segunda-feira, 30 de abril de 2012

ROMANCE ENGAJADO DE EXPRESSÃO BURGUESA


  


A resistência, forjada por um preconceito ideológico, que se criou em relação à “arte engajada” ou “arte política”, ou qualquer denominação que se dê a uma arte voltada para a defesa dos interesses dos trabalhadores, contrapondo-se, portanto, aos interesses da burguesia, favoreceu ao longo dos anos – particularmente, durante e pós-guerra fria – a ideia perversa de que a arte para ser boa precisa afastar-se das questões de classe. Essa postura considera a arte política como sendo arte menor; arte engajada é sempre arremedo, pois traz a marca do radicalismo e fanatismo político.

Jean Roche entende que “romance engajado [é] aquele em que o autor baseia sua criação sobre o seu credo, em que ele dá publicamente o testemunho desse credo, chegando às vezes até a pregação. O romance engajado é, portanto, um ato”. Partindo desse entendimento, julgamos correto dizer que um romance, seja ele proletário, seja ele burguês, é engajado se defende os interesses de sua classe. Porém, não se diz que a arte burguesa é uma arte engajada. Tal epíteto se aplica apenas à arte que defende interesses da classe trabalhadora, de esquerda, “socializante” ou “comunizante”. Percebemos, portanto, uma clara manipulação ideológica por trás de tal postura, já que alimenta uma discriminação a uma literatura, ou qualquer outra forma de arte, que seja contra os interesses da classe dominante, no caso, a burguesia. 

O romantismo surge no bojo das novas relações políticas que se estabelecem com a ascensão burguesa, que é resultante do capitalismo emergente. Sem essa compreensão, qualquer análise estaria sujeita a um reducionismo histórico, considerando apenas o caráter estrutural do romantismo – a forma como determinante do gênero/estilo. A luta de classes – burguesia versus aristocracia – vai se refletir nos diversos campos das relações humanas; o saber e o fazer se alimentam de nova ideologia. A arte não será exceção: o rompimento com os parâmetros estéticos impostos pelo classicismo reflete muito bem esse conflito. O romance surge desse confronto e se impõe como alternativa de gênero, refletindo os anseios e conceitos da nova classe que se tornará hegemônica em breve tempo. No romance encontramos a representação do burguês, que até então não se via refletido nas obras de arte que eram exclusivamente dedicadas à aristocracia, seja na dramática, na lírica ou nas artes pictóricas, bem como na música.

O romance vai seguir os ditames burgueses buscando uma maior aproximação com essa nova realidade que não responde mais aos interesses aristocráticos, portanto, são outros e novos valores que serão acentuados. Até mesmo a separação grotesco/sublime estratificava as classes, pois não permitia acesso ao homem burguês, que se vê espremido no entremeio da dicotomia que sempre prevaleceu na arte: o sublime para a nobreza; o grotesco, para o populacho, detentor de todos os vícios, portanto, motivo de galhofas e críticas ferinas. Não havia, nesse processo, lugar reservado ao burguês, que ocupava gradativamente outros espaços sociais, políticos e econômicos.


O surgimento do romance está para a literatura assim como o drama está para o teatro. O verso trágico permite ao herói uma elevação, uma proximidade divina que a prosa fará trazer de volta à realidade; o herói prosaico é o homem comum, o homem que tem suas obrigações cotidianas. Enfrentar os grandes obstáculos não é o mesmo que tratar os conflitos no nível puramente humano. O Olimpo cede espaço ao aconchego do lar. Embora enfrentando todos os conflitos, pois sem eles não há narrativa nem ação dramática, o herói não-titânico tem a possibilidade de superação, condição impensável para o herói trágico. A inevitabilidade da tragédia – ou, se preferirem, o destino –, que a partir de Shakespeare era obra construída pelo próprio homem, permite ao novo herói (do drama) a superação dos seus obstáculos, podendo ou não ser vítima das relações conflituosas em que se encontra. Existe uma possibilidade de escape.

O drama opera esse deslocamento da tragédia, trazendo-a para mais próximo do homem, colocando-o no mesmo nível dos personagens. Herda a prosa shakespeariana, já utilizada conjuntamente com o verso, rompe com as regras das três unidades e o conceito de sublime e grotesco. Diderot, através de peças como O pai de família ou O filho natural, inaugura esse novo gênero que traz para dentro da cena o herói burguês de carne e osso, como representante de todos os anseios e necessidades da classe que ascendia ao poder.


A epopéia, ao contrário do teatro, não permite que o personagem se manifeste em sua plenitude. A grandiosidade dos versos retira do herói a possibilidade de aproximação com a realidade. A sua distância é estabelecida, não só pelos seus feitos, mas também por essa linguagem que não corresponde à do homem comum. A narrativa épica está mais preocupada com os acontecimentos do que como esses acontecimentos interferem no homem e no que homem pode fazer para modificar essa realidade. Os conflitos se estabelecem, prioritariamente, no encadeamento de obstáculos e sua superação. Quanto maior o obstáculo maior a dimensão trágica do herói. A esse herói não é permitida a hesitação, pois significaria fraqueza. Quando Aquiles se afasta da guerra, o seu motivo não é o medo; suas razões são também grandiosas; e, mesmo o medo, se existir, será tão ou mais grandioso.


O herói da tragédia ou da épica não corresponde aos anseios do homem burguês, pois não é o seu representante ideal. Forjado em uma nova época, sob novas contradições, com seu pensamento voltado para o conflito de classes que se fazia presente, a burguesia precisa alijar a aristocracia de todos os espaços, sobretudo no campo da arte, onde a sua representação se faria sentir para ocupar o imaginário de todos. O teatro já estava no caminho aberto com o advento do drama. Era preciso, agora, ocupar também a literatura com a invenção de um novo modo de se contar histórias.


O romance que, segundo Bakhtin, é um gênero em construção, apodera-se de características da épica e do dramático, estabelecendo uma síntese estética. Da épica, herda a narrativa; do drama, a aproximação com o homem comum e a forma em prosa. Lukács já nos havia falado da “epopéia burguesa”. Forma e fundo rearticulados e irmanados, ocupando um novo espaço onde o modo de produção capitalista determina os parâmetros estéticos. Os conflitos dos personagens serão agora analisados sob a égide da nova ideologia reinante, já que são representações do mundo burguês.

É difícil acreditar que uma obra burguesa vá defender interesses que não sejam os da burguesia. O modo de vida burguês vai ocupar todas as páginas e nelas, se refletindo e refratando, alicerçar sua ideologia. O individualismo toma o lugar da história e da fábula cantadas nas epopéias clássicas. O herói coletivo dá lugar ao individuo. A verdade passa a ser uma questão individual, pois como afirma Ian Watt, o romance é “a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora.”


Ao aproximar-se da realidade, o romance exalta o indivíduo em detrimento à verdade coletiva. E nem poderia ser de outra maneira. O capitalismo, como reflexo de classe, busca anular o coletivo. O valor individual destaca aqueles que são “superiores” na escala social. A lei da sobrevivência darwiniana se molda na lógica da superioridade desenvolvida pelo capitalismo. O individuo superior sobrevive aos outros que não conseguem lhe fazer frente. No capitalismo não há lugar para os “fracos”. O fortalecimento do individual ganha no romance um forte aliado. Watt acrescenta que “desde o Renascimento havia uma tendência crescente a substituir a tradição coletiva pela experiência individual como árbitro decisivo da realidade; e essa transição constituiria uma parte importante do panorama cultural em que surgiu o romance".



Negar ao romance burguês o caráter “engajado” é negar sua própria essência, que se manifesta na defesa intransigente da ideologia burguesa, seja na valorização do individuo em detrimento do coletivo, seja na manutenção do status quo de seus personagens, seja na configuração das relações inter-personagens, seja no não questionamento do modelo econômico que se sobrepõe às relações sociais.