A resistência, forjada por um preconceito ideológico, que
se criou em relação à “arte engajada” ou “arte política”, ou qualquer
denominação que se dê a uma arte voltada para a defesa dos interesses dos
trabalhadores, contrapondo-se, portanto, aos interesses da burguesia, favoreceu
ao longo dos anos – particularmente, durante e pós-guerra fria – a ideia
perversa de que a arte para ser boa precisa afastar-se das questões de classe.
Essa postura considera a arte política como sendo arte menor; arte engajada é sempre
arremedo, pois traz a marca do radicalismo e fanatismo político.
Jean Roche entende que “romance engajado [é] aquele em que o autor baseia sua criação sobre o seu credo, em que ele dá publicamente o testemunho desse credo, chegando às vezes até a pregação. O romance engajado é, portanto, um ato”. Partindo desse entendimento, julgamos correto dizer que um romance, seja ele proletário, seja ele burguês, é engajado se defende os interesses de sua classe. Porém, não se diz que a arte burguesa é uma arte engajada. Tal epíteto se aplica apenas à arte que defende interesses da classe trabalhadora, de esquerda, “socializante” ou “comunizante”. Percebemos, portanto, uma clara manipulação ideológica por trás de tal postura, já que alimenta uma discriminação a uma literatura, ou qualquer outra forma de arte, que seja contra os interesses da classe dominante, no caso, a burguesia.
O romantismo surge no bojo das novas relações políticas que
se estabelecem com a ascensão burguesa, que é resultante do capitalismo
emergente. Sem essa compreensão, qualquer análise estaria sujeita a um reducionismo
histórico, considerando apenas o caráter estrutural do romantismo – a forma
como determinante do gênero/estilo. A luta de classes – burguesia versus aristocracia – vai se refletir nos
diversos campos das relações humanas; o saber e o fazer se alimentam de nova
ideologia. A arte não será exceção: o rompimento com os parâmetros estéticos
impostos pelo classicismo reflete muito bem esse conflito. O romance surge
desse confronto e se impõe como alternativa de gênero, refletindo os anseios e
conceitos da nova classe que se tornará hegemônica em breve tempo. No romance
encontramos a representação do burguês, que até então não se via refletido nas
obras de arte que eram exclusivamente dedicadas à aristocracia, seja na
dramática, na lírica ou nas artes pictóricas, bem como na música.
O romance vai seguir os ditames burgueses buscando uma
maior aproximação com essa nova realidade que não responde mais aos interesses
aristocráticos, portanto, são outros e novos valores que serão acentuados. Até
mesmo a separação grotesco/sublime estratificava as classes, pois não permitia
acesso ao homem burguês, que se vê espremido no entremeio da dicotomia que
sempre prevaleceu na arte: o sublime para a nobreza; o grotesco, para o
populacho, detentor de todos os vícios, portanto, motivo de galhofas e críticas
ferinas. Não havia, nesse processo, lugar reservado ao burguês, que ocupava
gradativamente outros espaços sociais, políticos e econômicos.
O surgimento do romance está para a literatura assim como o
drama está para o teatro. O verso trágico permite ao herói uma elevação, uma
proximidade divina que a prosa fará trazer de volta à realidade; o herói
prosaico é o homem comum, o homem que tem suas obrigações cotidianas. Enfrentar
os grandes obstáculos não é o mesmo que tratar os conflitos no nível puramente
humano. O Olimpo cede espaço ao aconchego do lar. Embora enfrentando todos
os conflitos, pois sem eles não há narrativa nem ação dramática, o herói
não-titânico tem a possibilidade de superação, condição impensável para o herói
trágico. A inevitabilidade da tragédia – ou, se preferirem, o destino –, que a
partir de Shakespeare era obra construída pelo próprio homem, permite ao novo
herói (do drama) a superação dos seus obstáculos, podendo ou não ser vítima das
relações conflituosas em que se encontra. Existe uma possibilidade de escape.
O drama opera esse deslocamento da tragédia, trazendo-a
para mais próximo do homem, colocando-o no mesmo nível dos personagens. Herda a
prosa shakespeariana, já utilizada conjuntamente com o verso, rompe com as
regras das três unidades e o conceito de sublime e grotesco. Diderot, através
de peças como O pai de família ou O
filho natural, inaugura esse novo gênero que traz para dentro da cena o
herói burguês de carne e osso, como representante de todos os anseios e
necessidades da classe que ascendia ao poder.
A epopéia, ao contrário do teatro, não permite que o
personagem se manifeste em sua plenitude. A grandiosidade dos versos retira do
herói a possibilidade de aproximação com a realidade. A sua distância é
estabelecida, não só pelos seus feitos, mas também por essa linguagem que não
corresponde à do homem comum. A narrativa épica está mais preocupada com os
acontecimentos do que como esses acontecimentos interferem no homem e no que
homem pode fazer para modificar essa realidade. Os conflitos se estabelecem,
prioritariamente, no encadeamento de obstáculos e sua superação. Quanto maior o
obstáculo maior a dimensão trágica do herói. A esse herói não é permitida a
hesitação, pois significaria fraqueza. Quando Aquiles se afasta da guerra, o
seu motivo não é o medo; suas razões são também grandiosas; e, mesmo o medo, se
existir, será tão ou mais grandioso.
O herói da tragédia ou da épica não corresponde aos anseios
do homem burguês, pois não é o seu representante ideal. Forjado em uma nova
época, sob novas contradições, com seu pensamento voltado para o conflito de
classes que se fazia presente, a burguesia precisa alijar a aristocracia de
todos os espaços, sobretudo no campo da arte, onde a sua representação se faria
sentir para ocupar o imaginário de todos. O teatro já estava no caminho aberto
com o advento do drama. Era preciso, agora, ocupar também a literatura com a
invenção de um novo modo de se contar histórias.
O romance que, segundo Bakhtin, é um gênero em construção,
apodera-se de características da épica e do dramático, estabelecendo uma
síntese estética. Da épica, herda a narrativa; do drama, a aproximação com o
homem comum e a forma em prosa. Lukács já nos havia falado da “epopéia
burguesa”. Forma e fundo rearticulados e irmanados, ocupando um novo espaço
onde o modo de produção capitalista determina os parâmetros estéticos. Os
conflitos dos personagens serão agora analisados sob a égide da nova ideologia
reinante, já que são representações do mundo burguês.
É difícil acreditar que uma obra burguesa vá defender
interesses que não sejam os da burguesia. O modo de vida burguês vai ocupar
todas as páginas e nelas, se refletindo e refratando, alicerçar sua ideologia.
O individualismo toma o lugar da história e da fábula cantadas nas epopéias
clássicas. O herói coletivo dá lugar ao individuo. A verdade passa a ser uma
questão individual, pois como afirma Ian Watt, o romance é “a forma literária
que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora.”
Ao aproximar-se da realidade, o romance exalta o indivíduo
em detrimento à verdade coletiva. E nem poderia ser de outra maneira. O
capitalismo, como reflexo de classe, busca anular o coletivo. O valor
individual destaca aqueles que são “superiores” na escala social. A lei da
sobrevivência darwiniana se molda na lógica da superioridade desenvolvida pelo
capitalismo. O individuo superior sobrevive aos outros que não conseguem lhe
fazer frente. No capitalismo não há lugar para os “fracos”. O fortalecimento do
individual ganha no romance um forte aliado. Watt acrescenta que “desde o Renascimento havia uma
tendência crescente a substituir a tradição coletiva pela experiência
individual como árbitro decisivo da realidade; e essa transição constituiria
uma parte importante do panorama cultural em que surgiu o romance".
Negar ao romance burguês o caráter “engajado” é negar sua própria essência, que se manifesta na defesa intransigente da ideologia burguesa, seja na valorização do individuo em detrimento do coletivo, seja na manutenção do status quo de seus personagens, seja na configuração das relações inter-personagens, seja no não questionamento do modelo econômico que se sobrepõe às relações sociais.