve o roteiro para o filme Em Família, sob a direção de Paulo Porto, que recebe o prêmio Medalha de Prata no Festival Internacional de Moscou. É encenada, em São Paulo, Corpo a Corpo, sob a direção de Antunes Filho.
1972 - nasce o segundo filho, Pedro Ivo Marins Vianna. Reescreve, e é encenada, em São Paulo, Em Família, que passa a ser Nossa Vida Em Família, sob a direção de Antunes Filho. Escreve, e é encenada, Alegro Desbum, sob a direção de José Renato. Produz adaptações de peças para a televisão, como Medéia, Noites Brancas, A Dama das Camélias (juntamente com Gilberto Braga), Mirandolina e Ano Novo, Vida Nova.
1973 - nasce o terceiro filho, Mariana Marins Vianna. Escreve o seriado para a televisão A Grande Família, juntamente com Armando Costa.
1974 - escreve as tele-peças para a televisão, Enquanto a Cegonha Não Vem e Turma, Minha Doce Turma. Escreve o roteiro para o filme O Casal, juntamente com o seu diretor Daniel Filho. Escreve Rasga Coração (teatro),
que recebe o 1º. prêmio no concurso do Serviço Nacional
de Teatro, e é, imediatamente, censurada. Viaja aos Estados Unidos da América
para tratamento de saúde. Morre, no Rio de Janeiro, no dia 16 de julho.
1975 - é encenada, no Rio, Corpo a Corpo, sob a direção de Aderbal
Júnior.
1976 - é encenada, no Rio, A
Longa Noite de Cristal, sob a direção de Gracindo Júnior.
1977 - é editado, pela Rede Globo
de Televisão, o Festival de Verão de Oduvaldo Vianna Filho, reprise de todas as
telepeças de sua produção.
1979 – Rasga
Coração e Papa Highirte são
liberadas pela Censura. Papa Highirte, é traduzida para o francês, por Jacques Thieriot, e
levada ao ar pela Rádio France Culture. Papa Highirte é encenada, no
Rio, sob a direção de Nelson Xavier, numa produção do Teatro dos 4. Rasga Coração tem sua estreia nacional,
sob direção de José Renato, em 21 de setembro de 1979, no Teatro Guaíra, em
Curitiba, PR.
NOTAS
[1] Encontraremos duas grafias para Viana ou Vianna, Vianinha ou Vianninha. Optamos pela grafia com dois “enes”, pois o diferenciava do pai – Oduvaldo Viana -, grafado com um “ene” só. Contudo, respeitaremos sempre a grafia original, quando se tratar de citações.
[2] Arthur Miller (1915-2005), dramaturgo norte-americano, arguto crítico da sociedade capitalista e do american dream. Além de A morte do caixeiro viajante (1949), considerada sua peça mais importante, escreveu, dentre outras, Todos são meus filhos (1947), As bruxas de Salem (1953) e Depois da queda (1964). Ver: MILLER, Arthur. A morte do caixeiro viajante. Trad. Flávio Rangel. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
[3] Jorge Andrade (1922-1984), um dos mais importantes dramaturgos brasileiros. A moratória, sua principal obra trata do processo de formação e decadência da burguesia rural paulista, reunida no “ciclo” Marta, a árvore e o relógio, composto de dez peças que contam a saga de uma família, desde “fins do século XVIII”, com As confrarias, até a atualidade com O sumidouro. Jorge Andrade também escreveu telenovelas, dentre elas: Os ossos do barão (1973) e O grito (1975). Ver: ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio. São Paulo: Perspectiva, 1970.
[4] Considerado por muitos como o mais importante dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues (1912-1980) deixou sua marca definitiva no teatro brasileiro com Vestido de noiva (1943). A peça, absolutamente revolucionária em sua estrutura dramatúrgica para os padrões da época, teve sua direção confiada a Ziembinski, que determinou uma ruptura não só estética, mas também temática com tudo que se fazia no nosso teatro. Algumas de suas peças: Álbum de família (1946), Os sete gatinhos (1958), Boca de ouro (1959) e Toda nudez será castigada (1965). Nelson Rodrigues escreveu também crônicas, contos e romances. Várias de suas obras foram adaptadas para o cinema. Cf: LINS, Ronaldo Lima. O teatro de Nelson Rodrigues: uma realidade em agonia. Rio de Janeiro: Francisco Alves; Brasília: INL, 1979; MAGALDI, Sábato. Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004; PIMENTEL, A. Fonseca. O teatro de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Margem, 1951.
* As datas entre parênteses referem-se às estreias dos espetáculos.
[5] A questão da autocrítica será novamente discutida e aprofundada no capítulo Exercitando a autocrítica.
[6] Ver: MORAES, 1994, p. 240.
[7] Trecho do poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias.
[8] Como exemplo pode-se citar Se correr o bicho pega se ficar o bicho come, em parceria com Ferreira Gullar, em que os autores buscam na literatura de cordel a forma versificada do texto. Também podemos identificar uma profunda influência nordestina em Quatro quadras de terra e Os Azeredo mais os Benevides.
[9] A peça narra a relação de um casal em crise que revê sua relação através do flashback e reavalia seus erros e suas contradições. Essa peça permaneceu inédita desde 1966, ano em que foi escrita, sendo somente revelada em 1984, numa publicação coordenada pelo crítico teatral polonês/brasileiro Yan Michalski.
[10] Trajetória de um ditador latino-americano no exílio, suas lutas para voltar ao poder enquanto repensa seu passado político quando uma insurreição promoveu sua desestabilização e sua queda.
[11] A utilização dos recursos épicos brechtianos são marcas recorrentes na dramaturgia de Vianninha que, assim como o encenador e dramaturgo alemão, entendia o teatro como veículo de conscientização político-social.
[12] Corpo a corpo foi escrita em 1970 e, segundo Dênis de Moraes, o texto é sobre um personagem que se dá “conta de que sua vida é uma grande mentira” e “Vivacqua hesita em dar um rumo à sua existência mais coerente com seus ideais, afogado que está nas vantagens materiais do emprego”. É importante ressaltar que em 1972 Vianninha escreveria Alegro desbum, onde o personagem, Buja, abandona um grande emprego para viver sua vida plenamente – desbundar –, fazendo o caminho inverso ao de Vivacqua.
[13] Entrevista ao Jornal do Commércio. Apud: MORAES, Dênis de. Vianinha - cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991.
[14] Grupo Teatro de Arena, de São Paulo, que teve atuação destacada nos anos 1950 e 60. Teve sua direção inicial a cargo de José Renato, posteriormente, Augusto Boal assume a liderança. Foi responsável pela renovação do teatro brasileiro, do qual fizeram parte os mais destacados nomes do nosso teatro, entre eles, Gianfrancesco Guarnieri, Vianninha, Milton Gonçalves, Paulo José, Chico de Assis. Em 1958, aproveitando o sucesso de Eles não usam black-tie, promove o Seminário de Dramaturgia, que fomentou o surgimento de vários autores nacionais. Ver: MOSTAÇO, 1982;
[15] CPC - Centro Popular de Cultura da UNE - União Nacional dos Estudantes que, até 64 desenvolveu, através das diversas manifestações artísticas e culturais, um processo de conscientização política e social, no qual Vianinha teve uma participação ativa e destacada. Ver: BERLINCK, 1984; HOLLANDA, 1981; PEIXOTO, 1983; PEIXOTO, 1989.
[16] Teatro Opinião, do Rio de Janeiro, grupo que reunia nomes como Vianninha, Ferreira Gullar, Nara Leão, Zé Kéti, surge com uma exposição Opinião 65, de artes plásticas, para depois estrear, em 1966, uma peça de Vianninha e Ferreira Gullar, Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Depois do golpe de 64 e a impossibilidade de se continuar o projeto do CPC, Vianninha opta por fazer um teatro voltado para a classe média, que julgava estar narcotizada e necessitando de ser despertada da inércia provocada pelo golpe. Um momento importante do grupo foi o Show Opinião. Ver: MOSTAÇO, 1982.
[17] Vários artigos escritos por Vianinha foram reunidos em PEIXOTO (1983).
[18] Fernando Peixoto: “Eu me lembro de duas preferências nacionais às quais [Vianninha] se manteve fiel: uma foi obrigado a abandonar, cigarro Continental sem filtro. Outra nunca abandonou: o Partido Comunista Brasileiro.” (PEIXOTO, 1983, p. 12-13)
[19] Cf. MICHALSKY, 1984, p. 9.
[20] Alguns projetos para a televisão, particularmente para a Rede Globo, foram desenvolvidos em parceria com Armando Costa, Paulo Afonso Grisolli, entre outros. O exemplo mais marcante foi o seriado A grande família, de grande sucesso na época. A série foi reformulada e, atualmente, está em cartaz, em novo formato.
[21] O jornalista e crítico teatral Yan Michalski corrobora nossa opinião. Ao comentar a proibição definitiva da peça Rasga coração - até então o que havia era uma proibição branca -, declara que “além do rude golpe que desfechou numa admirável manifestação da inteligência nacional, a decisão da censura deixa mais uma vez patente a inexplicável contradição de um sistema capaz de atribuir a uma obra, através de um órgão do MEC, a mais alta e honrosa premiação oficial existente no setor, para a seguir declarar a mesma obra oficialmente maldita e proscrita, através de um órgão do Ministério da Justiça”, e acrescenta que “enquanto contradições como esta continuarem se manifestando, será difícil conferir credibilidade a todo o esforço financeiro, representando um investimento sem precedentes, que o atual Governo vem empreendendo a título de incentivo às atividades culturais.” Ver: Michalski, Yan. De rasgar o coração. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29/5/1977, Cad. B, p. 9. Apud: PATRIOTA, 1999, p. 29-30.
[22] Lembro-me, nos meus primeiros anos de teatro, quando o dramaturgo e encenador jota Dângelo, ao se referir ao “fim da censura”, afirmar: “Só acredito no fim da censura, quando liberarem Rasga coração.” Esse era o clima e a importância política e simbólica que se conferia à peça.
[23] O concurso de dramaturgia a que a autora se refere é o Concurso de Dramaturgia do SNT. A peça Papa Highirte, assim como viria a acontecer com Rasga coração, também recebeu o primeiro do Concurso de Dramaturgia do SNT e também foi proibida pela Censura Federal. Em 68 o concurso foi interrompido com a vitória de Papa Highirte e, em 1974, foi reeditado, por ironia, com a vitória de uma peça de Vianninha, Rasga coração.
[24] A autora esqueceu-se de citar a Semana do Proibido, ato de resistência, reação e desobediência à censura, ocorrido em Belo Horizonte, em 1978, momento em que foram lidas, encenadas e distribuídas (vendidas ao preço de custo do “xerox”) cópias de peças teatrais proibidas, além de apresentação de filmes, música e poesia, também proibidos. A Semana do Proibido aconteceu no antigo Teatro do DCE da UFMG, onde hoje funciona o Cine Belas Artes. Eu, particularmente, adquiri um “exemplar” de Rasga coração por ocasião do evento mencionado (Adendo 1).
[25] São aceitas as duas grafias: cronotopo ou cronótopo. Nas citações, seguiremos sempre a determinada pelo autor. Adotaremos, no entanto, cronotopo (paroxítona) por nos parecer mais sonora e melhor absorvida, além de ser a mais comumente utilizada por comentadores de Bakhtin.
[26] Entendemos, aqui, a moral como conjunto de valores que orienta o comportamento do personagem, regido pelas relações sociais, pois, “toda a moralidade é determinada social e historicamente (...) O conteúdo objectivo da moral traduz o carácter das relações sociais, concretamente das relações de propriedade dos meios de produção, da interacção entre diferentes grupos sociais e classes, das formas de distribuição e troca, etc.” (TITARENKO, 1982, p. 8 – grifado no original)
[27] Ver: EAGLETON (2011, p. 37).
[28] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Contribuição à crítica da economia política. Apud: EAGLETON (2011, p. 17).
[29] No caso das cenas do presente, a instituição escola, aqui dirigida por um remanescente da Ação Integralista, Castro Cott, é colocada como representação do poder militar que assumiu o poder em 1964.
[30] Personagem do conto Funes, o memorioso, de Jorge Luis Borges, possuidor de memória prodigiosa, não conseguia sequer pensar: “Suspeito, contudo, que não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”. Ver: BORGES, Jorge Luis. Ficções. 3ª. reimpressão. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[31] Na verdade, o passado de Manguari Pistolão tem seu início na década de 1910, quando seu pai, agente da saúde pública (pejorativamente conhecido como Cheira-cheira), levava-o, ainda criança, para acompanhá-lo em desinfecções de casas da cidade. Apesar de o período ser importante para a formação do caráter de Manguari, pois em determinado momento flagra o pai fazendo sexo com outra mulher, politicamente a atuação de Pistolão tem início já no final dos anos 20, já bem próximo da Revolução de 30.
[32] “Por burguesia nacional entende-se a fração da burguesia objetivamente interessada na exploração do mercado nacional e consequentemente, na eliminação do domínio dos monopólios imperialistas sobre esse mercado.” (SODRÉ, 1983, p. 326).
[33] Um dos pontos mais polêmicos das reformas de base propostas pelo Presidente João Goulart, se refere ao controle da remessa de lucros pelas empresas multinacionais sediadas no Brasil, ao país sede. A lei 4.131, de 3 de setembro de 1962 dizia:"... fica restringida a remessa de lucros do capital estrangeiro à (sic) uma taxa máxima de dez por cento ao ano sobre o capital investido, excluindo-se os lucros dos re-investimentos (sic) e capitalizados dentro do pais pelo Congresso Nacional", o que, obviamente, feria interesses não só das referidas empresas, mas também dos países de origem, particularmente os EUA. Segundo Skidmore, “a Lei da Remessa de Lucros foi outro pomo de discórdia nas relações do Brasil com seus credores estrangeiros. Em janeiro de 1964, Jango emitiu finalmente a regulamentação que punha em execução a Lei de Remessa de Lucros aprovada pelo Congresso em setembro de 1962. Seu decreto pôs ponto final na questão, que a Lei não deixara perfeitamente clara, da definição do capital-base sobre o qual incidia o cômputo das remessas. Os lucros de reinvestimentos deviam ser considerados como “capital nacional”, não capital estrangeiros, o que vinha a ser diretamente contrário ao ponto-de-vista muitas vezes manifestado pelos investidores estrangeiro e pelo Govêrno (sic) dos Estados Unidos (o embaixador norte-americano criticara sem rebuços a lei de 1962).” (SKIDMORE: 1988, p. 329). Ver também BANDEIRA, Muniz. O governo João Goulart – as lutas sociais no Brasil 1961-1964; CARNEIRO, Glauco. História das revoluções brasileiras.
[34] A dinâmica da peça, quando se compara seus dois atos, foi motivo de crítica de vários encenadores, dramaturgos e críticos teatrais, que consideram o segundo ato inferior ao primeiro. Tal argumento leva em conta o fato de o segundo ato ter sido ditado para sua mãe, num leito de hospital, quando Vianninha já se encontrava bastante debilitado pela doença. Em nosso entendimento, isso se explica pelo fato de no segundo ato, o conflito se voltar consideravelmente para o universo familiar, quando o conflito Manguari / Luca atinge seu auge. Entendemos que esse, claramente, era o objetivo do autor.
[35] No conceito brechtiano, o épico é o narrativo, o histórico, contrário ao dramático que seria o vivenciado, presentificado. Brecht propõe uma historicização da cena, o que proporcionaria um distanciamento crítico por parte do ator que levaria também o público a essa postura distanciada da cena. Acreditava que o distanciamento proporcionaria uma nova atitude por parte do público, que veria o espetáculo com um interesse naquilo que está acontecendo, o porquê de estar acontecendo daquela maneira e não com “o que vai acontecer”. Para tanto, desenvolveu uma série de recursos dramatúrgicos e também cênicos, que facilitariam levar o espectador a essa nova postura.
[36] Verfrendungseffect (efeito de distanciamento ou estranhamento; efeito-v ou efeito-d): conceito desenvolvido e aplicado pelo dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht (1898-1956) que propõe, através de diversas técnicas, provocar uma postura crítica do ator em relação ao personagem, tal postura estética levaria o público a uma tomada de consciência sobre as relações sociais apresentadas pela fábula.
[37] A relação público/personagem pode ser compreendida de duas maneiras distintas: aproximação, quando esteticamente a peça propõe uma aproximação emocional do público com o personagem; ou distanciamento, quando, também através de recursos técnicos, o público mantém uma distância crítica do personagem, o que lhe proporciona uma maior capacidade de análise das ações do personagem.
[38] Encontraremos, ainda, no segundo ato, a figura de Camargo Moço, sobrinho de Camargo Velho.
[39] O personagem 666, se tornará integralista na Cena 4, p. 45.
[40] Legião Cívica 5 de Julho, organização que se caracterizava como “sociedade de cultura cívica, política, econômica e social”, fundada no Rio de Janeiro, em 1931, sendo expandida posteriormente, 1932, para São Paulo. Segundo Adalberto Coutinho de Araújo Neto, “Foi essa entidade que convocou o Primeiro Congresso Revolucionário, no Rio de Janeiro, para 15 de novembro de 1932, que resultou na formação do Partido Socialista Brasileiro. A Legião seria uma entidade apartidária e possuiria uma filial em São Paulo.” Ver: O socialismo tenentista: A Legião Cívica 5 de Julho de São Paulo, in: Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 48, jun. 2011.
[41] Tais referências revelam-nos o interesse de Vianninha em tratar com o máximo de exatidão possível os fatos políticos, através de uma minuciosa pesquisa histórica. Ver: VIANNA FILHO, 1980.
[42] “Em 1938 é criado o IPASE - Instituto de Pensão e Aposentadoria dos Servidores do Estado, incorporando o Hospital dos Funcionários Públicos, que passa a ter a denominação que mantém até hoje: Hospital dos Servidores do Estado - HSE. (...) Inovador no Atendimento Médico e na Administração Hospitalar, o Hospital tem sido palco de grandes acontecimentos científicos e históricos. Nele internaram-se cinco Presidentes da República: José Linhares, Café Filho, Juscelino Kubistcheck, João Goulart e João Baptista Figueiredo. Pioneiro nos procedimentos dialíticos no país, quando implantou o primeiro Rim Artificial da América do Sul, no H.S.E. foi também realizado o primeiro Transplante Renal e Cardíaco na cidade do Rio de Janeiro.” Ver: http://www.hse.rj.saude.gov.br/hospital/apres/hist.asp - Acesso: 06/02/2012
[43] No prefácio de Rasga coração, Vianninha afirma: “No final, no frigir dos ovos, o revolucionário para mim, o novo, é o velho Manguari. Revolucionário seria a luta contra o cotidiano, feita de cotidiano. A descoberta do mecanismo mais secreto do cotidiano, que só sua vivência pode revelar”. (1980, p. 13).
[44] No Brasil, os integralistas eram conhecidos como Camisas Verdes ou, debochadamente, galinhas verdes.
[45] Clube 3 de Outubro, “Organização política fundada em fevereiro de 1931, no Rio de Janeiro, por elementos vinculados ao movimento tenentista, em apoio ao Governo Provisório de Getúlio Vargas. O Clube 3 de Outubro, assim denominado em homenagem à data do início da Revolução de 1930, defendia em princípio o prolongamento do Governo Provisório e o adiamento da reconstitucionalização do país.” Não encontramos nenhuma referência ao “fechamento” do Clube, porém, “entre julho e outubro, com a deflagração da Revolução Constitucionalista em São Paulo, suas atividades foram quase inteiramente interrompidas.”. É possível que seja a esse fato que Vianninha se refira, pois ao afirmar que “E os paulistas perderam”, se refere ao movimento constitucionalista de 32.
Ver: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos30-37/PaisDosTenentes/Clube3Outubro Acesso em 02/01/2012. Em sua pesquisa, Vianninha define o Clube: “Reúne tenentes, o tenentismo, o movimento mais radical da revolução de 30, que aspira modificações mais profundas, principalmente de modernização do país em todos os setores. É difusa essa ideologia, que soçobra rapidamente diante da articulação política da realidade que eles desconhecem, e por isso, menosprezam.” (VIANNA FILHO, 1980, p. 222).
[46] Talvez seja um erro gráfico. Nena deveria dizer “um...”.
[47] Esta cena será fundamental no confronto final entre Manguari e Luca, pois o filho, na Cena 9, lançando mão de assuntos pessoais e íntimos, joga na cara do pai, às vistas da mãe e do amigo Camargo Moço, que Manguari “de noite fica na janela, vendo uma senhora de peruca tirar a roupa e ficar nua!” (p. 75) Novamente retoma os “assuntos pessoais”, de maneira agressiva e vingativa.
[48] É importante ressaltar que mesmo buscando metáforas, e são muitas, a peça não conseguiu furar o cerco da Censura Federal, permanecendo proibida de 1974 até 1979, quando foi liberada e levada à cena no ano seguinte. Vianninha morreu sem saber que Rasga coração havia sido proibida, os amigos o protegeram daquilo que seria um profundo desgosto, estando ele já à beira da morte. Cf. p. 15-16 deste trabalho.
[49] O filme (documentário) Cidadão Boilesen (2009), dirigido por Chaim Litewski, denuncia as ações do empresário dinamarquês, Henning Albert Boilesen, radicado no Brasil, que patrocinou a Operação Bandeirante, durante a ditadura militar. Denúncias sobre a participação de empresários e empresas nacionais e multinacionais na repressão política também podem ser verificadas no filme Pra frente, Brasil (1982), de Roberto Farias.
[50] De todos os grupos clandestinos de repressão política ao comunismo e à subversão, o que certamente mais se destacou foi o CCC.
[51] “A partir da Revolução de 1930, a politização do ambiente nacional levou os estudantes a tomarem parte na Revolução Constitucionalista de São Paulo e a formarem organizações como a Juventude Comunista e a Juventude Integralista. Em 1937, foi criada a União Nacional dos Estudantes (UNE). Na década de 40, era o grande marco na luta contra o nazi-fascismo.” Em 1934, “É realizado o I Congresso da Juventude Operária-Estudantil.” Possivelmente, é esse Congresso a que Manguari está se referindo. Ver:.http://www.mme.org.br/main.asp?View=%7B1E86EB2C-6E4E-4B7C-A29E-98BD2B17E5DD%7D&Team=¶ms=itemID=%7B270A3D69-1881-4F70-A323-985E6829F502%7D%3B&UIPartUID=%7BD90F22DB-05D4-4644-A8F2-FAD4803C8898%7D – Acesso em 04/01/2012
[52] O Presidente Geisel falou em uma “abertura lenta gradual e segura”, implicitamente admitindo que havia um regime que era “fechado”; já o Presidente Figueiredo inaugurou a democracia do “eu prendo e arrebento”, admitindo também que o regime militar não era democrático.
[53] Daí a alcunha de “Pistolão”. Sempre que necessário, Manguari, através de seus camaradas, consegue algum benefício, nada que seja absolutamente reprovável, mas que revela certo tráfico de influências. A própria bolsa conseguida para Luca estudar no Liceu Castro Cott demonstra essa influência.
[54] Gênero de teatro musicado, genuinamente brasileiro, que tinha como principal característica a crítica política.
[55] O PCB, vivendo na clandestinidade e assumindo uma postura de condenação da luta armada, se organiza no interior do MDB - Movimento Democrático Brasileiro, partido de oposição cuja atuação era autorizada pelo regime, e busca a união das forças progressistas, como forma de luta para a derrubada da ditadura. O partido da situação era o ARENA – Aliança Renovadora Nacional. Portanto, a adoção do bipartidarismo - situação e oposição -, não permitia a existência de nenhum outro partido.
[56] Marx esclarece, nas “Teses sobre Feuerbach, Tese 2”, que “a questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola da práxis – é uma questão puramente escolástica.” MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (I - Feuerbach). 2. ed. Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ciências Humanas, 1979
[57] “Com a criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), em dezembro de 1939, os projetos de construção da imagem de Getúlio Vargas, de culto à sua personalidade e de controle da opinião pública tiveram sua realização plena. Estruturado como uma verdadeira máquina da propaganda governista, o DIP teve forte atuação junto a todos os meios de comunicação, sobretudo o rádio e a imprensa escrita. Ao DIP cabia a tarefa exclusiva de cuidar de toda a publicidade e propaganda dos órgãos do governo e da administração pública federal, assim como de todas as suas autarquias.” Ver: http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/departamento-de-imprensa-e-propaganda-a-censura-no-estado-novo.jhtm - Acesso em 06/02/2012
[58] “No ar há 70 anos, A Voz do Brasil faz parte da história do rádio brasileiro. (...) Criada no Estado Novo, A Voz do Brasil teve papel central na popularização da ditadura Vargas e seguiu durante décadas servindo como instrumento de propaganda governamental.” A Voz do Brasil, ainda hoje, mantém a protofonia de O guarani, de Carlos Gomes, como tema musical de sua abertura, “remixado ao ritmo de forró, samba, choro, bossa-nova, capoeira, moda de viola e até techno. E o tradicional “Em Brasília, dezenove horas” foi substituído por “Sete da noite, em Brasília”, sinal da opção pela linguagem mais simples, usual e em tom de diálogo.”
[59] Em 1956, o PCB sofre o seu maior golpe: as denúncias de Nikita Kruchev, Secretário Geral do PCUS. Segundo Vinhas (1982, p. 178), “O grande choque na consciência comunista, o grande abalo no modo de ser e de pensar dos partidos comunistas do mundo inteiro veio com o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em fevereiro de 1956, com as denúncias do “sistema do culto à personalidade” e dos crimes do camarada Stálin”. Tal abalo provocou, em março de 1958, a publicação de um documento, que ficou popularmente conhecido como Declaração de Março, no qual o PCB reavalia suas posições radicais e sectárias. Vinhas (p. 181) esclarece que “trata-se de um marco na luta para libertar o pensamento político dos comunistas brasileiros das malhas do sectarismo e do dogmatismo”. Este documento formula também uma nova tese: “da coexistência pacífica a nível internacional [e] recusa uma leitura catastrófica do capitalismo, admite ainda que timidamente que ele se desenvolveu no Brasil e [...] retoma a questão da democracia e do caminho da revolução brasileira”. Cf. VINHAS, Moisés. O Partidão – a luta por um partido de massas 1922-1974. São Paulo: Hucitec, 1982.
[60] Em 1950, o PCB vive um de seus momentos de maior radicalismo político. Saído da extrema perseguição que sofrera durante o Estado Novo, consegue uma breve experiência legal, participando ativamente da Constituinte de 46, em que se via representado por um senador e quinze deputados federais. A volta à clandestinidade, no governo Dutra, leva os comunistas a publicar o conhecido Manifesto de Agosto, que propunha a criação de uma ampla Frende Democrática de Libertação Nacional, e conclamava aos “democratas e patriotas, acima de quaisquer diferenças de crenças religiosas, de pontos de vista políticos e filosóficos [...] para a ação e para a luta com o seguinte programa”, no qual se destacava as seguintes palavras de ordem: “1. Por um governo democrático e popular; 2. Pela paz e contra a guerra imperialista; 3. Pela imediata libertação do Brasil do jugo imperialista; 4. Pela entrega da terra a quem a trabalha; 5. Pelo desenvolvimento independente da economia nacional; 6. Pelas liberdades democráticas para o povo; 7. Pelo imediato melhoramento das condições de vida das massas trabalhadoras; 8. Instrução e cultura para o povo; 9. Por um exército popular de libertação nacional”. Na verdade, houve uma tentativa, frustrada, de reeditar a Aliança Nacional Libertadora, de 35, que mobilizou praticamente todas as camadas da população brasileira. O resultado do radicalismo do Manifesto foi o completo isolamento do Partido. Cf. VINHAS, idem, p. 140-158.
[61] Na peça Campeões do mundo, de Dias Gomes, há uma cena que exemplifica bem o contraponto da postura agressiva de Milena e a sobriedade de Camargo Moço em relação ao respeito aos combatentes: no momento em que os guerrilheiros têm que decidir os nomes que irão compor a lista dos presos que deverão ser libertados em troca do embaixador norteamericano sequestrado, surge um impasse, incluir ou não nomes de comunistas do PCB:
Carlão – Eu não poria os do Partidão.
Velho – Por que não? O critério foi incluir todas as organizações revolucionárias.
Carlão – O PCB não é revolucionário. É um partido burguês reformista. Mero apêndice da oposição burguesa conciliadora.
Tânia – Mas tem uma tradição de luta contra a ditadura. E a repressão tá perseguindo e prendendo quadros tanto do PC quanto os nossos.
Carlão – Pro Partidão nós não passamos de aventureiros. E nesse momento eu garanto a vocês que eles estão contra nós, reprovando o sequestro.
Tânia – Por tudo isso mesmo é que eu acho que eles não podem ficar de fora.
Carlão – Bom, a maioria é que resolve, sou voto vencido, mas quero deixar claro que fui contra.
Ver: (GOMES, 1980, p. 74).
[62] A colocação na ilegalidade da Ação Nacional Libertadora – ANL, leva a uma radicalização do PCB, que pega em armas para tentar derrubar o governo Vargas. Em levantes desordenados, a ação mostra-se um fiasco e serve de motivos para a decretação do Estado Novo, em 1937. A condição de ilegalidade da ANL afastou dos seus quadros todos aqueles que acreditavam nos objetivos da Aliança; o tom inflamado do manifesto assinado por Luis Carlos Prestes, que serviu de estopim para a cassação da ANL, também serviu para afastar parte representativa da sociedade civil, que ali se organizara, deixando o PCB isolado.
[63] Lembramos sempre que os dois períodos históricos abordados na peça são períodos de exceção, nos quais o interrogatório e a utilização da violência física através da tortura eram métodos utilizados para se obter informações de presos políticos.
[64] Não se pretende afirmar que militantes do PCB não tenham eventualmente cedido sob tortura. O que se pretende aqui é ressaltar, como Vianinha destaca, que a radicalização da luta contra a ditadura militar levou muitos jovens a optar por uma condição de luta para a qual não estavam preparados ideologicamente. Quando enfrentaram a violência da reação, não resistiram e, aqui utilizamos o jargão, “abriram”, comprometendo com isso toda a organização a qual pertenciam.
[65] Aqui o autor faz uso da linguagem coloquial para caracterizar o personagem Luca.
[66] Vários ex-militantes se refugiaram nas drogas e no esoterismo; alguns foram para a televisão negar e renegar aquilo que tinham praticado. Mais uma vez, não estamos fazendo juízo de valores, apenas registrando fatos históricos. Ver: PAZ, Carlos Eugênio. Viagem à luta armada - memórias romanceadas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. Um dos mais impressionantes relatos sobre a luta armada e as marcas deixadas naqueles que a viveram intensamente como opção de luta contra o regime ditatorial no Brasil.
[67] Para compor Rasga coração, Vianinha fez uma extraordinária pesquisa de época, nela incluídas as gírias e expressões utilizadas nos dois períodos. Julgamos importante, para melhor entendimento da cena, reproduzir parte do Dicionário de Gírias elaborado por ele, referente aos anos 30/40: não ver bóia – estar a perigo; arriar a trouxa – pedir trégua; sair barra a fora - evadir-se, para longe; deixar correr o marfim – deixar a música tocar, deixa correr; bater o 31 – morrer; fazer tijolo – estar morto; de gasosa – facilmente; andar no vago – sem perspectiva, sem emprego, vadiagem; estar na flauta – vadiando.
[68] Cf. BETTO, 1983.
[69] Parece-nos bastante significativa a epígrafe da peça, de Oswaldo Aranha: “não queremos, não aceitamos nada, absolutamente nada do que aí está. Temos que reformar tudo, da cabeça aos pés”
[70] Ver Nota 46.
[71] M. Cholokhov, De toute mon âme, Moscovo, 1970, p. 326 (ed. russa). Apud: EGOROV, 1975, p.179.
[72] Cf. MOSTAÇO, 1983, p. 59-62.
[73] O resenhista usa como epígrafe uma citação de Jean Jourdheuil em que acusa, implícita e explicitamente, Oduvaldo Vianna Filho de reacionarismo:
“Questão - Como aceitar ser reacionário?
Resposta – Vendo-se dentro de uma redoma de vidro e medindo o caminho que falta percorrer para realizar uma obra revolucionária.” (Idem, p. 59).
[74] PATRIOTA (1999, p. 141-147) reflete com bastante propriedade sobre esse mesmo tema.
[75] Vianninha morreu sem saber que Rasga coração havia sido proibida pela Censura Federal. Os amigos, particularmente o encenador José Renato, a quem cabia a encenação do espetáculo, compreenderam por bem esconder de Vianninha a proibição da montagem do espetáculo por acreditar que a sua dor seria muito grande. Vianninha tinha consciência de que Rasga coração era sua melhor peça, só não sabia ainda que seria considerada uma das maiores peças do teatro brasileiro de todos os tempos.
[76] Biografia extraída de VIANNA FILHO (1980)
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