sábado, 23 de abril de 2011

TEATRO E GUERRA




“Eu compreendo a guerra, general. Meu filho morreu nela.”
(Da mulher de um pescador, em O Julgamento de Luculus – Bertolt Brecht)

O maior flagelo da humanidade acompanha o homem desde sempre. E muito ainda deve demorar para que consigamos viver num mundo em que a guerra seja apenas parte dos verbetes das enciclopédias e dicionários, como um fato histórico que deveria ser visto como uma aberração ou uma extravagância deslimitada, um acontecimento pitoresco que nos causasse apenas curiosidade e nada mais, pois tão distante que nem dor deveria nos causar. A necessidade de se fazer guerra e com ela se impor pela força diante do mundo é como uma droga que provoca dependência física e psicológica ou a insulina, absolutamente vital para o combate ao diabetes. O capitalismo se alimenta de guerra e vai torná-la, cada dia mais, necessária para sua sustentação. Em seu último estágio – o imperialismo –, como estamos assistindo hoje, essa condição está se exacerbando de tal maneira que já torna o mundo um grande campo de batalha onde, a cada dia novos inimigos precisam ser encontrados (ou fabricados!) para se justificar as ações bélicas. Com sua extraordinária lucidez, o dramaturgo e encenador alemão, Bertolt Brecht afirmava que a guerra é necessária dentro do capitalismo, isto é, para o capitalismo. Esse sistema econômico baseia-se numa guerra de todos contra todos, dos grandes contra os grandes, dos pequenos contra os pequenos, dos grandes contra os pequenos. Já se deveria ter reconhecido que o capitalismo em si é uma desgraça, a fim de se reconhecer que a guerra e as desgraças que ela produz são ruins – isto é, desnecessárias. E a voracidade do sistema que gera a guerra não tem fim. E novas guerras precisam ser criadas para alimentar o medo de Cronos, que engolia seus filhos assim que nasciam, para garantir que não o destronassem. A guerra torna-se, então, mercadoria, numa sociedade em que o modo de produção é determinado pelo poderio bélico. Cada baioneta, uma vida humana! E já nem se usam mais baionetas!

O teatro não se furtou, ao longo de sua história, de refletir e denunciar as mazelas provocadas pela guerra. Atento à realidade do seu tempo e sem abrir mão do seu compromisso histórico, o teatro tem sido um guardião incansável da paz e da soberania dos povos, colocando em cena personagens e situações que nos convocam a repensar os mais cruéis mecanismos de destruição da guerra e as suas mais terríveis heranças; gerações e mais gerações esfaceladas e destruídas, cuja história não sobreviveu senão na memória de suas perdas. Novamente Brecht: Noite. / Os casais / Vão para a cama. /As jovens mulheres parirão órfãos.

Em TROIANAS, o tragediógrafo grego Eurípides (484? - 406 a.C.) nos apresenta o mais belo poema contra a brutalidade e irracionalidade da guerra, o mais terrível exemplo do que a guerra é capaz, e se levanta, em cada palavra, em cada silêncio das mulheres cativas, contra a estupidez e a barbárie! Um canto de paz em que o derrotado é o grande herói, pois covardemente vencido, guarda para si a honra máxima de ter lutado por uma causa justa. A vitória dos gregos, sob o seu ponto de vista, se esgota em si mesma, pois como afirma Cassandra, em seu mais lúcido delírio: “Desejo apenas te convencer, minha mãe e não é delírio que a troiana gente é mais feliz que a grega. Tudo por uma mulher!... Por uma só paixão, só por Helena, quantos gregos pereceram? Por uma mulher levada de seu lar não pela força, mas por vontade própria. Para resgatar Helena quantos foram dizimados em árduas lutas cujo prêmio não seria nem a sobrevivência de sua pátria nem a preservação de suas fronteiras. E os que tombaram  jamais tornaram a ver seus filhos e a mão que em terra estranha os sepultou não foi da esposa amada. As mulheres morrem viúvas; os pais idosos morrem sem deixar filhos para perpetuar a família; e sobre seus túmulos parente algum virá depositar lágrimas. Este é o prêmio que mereceram... de seus crimes é melhor silenciar; que a musa jamais me empreste sua voz para cantar tais infâmias. Quanto aos troianos que glória poderia ser maior?  Morreram pela pátria! ”

Eurípides escreveu TROIANAS possivelmente em 416 a.C., e hoje, quase dois mil e quinhentos anos depois, voltamos a discutir a relação do teatro com a guerra, numa tentativa de entender o processo histórico que a envolve. Não é muito diferente, pois os interesses continuam sendo os mesmos. Quando levei à cena minha versão de TROIANAS, os Estados Unidos estavam invadindo o Afeganistão e logo depois o Iraque, numa clara demonstração de que tudo o que Eurípides escreveu continuava absurdamente atual: os interesses econômicos – as rotas do mar Egeu para os Gregos e o petróleo iraquiano para os americanos – e as falsas justificativas para as invasões de Tróia e do Iraque – o rapto de Helena e as bombas de destruição em massa de Sadan Houssein – estavam colocadas de forma a legitimar qualquer ação bélica. Eurípides não foi único tragediógrafo grego a discutir a guerra em suas peças, mas certamente foi o que mais incisivamente se voltou contra ela, colocando o seu teatro em favor da luta pela paz, contra a exploração do homem pelo homem. O ciclo troiano serviu de inspiração a muitos, mas nenhum cantou os horrores da guerra como Eurípides.

O teatro se transforma e é próprio do seu tempo.  Ele só existe a partir de uma relação estreita com valores culturais e sociais. A maneira de se fazer teatro, sua expressão estética e política, é determinada pelo grau de liberdade que cada povo desfruta em seu momento histórico. Quanto maior a liberdade, mais livre será sua expressão; quanto menor a liberdade, maior a sua combatividade contra esse estado de opressão e censura, maior a sua necessidade de denúncia – forma e conteúdo se unem criando uma nova estética que vai refletir essa contradição básica do ser humano: necessidade/possibilidade, pois é dela que o teatro se alimenta. No período de ditadura militar, o teatro brasileiro encontrou um caminho próprio para denunciar as arbitrariedades do regime ao mesmo tempo em que lutava por um estado democrático de direito. O teatro brasileiro (obviamente, aquele comprometido com seu tempo e sua história) não podia ser de outra maneira senão aquela, porque foi naquele solo que ele foi germinado e deu seus frutos. No período de guerra, o processo não é diferente, pois o estado de guerra vai estabelecer novos parâmetros norteadores das relações sociais e essa situação específica vai gerar um teatro que reflita as condições de vida provocadas pela convivência diária com bombardeios e mortes.

Brecht: Muitas coisas aumentarão com a guerra / Aumentarão / As posses dos poderosos / E a pobreza dos que nada têm / Os discursos dos governantes / E o silêncio dos governados.


Brecht vive a experiência das duas grandes guerras mundiais e isso vai marcar irreversivelmente toda sua obra. Formula uma nova teoria de teatro que visa explicar e fazer entender as lutas que o homem trava no seu dia-a-dia contra os diversos tipos de opressão, das mais simples às mais complexas. Acredita no teatro como um poderosíssimo agente de transformação social e busca, a cada instante de sua vida, novos elementos que contribuam para o melhor entendimento das relações sociais. Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos dentro do respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as ações se realizam), mas também que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse mesmo contexto.  É um pacifista e a condenação da brutalidade da guerra está presente em diversas peças e inúmeros poemas. Coloca o seu teatro à disposição da luta pela paz, pela democracia e pelo socialismo. Um teatro que promova um posicionamento crítico e leve a uma transformação: sem opiniões e objetivos nada se pode representar, nada se pode mostrar: como é que alguém poderá discernir o que é que vale a pena saber? A menos que o ator se satisfaça em parecer um papagaio ou macaco, ele tem de adquirir conhecimento sobre o convívio humano, patrimônio de sua época. As terríveis experiências da guerra e sua incansável luta contra o capitalismo vão balizar seu pensamento teatral anticapitalista e antiimperialista. Brecht propõe uma profunda e radical reorientação do fazer teatral, norteado pelo materialismo histórico e dialético, estabelecendo novas possibilidades de análise, como podemos ver por exemplo, em Mãe Coragem e Seus Filhos, escrita nos anos 1938/39:

Capelão – Estão enterrando o general. É um momento histórico.
Mãe Coragem – Golpearam minha filha no olho. Para mim este é que é um momento histórico. Ela já está meio destruída, não vai nunca conseguir um marido. E é muda, também por causa da guerra – quando era criança um soldado lhe enfiou alguma coisa na boca. O Queijinho (seu filho) eu não vou ver mais; onde está Eilif (outro filho) só Deus sabe. Maldita seja a guerra!

Costuma-se dizer que o teatro “mexe com as pessoas”. Na verdade, o teatro, por suas características, tem uma capacidade extraordinária de transformar as pessoas. E como são os homens que transformam a sociedade, o teatro tornar-se, então, um grande cadinho de inquietação, onde se estimulam e se aprimoram as consciências. Provocando uma reflexão profunda sobre as relações sociais estabelecidas no palco, o homem é instigado a lançar um novo olhar sobre a sua própria existência e dela passa a questionar pontos que antes não lhe preocupavam. E essa tomada de posição, provocada por uma relação íntima, visceral e única – ator/público –, é que faz do teatro, sim, um grande agente de transformação. O fato de ser obra de arte viva lhe confere qualidades específicas, que as outras artes não conseguem atingir tão plenamente. O ator em cena promove entendimentos e tomadas de posição que poucos discursos políticos conseguiriam. Isso confere ao ator e ao homem de teatro uma responsabilidade histórica da qual não podem se furtar, sob o risco de sua arte se consumir em si mesma. Com os olhos voltados para o mundo, o teatro se apropria dos problemas de outros povos e os toma para si, e sobre eles registra para o seu público o seu compromisso histórico. Os conflitos e as dores dos homens não mudam muito. A violência atinge a todos, em maior ou menor grau; sua discussão não é qualitativa. Não se pode, portanto, pensar na guerra como um fenômeno que atinge somente aquele determinado povo; sua brutalidade vai encontrar eco em outros povos, que vão reagir a ela solidariamente e, com certeza, o teatro estará pronto para gritar, com todas as suas possibilidades, se insurgindo declaradamente contra os atos de violência inerentes à guerra, tornando-se, assim, uma arte internacionalista.

Estamos vivendo um momento histórico em que a ocupação a países soberanos está na ordem do dia! O mundo foi, novamente e de forma arbitrária, dividido em dois blocos: o eixo do bem contra o eixo do mal. Sem a “ameaça” do bloco socialista no leste europeu, o império norte-americano teve que buscar imediatamente novo inimigo para continuar sua insaciável necessidade de dominação! Mas temos que ter claro também que a resistência ao projeto imperialista ganha mais forças e mais adeptos. Nos últimos anos tenho dedicado meu trabalho de dramaturgo e encenador teatral a uma profunda discussão sobre a guerra. Ciclo que se iniciou com a estréia de TROIANAS, em 2002, passando por CANUDOS – um retrato de um dos maiores massacres cometidos em nosso país –, em 2004, depois com CANTOS DE AMOR MULHER – um terrível lamento de mães que perderam seus filhos na guerra de Tróia –, em 2005 e, finalmente, JOANA – a luta de Joana Darc contra a ocupação inglesa na França, estabelecendo claramente uma denúncia da invasão do Iraque.

A guerra é uma cruel realidade que ainda nos acompanha. Hoje acompanhamos ao massacre que ocorre na Líbia, com as forças da ONU matando civis. O modelo de democracia imposto pelos Estados Unidos só se concretiza a partir do uso da violência. É isso que se faz! É a isso que assistimos! Mais uma vez, então, é preciso debater, refletir e buscar caminhos de luta no sentido de pressionar governantes para que revejam suas políticas externas e para que o teatro continue, como sempre, a serviço da paz mundial!

* Esse artigo foi publicado por ocasião da realização da 5a. edição do ECUM/2006, que trazia o tema O TEATRO EM TEMPOS DE GUERRA.

SADE, DOS MALES... O MAIOR


Espetáculo produzido pela Companhia de Teatro, dirigido por Luiz Paixão.
Cena: A morte do Divino Marquês
Elenco: Anália Marques, Danuza Maia, Flávia Dias, Mariana Bizzotto,Alberto Tinim, Marco Fugga

 


 Poucos artistas foram tão incompreendidos, perseguidos, negados e execrados quanto o Marquês de Sade (1740-1814). Ainda hoje, continua sendo visto com uma carga de preconceito extraordinária. Objeto de incompreensão quase constante, sua obra pouco conhecida, povoa o imaginário das pessoas que dela tiram suas conclusões sem ler uma linha sequer. Sade é aquele cara do sadismo, né? – alguém me indagou num misto de dúvida e certeza quando comentei que estava montando um espetáculo sobre o Divino Marquês. Mas Sade é assim, ele mesmo já sabia: São minhas desgraças, meu descrédito, minha posição que aumentam meus erros, e enquanto não for reabilitado, tudo de mal que acontecer nas redondezas será sempre atribuído à mesma pessoa: o Marquês de Sade.

A expressão “sadismo” tem sido usada de maneira viciada e, por vezes, bastante leviana. É preciso compreender que sua obra é um grito de revolta e denúncia contra a hipocrisia reinante. O mal uso de Sade e do sadismo tem servido para justificar atrocidades e perversões que nada tem com o homem Sade e sim com seu imaginário e sua profunda crítica ao comportamento social de sua época. O sadismo surgiu antes, bem antes de Sade. Não foi ele quem jogou escravos para os leões nas arenas romanas nem mesmo queimou mulheres durante a Santa Inquisição ou guilhotinou milhares no regime de terror da França republicana. Ele mesmo deixa bastante explicito: “sou um libertino, mas não sou nem um criminoso nem um assassino”. Octavio Paz afirma, com toda generosidade e compreensão do universo sadeano e sua história de vida: “o filósofo do sadismo não foi aquele que vitima, mas uma vítima, o teórico da crueldade foi um homem bondoso”. Por outro lado, o sadismo também não se esgota em Sade: as fotos de Abu-Graib reveladas ao mundo, além de denunciar os crimes de guerra cometidos pelo “eixo do bem”, onde se rasgou a Convenção de Genebra, serviram para nos mostrar que os escritos de Sade são brincadeiras de criança, comparados com os horrores ali estampados – uma verdadeira demonstração de barbárie. E não era fruto da “imaginação mais dissoluta e impura já vista neste mundo”...

Fernando Peixoto: “Sade é produto da repressão (...) um grito desesperado e angustiado, o incontrolável extremo de um individualismo absoluto que limita bastante o alcance ou o significado de suas idéias, a ânsia de liberação, gigantesco protesto em favor do homem livre, a denúncia de uma civilização fundamentada nos instintos planejadamente reprimidos, baseada na hipocrisia, no preconceito, na corrupção, na injustiça, na divisão social e na mais feroz crueldade”. A obra de Sade é sua vida, e sua vida é desnudada em sua obra, sem nenhum pudor ou receio. Como bem ressalta Octavio Paz, “sua vida não é menos extraordinária do que sua obra”. É na literatura que ele encontra os meios para se vingar da sociedade e lançar seu grito de revolta contra tudo e contra todos. Ambas, vida e obra, unas, profundamente mescladas e de uma honestidade extraordinária, ainda que, em sua mais pura desonestidade, como Sade muitas vezes se nos revela. Ambas ateístas, ambas sexuais, ambas fruto de uma repressão violenta.

Sade passou vinte e sete anos da sua vida entre prisões e sanatórios (onze ao todo, sob três diferentes regimes). E foi na prisão que nasceu o escritor. Ironicamente, é na Bastilha, a mais temida das prisões da aristocracia francesa, que Sade lança o seu grito e expõe toda a podridão em que está chafurdado o seu tempo e sua própria classe. Da revolta de estar alijado do mundo, onde teve que viver entre a ilimitada libertinagem da nobreza de sua época e a desmesurada opressão de que foi vítima pelos seus iguais, surge uma literatura que vai denunciar o que o mundo tem de mais perverso e o homem de mais doente. É em meio ao sufocamento físico das prisões e do Hospício de Charenton, onde viveu os últimos onze anos de sua vida, que Sade imagina e dá forma literária a tórridas histórias de amor e onde brota sua verve mais criativa, capaz de criar personagens antológicas como Justine, Juliette, Eugénie e tantas outras, e histórias como Cento e Vinte Dias de Sodoma ou A Filosofia na Alcova que, mesmo hoje, aos olhos do século 21, nos assombram, pois nos colocam de frente com nossa hipocrisia e falsa moralidade. Na verdade o castelo Silling é uma Bastilha onde a opressão se estabelece através da dominação sexual e da supressão da liberdade dos prisioneiros do grande banquete. Os protagonistas dos Cento e Vinte Dias... são os seus carrascos da Bastilha. E seu grito de liberdade é denunciar os horrores ali cometidos, mas não foi ouvido e ele continuou gritando desesperadamente: Que fiz eu para merecer ser enterrado vivo? Qual é minha culpa? Qual foi meu crime? Nenhum, a não ser o fato de ter o sangue muito quente. E acaso posso controlar isso? Que meu sangue ferva quando o sangue do outros apenas fica frio ou mesmo gelado? E por isso devo ser preso? Quando, pelo contrário, é tão óbvio que esta prisão é exatamente o que vai esquentar ainda mais meu sangue? Quando meu ódio não se extravasar, vai, certamente, voltar-se para dentro, e então nada me pode impedir de abrir a cabeça contra estas paredes em que me encerraram... O próprio Deus teria de se masturbar, se fosse preso neste buraco!

Sade sofreu, ao longo de sua vida, toda sorte de perseguição, seja por parte da família – sua sogra foi sua mais ardorosa e implacável inimiga que sempre conseguiu que ele permanecesse preso – ou da própria justiça aristocrática, quando foi julgado e condenado à morte em efígie: “...o senhor Marquês de Sade foi executado até morrer pela corda e depois executado pelo fogo e suas cinzas jogadas ao vento pelo executor da alta justiça...”

Os anos passam, os séculos também... a ignorância e a intransigência insistem em continuar vivas e cada vez mais fortalecidas; o que não passa é essa postura, ao mesmo tempo discriminatória e meio auto-defensiva que se tem contra Sade, pois ele nos ameaça a todos com seus escritos e seus preceitos filosóficos, ainda que tentemos evitá-lo. Fernando Peixoto analisa com muita propriedade e conhecimento de causa as qualidades literárias e filosóficas do Marquês: “Na verdade, Sade é um escritor vigoroso, ainda que muitas vezes cansativo pela repetição de temas e idéias. Um pensador brilhante e às vezes lúcido, ainda que em muitos momentos confuso e contraditório, superficial e mesmo inaceitável”. E Octávio Paz completa com sabedoria: “Sade é um autor que merece ser lido. É um autor perigoso? Não acredito que haja autores perigosos; melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles próprios e sim nas paixões de seus leitores.”

Esse monstro que se pintou ao longo do tempo, sobre cuja obra e sobre sua própria história cunhou-se o conceito de sadismo (cf. Vocabulário da Psicanálise: perversão sexual em que a satisfação está ligada ao sofrimento ou à humilhação infligida a outrem.), nos persegue implacavelmente desde o dia em que arriscou a primeira linha literária, nos levando a nos confrontar com nossos fantasmas e nossas contradições mais profundas. Quando Simone de Beauvoir, em seu brilhante ensaio, perguntou Deve-se Queimar Sade?, não foram poucos os que correram e gritaram “sim”, sem saber que ela jamais acenderia a fogueira. Todos querem queimar Sade pois ele, sim, acende a fogueira que atiça o fogo adormecido em nós e nos faz queimar de vergonha e falso moralismo quando nos deparamos escandalizados ante as perversidades mostradas e pensamos que no-fundo-no-fundo gostamos do que estamos lendo. E tentamos desesperadamente negar. Será que somos todos sádicos? Queimaríamos Sade?

Já velho e alquebrado, internado no hospício de Charenton, Sade sofre o último golpe contra sua liberdade quando recebe “ordem de isolamento em Charenton, por estar atacado da mais perigosa de todas as enfermidades mentais (...) Monsieur de Sade será colocado imediatamente em aposentos onde lhe seja impossível ter qualquer comunicação com as pessoas, dentro ou fora da instituição de Charenton. Será exercida rigorosa fiscalização para que ele não disponha de lápis, papel, penas, tinta, para que não mantenha, nem mesmo por escrito, contato com outras pessoas”. E, mesmo depois de morto, em 1956, foi figura central de um processo contra Jean-Jacques Pauvert, que tentava editar suas obras.

Sade pagou e continua pagando caro por tudo que pensou, ousou e fez – Sou libertino sim, eu confesso. Imaginei tudo o que se pode conceber neste gênero, mas certamente não fiz tudo o que concebi e seguramente jamais o farei. O julgamento e condenação de Sade não se esgotaram quando o executaram em efígie. No confronto das idéias, quando ele perdeu, foi que ele ganhou. Sua derrota se transformou em sua vitória, porque os outros são apenas “os outros”. Não foi a minha maneira de pensar que provocou a minha desgraça. Foi a maneira de pensar dos outros. Sua obra, ainda que tendo parte dela destruída até mesmo por um de seus filhos, sobreviveu. Sua memória não foi esquecida como um dia ele pediu. Ao contrario: seu pensamento está mais vivo que nunca. Suas obras a cada dia merecem novas edições e cada vez mais são entendidas como cultura e não como pornografia barata. Simone de Beauvoir disse que quando Sade foi preso na Bastilha agonizava o homem e nascia o escritor. E o escritor sobreviveu a tudo que tentaram infligir contra ele. Sade, um dia, vaticinou: Matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei. E não mudou!...