Eurípides


MIMESIS E VEROSSIMILHANÇA NO TEATRO DE EURÍPIDES


... o mais trágico dos poetas.
Aristóteles
Poética, capítulo XIII


Não queira percorrer, poeta, a mesma
estrada que Eurípides trilhou; nem sequer
tentes, pois seria difícil caminhar por ela.
Parece fácil à primeira vista,
e transitável, mas se alguém tenta pisá-la,
vê que é mais árdua do que se estivesse
pavimentada de estacas pontiagudas.
Experimenta apenas retocar
o terreno da Medeia, filha de Aietes!
Sentir-te-ás anônimo e rasteiro.
Afasta as tuas mãos da coroa de Eurípides.
Arquimedes,
Antologia Palatina (livro VI, 50)



1 - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEATRO DE EURÍPIDES
Para uma análise da obra dramática de Eurípides (484? - 406 a.C.), que tenha como base teórica o conceito de mímesis e verossimilhança, necessário se faz, antes, compreender determinadas características do seu teatro como obra renovadora dos padrões dramatúrgicos então vigentes. Qualquer tentativa de análise que se pretenda, ignorando as transformações geradas, não só nas tragédias, mas com repercussão também na comédia nova[1], seria inócua e estaria distante de corresponder à sua importância histórica.
A dramaturgia euripidiana se reveste de técnicas específicas de escrita, até então não exploradas pelos tragediógrafos. Eurípides apresenta, através de seus personagens, uma visão de mundo que se choca frontalmente com a visão de Ésquilo e Sófocles, para ficar apenas nos que nos chegaram enquanto obras completas. Portanto, não se pode pretender que Eurípides, ao compor suas tragédias, siga os mesmos caminhos trilhados por seus antecessores: sua dramaturgia se constrói sobre parâmetros diversos. Forma e conteúdo unidos a um único propósito, trazer para a cena a discussão sobre as mais profundas emoções humanas. Dar ao homem seu espaço na cena, até então ocupada por heróis moralmente superiores. As paixões estavam alijadas do teatro. A tragédia acontecia a partir de vontades supremas, quando o amor servia apenas como pretexto para outras discussões. Como destaca Brandão,
Se Ésquilo concebeu seu teatro como a representação profundamente religiosa de um evento lendário, e Sófocles fez de seu drama o desenvolvimento normal de uma vontade de um caráter em uma situação determinada. Eurípides há de conceber a tragédia como uma “prâxis” do homem, operando, por isso mesmo, uma profunda dicotomia entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. (...) o “kósmos” trágico não é mais o mito, mas o coração humano, ao qual o grande poeta desceu como se fora um mergulhador e de lá arrancou sua tragédia. (1984: p. 57)
Eurípides criou personagens que assumiram uma nova postura diante da ordem divina: o homem passou a ser, a partir de então, o novo senhor do seu destino. Movido não mais pelos cordéis do titeriteiro olímpico, mas por suas mais profundas paixões; cada um de seus personagens traçou seu próprio caminho, respeitando as ordens do seu coração e do seu ideário. Os deuses podem muito pouco ou quase nada nas novas relações estabelecidas entre os mortais euripidianos.
Ao promover “uma consciente dessacralização do mito com uma consequente proletarização da tragédia” (BRANDÃO: 1984,  p. 57), Eurípides redimensiona o humano em seus personagens, fazendo surgir uma tragédia em que se permite uma análise mais objetiva da realidade: os olhos do homem enxergam de maneira diversa e, por enxergarem de maneira diversa é que certamente são maiores que os deuses. Brandão afirma que “a tragédia de Eurípides desceu para as ruas de Atenas” (p. 57) e homem é então apresentado em todas as suas contradições; como bem esclarece o Prof. Kitto, são “forças psicológicas que se apossam inteiramente de suas vítimas e as arrastam para onde querem”. (p. 116, v.2)
Os conflitos e dúvidas enfrentadas por Medeia no momento que antecede o assassinato dos filhos nos mostram a plenitude de uma mulher que luta ente entre o ter-que e o não-querer: ela não quer matar os filhos; ela tem que fazê-lo. A inevitabilidade, sem a qual a tragédia não se confirma enquanto gênero dramático, é resultado das ações dos personagens; responsabilidade exclusiva do homem, que é senhor do seu próprio destino:
Faltam-me forças para contemplar meus filhos
sucumbo à minha desventura. Sim, eu sinto
o crime que vou praticar, porém maior
do que minha vontade é o poder do ódio,
causa de enormes desgraças para os mortais! (EURÍPIDES: 1997, p. 164)
Se, concordando com Brandão, Eurípides desceu a tragédia para as ruas de Atenas, devemos compreender que um novo herói surgia então: o herói humanizado que chocava frontalmente com a noção de herói trágico, pois, sendo este moralmente superior, a sua relação com as paixões humanas são sublimadas em favor do dever. Em momento algum veremos o Édipo sofocleano refletindo sobre o seu amor por Jocasta. O amor se encerra em si mesmo e não interfere no destino final do personagem.

 2 - MÍMESIS E VEROSSIMILHANÇA
Para se compreender a mímesis em Aristóteles, é conveniente que se contraponha, ainda que de maneira extremamente sucinta, o seu conceito ao de Platão, pois para este, ao operar a mímesis o poeta perverte a realidade e, assim procedendo, perverte também o homem: o poeta deturpa a essência das coisas. A imitação não consegue ser precisa em relação ao objeto, “a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição” (PLATÃO: 2009, p.296);
A imitação para Platão se resume a uma cópia fiel da natureza, não permitindo, portanto, nenhum desvio. Neste sentido, valoriza o artesão em detrimento do artista, pois aquele se aproxima do ideal da coisa representada – não oposição entre representação e essência – enquanto este perverte a essência em favor de uma visão particular e deformada, portanto, também deformadora: “todos os poetas são imitadores da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a verdade” (p. 299).
Aristóteles prevê para o artista um grau de liberdade bastante amplo no processo de mimetizar a coisa observada. Seu conceito de mímesis permite uma re-criação e não apenas retratar a coisa em si; o ponto de vista do objeto se desloca de artista para artista que, ao recriar como que insere sua digital em sua obra; tornando-a única, o artista ultrapassa o limite das aparências de que nos fala Platão. André Luís Susin (2010) acrescenta que
a mímesis em Aristóteles não é uma simples imitação da aparência, a cópia dos aspectos exteriores que identificam determinada realidade ou objeto. A mímesis é um processo de arranjo de certos eventos em uma estrutura determinada, isto é, uma atividade condicionada por uma forma que é regulada por princípios que são próprios do objeto que é seu produto. Ao contrário de Platão, o produto do fazer mimético não é um objeto parasitário, carente de ser: sua identidade não depende das propriedades que definem a coisa que serve como seu modelo.
Antes mesmo de nos definir o que seja a tragédia, Aristóteles, no capítulo II de sua Poética, antecipa que “a imitação se aplica aos atos das personagens” (p. 287). Embora não nos explique o que entende por imitação e por ação dramática (os atos a serem imitados), devemos entender que no teatro os atores representam (mimetizam) não os homens, mas suas ações, pois elas é que estarão em julgamento na relação estabelecida com o público e não o personagem em si. A verossimilhança funciona como um ponto de partida para o processo de aproximação/identificação (empatia) público/personagem. Aristóteles opera um salto qualitativo em relação a Platão, pois mais do que propor uma cópia fiel da realidade, permite “aperfeiçoamentos” em prol da “verdade artística”. Os tragediógrafos gregos deveriam, segundo o estagirita, pintar os homens melhores do que eram:
Sendo a tragédia a imitação de homens melhores que nós, convém proceder como os bons pintores de retratos, os quais, no intuito de reproduzir o aspecto próprio dos modelos, embora mantendo semelhança, os pintam mais belos. (p. 316 – grifos meus[2])
Entendo não ser possível desconsiderar o caráter normativo (ainda que parcialmente normativo!) da Poética[3] aristotélica a fim de melhor compreender a trajetória da tragédia na Grécia e as transformações e aprofundamentos operados por Eurípides. Essa observação me parece relevante já que Aristóteles em várias oportunidades aponta a dramaturgia euripidiana como exemplo do que não se deve fazer. Em minha opinião, acredito que é exatamente nesses pontos que o autor de Medeia triunfa, pois rompe com o modelo tradicional e nos apresenta uma dramaturgia inovadora e revolucionária. Para Aristóteles, o modo euripidiano talvez não fosse o mais adequado por permitir ao espectador um distanciamento reflexivo, rompendo assim com o processo de identificação (empatia), o que dificultaria a efetivação da catarse, que é o fim da tragédia[4].
Aristóteles só nos oferece sua definição da tragédia no Capítulo VI, da Poética:
A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções. (p. 296 – grifo meu)
A catarse (objetivo final da tragédia) opera-se a partir da contemplação, identificação e análise das ações que são mimetizadas; a hamartia (objeto da catarse) é também uma ação, embora, de caráter negativo, portanto, sujeita à purgação ou purificação. Ainda no mesmo capítulo, Aristóteles acrescenta que “como é pela ação que as personagens produzem a imitação, daí resulta necessariamente que uma parte da tragédia consiste no belo espetáculo oferecido aos olhos” (p. 296); portanto, podemos inferir: se alguma coisa é oferecida aos olhos (o espetáculo) pela ação de personagens, pressupõe-se a existência de alguém que pratique tal ação (o ator), que transforma a palavra literária em palavra cênica, e de alguém (o público) que recebe aquela imitação como parte de um todo (o espetáculo). A mímesis teatral[5] somente se efetiva na presença do outro (o público). 
Toda discussão que se pretenda a respeito da tragédia na Poética, deve ter, então, seu foco na ação dramática, que é a razão do teatro, seja em termos literários (literatura dramática), seja em termos cênicos (o espetáculo colocado em cena). Sobre a ação, Ricoeur nos apresenta uma reflexão bastante esclarecedora:
As ações implicam objetivos, cuja antecipação não se confunde com qualquer resultado previsto ou predito, mas compromete aquele de quem a ação depende. As ações, ademais, remetem a motivos, que explicam por que alguém faz ou fez algo, de uma maneira que distinguimos claramente daquela pela qual um acontecimento físico conduz a um outro acontecimento físico. As ações têm também agentes que fazem e podem fazer coisas consideradas como obra deles (...) consequentemente, esses agente podem ser considerados responsáveis por algumas conseqüências de suas ações. (2010, p. 97 – grifos do autor)
Jerzy Grotowski afirmou com propriedade que o “teatro [é] o que ocorre entre o ator e o espectador” (1971, p. 18). Ao elaborar tal afirmativa, entendo que encenador polonês considerava o caráter vivo do teatro e resgatava o pensamento aristotélico, aprofundando-o e conferindo a ele uma especificidade inexistente nas artes “não-cênicas”[6].  O teatro é uma arte presentificada, onde o público está presente durante o processo de criação do ator; vivencia e participa emocionalmente desse processo e dele extrai o que melhor lhe convém.
No teatro há um acordo tácito entre atores e público: os atores sobem ao palco para apresentar um personagem que é irreal como se fosse real[7], contam uma mentira como se fosse uma verdade; o público vai ao teatro para assistir a personagens que ele sabe serem falsos, mas querendo acreditar que fossem verdadeiros. O teatro é um jogo de mentiras concedidas, onde atores e público têm consciência que nada daquilo é verdade, além do ato de representar. Essa mentira não causa dano nem dor, nem será objeto de interpelação, porém, se uma das partes rompe o acordo – ou o ator não “mente” bem ou se projeta no personagem de tal maneira que perde sua consciência de artista; ou o público rompe a barreira da ficção representada sem conseguir separar o ator do seu personagem – alguma coisa, então, está fora do lugar, o campo ficcional foi rompido para invadir o campo pessoal e individual, seja do ator ou do público. A arte do teatro[8] pressupõe a consciência de um e de outro – ator e público.
Observação importante nos fornece Miner (1996) que, ao analisar a relação pactuada entre o espectador e a cena, nos fala de uma “alienação” surgida desse encontro:
Ficamos alienados porque nos vemos colhidos entre o que é “representado” como real e o que presumimos ser o real. Experimentamos um choque em face da premente necessidade de colocarmos de lado as nossas certezas sobre a identidade humana, e em face da apresentação de um mundo estranho que se diz normal, mas que viola as nossas normas. (...) Os atores sabem da plena consciência que temos, ao entrar num teatro, de esperar que eles desempenhem papeis de pessoas que não são, e nisso não há mentira alguma. Mas apresentado como real, sendo dado como real, aquilo que sabidamente não é real torna-se uma poderosa alienação. É uma violação consciente, e potencialmente agradável, do real pelo fictício. (p. 63-64)
           
 3 - EURÍPIDES ENTRA EM CENA
Aristóteles estabelece três maneiras de imitar as coisas: “como elas eram ou são, como os outros dizem que são ou como parece serem, ou como deveriam ser”[9] (p. 339) e acrescenta, repetindo Sófocles quando este “dizia ter pintado os homens tais quais deveriam ser, quando Eurípides os representava tais quais são” (p. 340). Esse olhar quase microscópico sobre homens e mulheres das “ruas de Atenas”, impôs ao poeta a opção por novas formas e, ao estabelecer essas novas formas, avança na análise do caráter do herói. Instaura a verossimilhança a partir das contradições vivenciadas pelo personagem: o lado oculto (ou melhor, suas contradições) se apresenta e uma nova análise se opera, extraindo daí um homem complexo e contraditório. A noção de verossimilhança se aprofunda na medida em que se aproxima da essência do homem – suas contradições –, o que interfere dialeticamente nas relações entre os personagens, pois o confronto se afirma de maneira definitiva, sem intervenção superior.
            Eurípides nos forneceu um dado novo sobre o conceito de verossimilhança: ao negar parâmetros estabelecidos pela tradição trágica e trazer a tragédia para o nível do homem comum, impõe formas e discussões que, além de não serem bem aceitas, contribuíram para seu destino político e artístico: foi exilado para a Macedônia, onde morreu. Ao aproximar-se da realidade, buscando criar personagens que respondessem de maneira realista ao comportamento humano, para assim corrigi-lo no processo de refração, como nos ensina Bakhtin (2009), afastou-se de um padrão estabelecido. Sua mímesis nos permite uma visão de um homem inteiro e completo, pois não se coloca em termos de caráter acima de nós. John Gassner acentua que
Eurípides é o primeiro dramaturgo a dramatizar conflitos internos do individuo sem atribuir a vitória final aos impulsos mais nobres. Temos soberbos exemplos de “personalidades divididas” em Medeia, quando a esposa enganada luta entre o amor pelos filhos e o desejo de punir o pai deles, Jasão, matando-os; em Alceste, quando Admeto oscila entre o amor à vida e afeição pela esposa, cuja morte é a única coisa capaz de salva-lo. (...) A obra de Eurípides constitui, sem dúvida alguma, o protótipo do moderno drama realista e psicológico. (1974, p. 69 – grifo meu)
Lançando mão de uma extraordinária técnica de aproximação, Eurípides, em Medeia, desde o monólogo inicial da Ama (verso 45 em diante),
Os filhos lhe causam horror e a não sente
satisfação ao vê-los. Chego a recear
que tome a infeliz qualquer resolução
insólita; seu coração é impetuoso,
ela não é capaz de suportar maus-tratos (p. 115)
nos enreda nas tramas da peça sem nos permitir fugir à trama; somos jogados dentro da ação dramática e percebemos que Medeia, tal qual um de nós, ofendida em sua paixão e seu orgulho, é capaz de tudo. Essa aproximação se efetiva não através do mito, mas do ser humano e suas paixões que tem sua vida revirada e sua confiança no companheiro que ama traída. Albin Lesky destaca que
A princesa da Cólquida, que Jasão tirou de sua pátria e abandonou em terra estranha, é sobretudo a mulher que opõe à ofensa e ao sofrimento o caráter desmedido de sua paixão. Por isso esquecemos a feiticeira com seus truques mágicos, ainda que possam também ser utilizados para a ação, no devido lugar. Não como bruxa e sim como pessoa humana é demoníaca esta Medeia, que é transformada por Eurípides em assassina dos próprios filhos. (p. 171)
Quanto mais Eurípides aproxima seu teatro das emoções humanas, trazendo para a cena personagens e temas ainda não explorados por seus antecessores, mais a noção de mímese e verossimilhança se aprofunda – quanto mais próximo da realidade mais se concretiza a possibilidade do real em suas personagens, ainda que se mantenha a tragicidade que traz em si mesma a teatralidade.
Vejamos, então, algumas características do teatro euripidiano e no que elas renovaram a mimese trágica, aprofundando a verossimilhança até então vigente:
Ama – Foi Eurípides o responsável pelo surgimento dessa extraordinária personagem que se transformou na grande cúmplice da heroína[10]; uma personagem que traz uma carga humana diferenciada, promovendo um outro nível de identificação, pois era uma mulher do povo que se projetava em cena. Em Medeia, Eurípides lhe confere uma tal dimensão que lhe entrega a responsabilidade do monologo de abertura da peça (prólogo), onde expõe os antecedentes da ação dramática; a Ama não poupa críticas ao marido infiel (Jasão) e manifesta seu temor sobre o que poderá advir, pois conhece o “gênio” da sua senhora. Na primeira cena, agora contracenando com o Preceptor, reafirma sua lealdade a Medeia:
 (...) a dor
dos donos é também de seus servos fieis
e lhes destroça o coração. A minha mágoa
é tanta que fui dominada pela ânsia
de vir até aqui contar ao céu e à terra
os infortúnios todos de minha senhora. (p. 116)
Personagens populares – Além da personagem Ama, Eurípides permitiu o acesso ao homem do povo em suas peças, que passou a merecer não somente o papel de Criado, ou Mensageiro[11]. A valorização de personagem vindos das camadas mais humildes da sociedade grega, talvez se mostre de maneira mais acentuada em Electra, na figura de O Trabalhador que, além da lealdade para com a personagem feminina, demonstra também seu profundo respeito para com a mulher:
O TRABALHADOR – Ó infeliz, por que fazes essas coisas para mim, e trabalhas dessa forma, tu, que foste educada com tanto carinho? Por que, apesar de minhas exortações, não vai repousar?
ELECTRA – Eu te considero um amigo, como são para mim os deuses, porque não me ofendeste em eminha desgraça. Para os mortais é uma felicidade encontrar quem os conforte no infortúnio. Cumpre-me, pois, mesmo sem tua ordem, auxiliar-te no trabalho enquanto puder, para que possas suportar mais facilmente teus penosos encargos. Tens muito que fazer fora de casa; devo, portanto, zelar pelos serviços domésticos. Quando o lavrador volta, é grato encontrar tudo em boa ordem em sua casa.
O TRABALHADOR – Se te apraz, vai... A fonte não fica longe daqui. Eu me encarrego de levar, desde a madrugada, os bois ao campo e tratarei de lavrar a terra. Nenhum preguiçoso, ainda que tenha o nome dos deuses nos lábios, conseguirá alimento sem trabalho. (SOUZA: p. 91)
            Outro aspecto a ser observado no diálogo acima é a preocupação pelas coisas cotidianas, como “serviços domésticos”, “alimento” e “trabalho”, o que revela a preocupação do tragediógrafo em retratar a realidade do homem comum, onde podemos comprovar mais um traço da humanização dos temas.
 Coro – O Coro ganha uma representatividade diferenciada, deixando de ser apenas uma reflexão sobre o tema, uma consciência externa e amplia sua participação na tragédia, merecendo um destaque que leva até mesmo Aristóteles a questionar sua utilização[12]. Sua proximidade com o herói/heroína se estreita e uma cumplicidade se efetiva, pois o Coro reflete a humanização do herói e também se humaniza e se individualiza, pois deve tratar de temas humanos. Mesmo o coro de Troianas, que reflete o coletivo, “assume” uma condição de personagem. Em Medeia, percebemos que, apesar de tentar se manter equidistante, o coro é passional e se coloca claramente do lado da esposa traída, em relação a Jasão:
Tuas palavras foram habilmente ditas,
Jason, e as enfeitaste bem, mas ousarei
contrariar a tua opinião; direi
que agiste mal abandonando esta mulher. (p. 138)
Prólogo – Aristóteles definiu o prólogo como “uma parte da tragédia, que a si mesmo se basta, e que precede o párodo (ou entrada do coro)” (p. 308). Eurípides imprime novas características ao prólogo, colocando um personagem – deus ou humano – relatando os antecedentes da ação. Visa com isso, ao meu entendimento, esclarecer antecipadamente alguns dados para que possa ganhar em termos de ação dramática nos diversos episódios. Contudo, entendo que essa característica ainda hoje não é compreendida como uma dinâmica integrante da mímesis euripidiana, sendo-lhe atribuído um valor de inépcia dramatúrgica[13]. Para exemplificar, vejamos trechos do prólogo de Medeia, proferido pela Ama:
(...) Medeia,
a infeliz, ferida pelo ultraje invoca
os juramentos, as entrelaçadas mãos
- penhor supremo. Faz dos deuses testemunhas
da recompensa que recebe de Jason
e jaz sem alimento, abandonando o corpo
ao sofrimento, consumindo só em pranto
seus dias todos desde que sofreu a injúria
do esposo; nem levanta os olhos pois a face
vive pendida para o chão; como um rochedo,
ou como as ondas do oceano, ela está surda
à voz de amigos, portadora de consolo. (p. 115)
MulherDeixo propositadamente para o final dessa parte a discussão que talvez seja a mais apaixonada e polêmica sobre o teatro euripidiano: a mulher e sua condição dramática e humana. Eurípides nos apresenta uma mulher que se coloca contra todas as convenções e mecanismos de opressão que a cercam. Numa sociedade onde a mulher servia apenas para reprodução, a mulher euripidiana questiona os valores sociais, reivindicando para si outros direitos, estabelecendo assim uma aproximação ao homem, a quem eram permitidas todas as vantagens advindas não só do casamento, mas também da prática e da convivência social cotidiana.
Medeia é a primeira personagem feminina a assumir explicitamente o desejo do prazer e o direito ao afeto conjugal (...) Medeia é a primeira mulher a criticar, no teatro grego, a organização injusta da polis, que veda às mulheres até a atividade intelectual, literária e artística. (...) Os monólogos de Medeia são exemplos brilhantes de uma extrema autonomia intelectual e de rigor de raciocínio. (PESSOTTI: 2010, p. 142)
 Como exemplo ao que afirma Pessotti, podemos destacar o primeiro monólogo de Medeia, ode a heroína elabora uma grande reflexão sobre a condição da mulher:
Das criaturas todas que tem vida e pensam
somos nós, as mulheres, as mais sofredoras.
De início, temos de comprar por alto preço
o esposo e dar, assim, um dono ao nosso corpo
- mal ainda mais doloroso que o primeiro.
Mas o maior dilema é se ele será mau
ou bom, pois a vergonha é para nós, mulheres,
largar o esposo (e não nos deixam repudiá-lo).
Depois, entrando em novas leis e novos hábitos,
temos de adivinhar, para poder saber
sem haver aprendido em casa, como havemos
de conviver com aquele que partilhará
o nosso leito. Se somos bem sucedidas
em nosso afã e ele aceita a vida em comum
sem carregar o novo jugo a contragosto,
então nossa existência é de causar inveja;
se não, melhor será morrer.
(...) Inda dizem
que nossa vida é em casa, livres do perigo,
enquanto eles guerreiam. Tola afirmação!
Melhor seria estar três vezes em combates,
com escudo e tudo, do que parir uma vez! (p. 124-125)
            O coro (formado por mulheres de Corinto), por sua vez, também se manifesta, numa clara defesa aos direitos de igualdade da mulher:
(...) Muito em breve, todavia,
a notoriedade há de falar
outra linguagem e não disporá
de elogios bastantes para nós.
Já vejo a hora em que se louvará
o nosso sexo e não mais pesará
sobre as mulheres tão maldosa fama.
Não mais celebrará nossa perfídia
a poesia dos bardos eternos. (p. 132)
Ainda hoje, por muitos acusado de misoginia, como é o caso de F. A. Paley, “a má vontade [de Eurípides] para com as mulheres manifesta-se tão forte e repetidamente, que parece inexato dizer que não há fundamento para tal acusação”[14], Eurípides continua sendo objeto de análises, a meu ver, equivocadas, pois descontextualizadas: a partir de frases soltas procura-se rotular sua obra de misógina, quando, ao analisarmos o seu conjunto, perceberemos a sua grande paixão pela mulher. De suas dezessete tragédias que chegaram aos nossos dias, doze delas são sobre mulheres e têm o seu título no feminino: Alceste, Medéia, Hércules Furioso, Os Heráclidas, Hipólito, Hécuba, As Suplicantes, Andrômaca, As Troianas, Íon, Electra, Ifigênia em Táuride, Helena, Orestes, As Fenícias, Ifigênia em Áulis e As Bacantes.
A mulher foi o principal objeto de sua investigação apaixonada do comportamento humano; através da análise feminina Eurípides nos legou uma obra de grandeza extraordinária, antecipando em mais de vinte séculos o que viria a ser o realismo psicológico. Sua mulher, confrontada com suas paixões, nos revela todas as contradições humanas e nos faz compreender um pouco mais nossas fragilidades, nossos desejos e frustrações, “a autonomia do pensar e sentir humanos”, enfim, nossas necessidades confrontadas com nossas possibilidades. Albin Lesky entende Eurípides
como o poeta a quem precisamente na mulher se lhe abriram todas as grandezas e misérias da alma humana. Trouxe ao palco mulheres que consomem a si e aos outros nas abrasadoras chamas de paixões desencadeadas. Naquela Atenas em que as mulheres melhor reputadas eram aquelas das quais pouco se sabia dizer, isso produziu o efeito de um ataque inaudito ao sexo feminino, e lhe valeu a fama de inimigo das mulheres. No entanto, é exatamente a ele que devemos aquelas personagens femininas nas quais a natureza humana alcança sua maior realização, a do sacrifício abnegado (1976, p. 169)
Sua opinião é acompanhada por Pessotti, que acentua o caráter humano das personagens femininas euripidianas, lhes conferindo uma condição de elevado destaque:
A mulher, de certo modo, assume na tragédia de Eurípides o lugar dos antigos heróis (...) porque a grande aventura humana já não consiste no desafio ao destino ou aos deuses, ou no morrer por sua pátria, mas na impossível fuga da condição humana. (1993, p. 135 e 138)
E, para finalizar, destaco John Gassner, que também nos deixa um consistente depoimento sobre a misoginia em Eurípides, destacando a maneira como o poeta trabalhou as contradições humanas através das mulheres:
E, sem dúvida, crendo, como Ibsen, que a sociedade seria aperfeiçoada se as mulheres fossem emancipadas e pudessem exercer uma influência humanizadora, podia apresentar as reivindicações feministas criando heroínas positivas. Mesmo que seus esforços estivessem provavelmente destinados à incompreensão, talvez tenha sentido que se podia obter algo criando mulheres como seres humanos completos, ao invés de figuras convencionais. Fazendo-as reais, naturalmente fê-las capazes tanto de mal quando de bem, e talvez fosse inevitável que alguns o classificassem de inimigo das mulheres. Mas talvez tenha encontrado consolo na expectativa de que no devido tempo os atenienses aprenderiam a considerar o sexo oposto como seres dignos, em vez de considerar as mulheres casadas como produtoras de filhos apenas um passo distantes da escravidão. (1974, p. 68)

4 - EURÍPIDES NO SEU TEMPO. EURÍPIDES HOJE E AINDA ALÉM...
Dos três grandes trágicos, Eurípides foi o que menos prêmios recebeu em vida. Esse dado, juntamente a outros a que temos acesso[15], nos sugere que seu teatro não foi merecedor de uma boa recepção. Sua obra, seguindo aqui os parâmetros estabelecidos por Jauss (1994), não contemplou o horizonte de expectativas do público de sua época. Ao dessacralizar o teatro, trazendo-o para a dimensão humana, contrariou governantes e governados. Se afastou de um modelo e não conseguiu angariar adeptos para suas propostas. Eram formas profundamente arraigadas que não se permitia contrariar. Não houve, ao meu juízo, o entendimento necessário sobre o caráter revolucionário e inovador de suas peças. Eurípides foi renegado, transformado em objeto de escárnio nas comédias de Aristófanes, perseguido e, finalmente, exilado.
Eurípides incomodava aos que se entrincheiravam atrás das velhas crenças por medo de enxergar o novo homem que estava nascendo das ruínas da polis. Um homem que pergunta, que discute a moral, os deuses, as explicações tradicionais, o mito. Um homem que percebe sua distância da perfeição divina, reconhece e vive suas paixões e enxerga a fraqueza de suas decisões antes a força do desejo. (...) Ele viveu todos os problemas de seu tempo, com mente aberta e uma curiosidade insaciável pela grandeza frágil da alma humana, para além dos discursos e das hierarquias sociais. Acima das diferenças entre escravos e senhores, reis e mendigos, homens e mulheres. (PESSOTTI: 1993, p. 133-134)
O reconhecimento de Eurípides virá exatamente por romper o horizonte de expectativas (JAUSS: 1994) da tragédia grega[16]. O impacto causado por suas inovações só se refletiu com a necessária distância crítica que nos separa, quando percebemos que nenhum outro no seu tempo foi tão inovador, instigante e revolucionário. Eurípides nos legou uma obra, cuja reflexão sobre a condição da mulher, a humanização dos temas com a consequente dessacralização do mito que permitiu, inclusive, ao homem simples ocupar espaço de destaque nas peças, ainda hoje justificam encenações, das mais tradicionais e acadêmicas às mais arrojadas e experimentais. A reverência a Eurípides, hoje, se manifesta a cada nova encenação de uma tragédia sua.
Entendo que tudo o que realizou foi resultado de sua inquietação e profunda generosidade com que pintou o ser humano, que se via representado, até então, por heróis superiores a ele. Elevou o homem à condição de protagonista de um teatro reservado aos grandes heróis. O reconhecimento do seu valor só se manifestou com a sua morte, quando Sófocles, vestiu de negro o coro de uma de suas peças e homenageou o poeta. Talvez o prêmio post-mortem seja um reconhecimento da importância que não mereceu enquanto vivo; a recepção negada em sua época, não impediu sua recepção futura; recepção que se ampara justamente naquilo que lhe foi negado em vida.
Para alguns de seus comentadores, a carpintaria dramatúrgica de Eurípides deixa um pouco a desejar. É preciso, porém, compreender que Eurípides propunha uma nova dramaturgia, não aquela proposta por Sófocles e teorizada por Aristóteles. Não se pode analisar sua obra a partir dos conceitos estabelecidos na Poética; sua obra não segue essa prescritiva, portanto, não há como fazer aplicação mecânica dos conceitos ali contidos numa dramaturgia que rompeu com os padrões vigentes.
Quanto ao efeito melodramático, do qual muitos o acusam, eventualmente vamos encontrá-lo, mas não é isso que diminui o impacto de sua obra. E me parece que todas as vezes que teve que lançar mão desses efeitos, foi absolutamente consciente, pois precisava, ao chocar, levantar uma reflexão. O pecado não está em ser melodramático e, sim, fazer uma má utilização do melodrama. Não acredito que isso diminua a força de sua obra, ou obscura o valor de suas inovações. Sua atualidade está na análise minuciosa e profundamente humana de seus personagens. Quando encara o homem como senhor do seu próprio destino, precisa dar a esse mesmo homem uma nova dimensão psicológica que o permita ser verossímil em suas decisões, sejam elas quais forem.
A beleza e a força poética de suas palavras em poucos momentos foram superadas; sua mais sincera paixão pelo homem faz com que sua obra seja absolutamente eterna, pois enquanto existir o ser humano, da maneira que o conhecemos, Eurípides será extremamente atual, moderno e contemporâneo; enquanto um coração insistir pulsando sua obra vai estar ali, ao lado dele, tentando compreender cada pulsar, cada batimento desritimado de amor ou ódio, da mais profunda angústia ou da mais bela necessidade de compreender o mundo e a nossa função nele e, assim, finalmente, torná-lo um pouco melhor de ser habitado.


5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COSTA, Ligia Militz da. A poética de Aristóteles – mímese e verossimilhança. 1ª. ed. 3ª. impressão. São Paulo: Ática, 2003.
EURÍPIDES. Alceste, Electra, Hipólito – tragédias gregas. Prefácio, tradução e notas: J. B. Mello e Souza. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1970.
_____. Teatro de Eurípides: Hipólito, Medeia, As troianas. Tradução direta do grego, introdução e notas: Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / INL, 1977.
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SUSIN, André Luís. Mimesis e tragédia em Platão e Aristóteles. Dissertação de mestrado. Rio Grande do Sul: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2010. http://hdl.handle.net/10183/24846.  Acessado em 09/12/2010.

NOTAS

[1] Em Menandro (342 - 291 a. C.), principal representante da Comédia Nova, o gênero sofre uma transformação, abandonando os temas políticos para tratar exclusivamente de intrigas familiares e amorosas. Podemos perceber uma significativa influência de Eurípides no que diz respeito não só à forma “realista” de abordagem de temas, como também no aproveitamento de personagens até então não valorizados no teatro, como no caso emblemático da Ama.
[2] Costa (2003) ressalta que “a tragédia se identifica com a mímese de qualidade superior, em contraponto com a mimese efetuada pela comédia; a tragédia tem, como objeto, ações de caráter elevado (transformação ética do modelo para melhor)” (p. 48)
[3] Em seu capítulo I, Aristóteles apresenta sua proposição teórica e esclarece que discutirá as diversas formas da produção poética e como se deve proceder para atingir os fins almejados: “Propomo-nos tratar da produção poética em si mesma e de seus diversos gêneros, dizer qual a função de cada um deles, como se deve construir uma fábula, no intuito de obter o belo poético; qual o número e natureza de suas diversas partes, e falar igualmente dos demais assuntos relativos a esta produção”. (p. 285 – grifos meus)
[4] Como exemplo de suas discordâncias, cito o capítulo XVIII onde Aristóteles afirma que “o coro deve ser considerado como um dos atores deve constituir parte do todo e ser associado à ação, não como em Eurípides, mas à maneira de Sófocles”. (p. 322) entendo, que mais do que estar ligado à ação dramática, como comentador, o coro em Eurípides reflete sobre os acontecimentos que envolvem o personagem. Em Medeia, depois de a heroína lamentar sua sorte e traçar o rumo de sua vingança, já tendo refletido sobre a condição da mulher, afirma que “(...) se a natureza fez-nos, a nós, mulheres de todo incapazes / para as boas ações, não há, para a maldade, / artífices mais competentes do que nós”. O Coro então rebate:
(...) Muito em breve, todavia,
a notoriedade há de falar
outra linguagem e não disporá
de elogios bastantes para nós.
Já vejo a hora em que se louvará
o nosso sexo e não mais pesará
sobre as mulheres tão maldosa fama.
Não mais celebrará nossa perfídia
a poesia dos bardos eternos. (p. 132)
[5] Quando Aristóteles afirma, no capítulo XXVII, que “a tragédia, mesmo não acompanhada de movimentação dos atores, produz seu efeito próprio [a catarse], tal como a epopéia pois só a leitura nos permite avaliar-lhe a qualidade”, está referindo-se não ao teatro enquanto espetáculo cênico, mas à poesia dramática.
[6] O ator, assim como o bailarino, o cantor de ópera ou os artistas circenses (todos eles artistas cênicos) caracterizam-se por serem ao mesmo tempo criadores e criaturas; sua obra de arte é ele mesmo, seja através do seu corpo e de sua voz, sendo que a expressão artística do bailarino se concretiza somente através do seu corpo. O artista cênico é sua própria obra; nele a obra de arte se manifesta e se expressa enquanto tal.
[7] Não considero aqui as propostas estéticas de Bertolt Brecht, encenador alemão (1898-1956) que propõe um teatro distanciado e crítico, onde não há (ou não se deveria haver) um envolvimento público/personagem, buscando assim uma nova relação e uma nova postura do público e do próprio ator diante do fenômeno teatral.
[8] Não só do teatro; a arte só existe enquanto tal se houver a consciência do artista ao concebê-la. Distingo aqui a função terapêutica do teatro usado como tratamento para algumas doenças mentais e psicológicas – o psicodrama, por exemplo. Não considero, portanto, esse tipo de teatro como arte.  Sobre o psicodrama ver: MORENO, J. L. Psicodrama  19-...
[9] No capítulo XXVI da Poética, Aristóteles ressalta que “... é possível responder que o autor representou as coisas como elas devem ser, a exemplo de Sófocles, que dizia ter pintado os homens tais quais deveriam ser, quando Eurípides os representava tais quais são” (grifo meu).

[10] Em algumas peças, e aqui podemos citar Hipólito, a Ama “trai” sua senhora Fedra ao revelar a Hipólito, enteado da heroína, o amor que lhe cultiva sua senhora; tal revelação desencadeia o processo de catástrofe da peça. Ver: Kury, 1977. A personagem Ama sobreviverá ao longo da história do teatro, imortalizada que foi em Shakespeare, Racine, Molière, dentre outros; ainda nos tempos atuais, encontraremos sua variação até mesmo no teatro brasileiro em peças como O santo e porca, de Ariano Suassuna, por exemplo.
[11] Personagem característico de todas as tragédias, cuja responsabilidade é descrever o que acontece fora de cena, como a morte de personagens, por exemplo.
[12] No capítulo XVIII, Aristóteles afirma que “o coro deve ser considerado como um dos atores deve constituir parte do todo e ser associado à ação, não como em Eurípides, mas à maneira de Sófocles”. (p. 322) entendo, que mais do que estar ligado à ação dramática, como comentador, o coro em Eurípides se liga preferencialmente ao herói, como no caso de Medeia ou Troianas, onde está vinculado profundamente a Hécuba, pois são suas súditas e vivem a mesma condição que a rainha.
[13] Uma discussão mais profunda sobre o tema demandaria um espaço que não disponho nesse trabalho. Poderíamos discutir, por exemplo, no caso de Hipólito ou Troianas, para ficar em apenas duas tragédias bastante significativas em sua obra, onde a utilização de deuses (Afrodite e Poseidon, respectivamente), prestaria a justificar o caráter religioso, sempre questionável, em suas peças; tal fato também ocorre nos epílogos, quando os deuses proferem um segundo final às peças. Na verdade, Euripides tentava “dourar a pílula” para satisfazer às exigências religiosas e políticas, porém identificamos desprezo e até mesmo um certo deboche nessa utilização tão artificial da figura dos deuses. As perseguições sofridas por Eurípides em relação à religião foram uma das causas de seu exílio, na Macedônia.
[14] Não me foi possível identificar a origem da citação.
[15] Em torno de Eurípides criou-se uma série de lendas que ainda hoje, algumas carecem de comprovação. Como bem anotou Albin Lesky (1976, p. 159): “Porta-voz de uma nova época, Eurípides, mais que qualquer outra personalidade de seu tempo, foi alvo da zombaria da comédia. Aquilo que, em invenções grotescas e atrevidas, foi ligado ao seu nome, em muitos casos, passou a figurar na pseudo-história”.
[16] Racine ao escrever peças como Andrômaca e Fedra, entre outras, retoma Eurípides, em várias de suas características, seja na valorização da mulher, seja na busca do prazer, contrapondo-se a Corneille, que sempre colocou para os seus heróis o dever acima do prazer.

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