Sobre literatura

CONTEÚDO

1 - Quiolombos e sindicatos de classe como espaço de organização e resistência
2 - O urbano e o rural sob o domínio do capitalismo nas obras O cortiço e Luzia-homem
3 - Homem e espaço: convivências e interpetrações
4 - O sertão dos sertões e veredas (com pequena travessia em Walter Benjamin)
5 - Literatura comparada dois pontos (tentativas de entendimento e conceituaçao, com ajuda não autorizada de Jorge Luis)
6 - Quem conta um conto... nem sempre escreve um conto!





QUILOMBOS E SINDICATOS DE CLASSE
COMO ESPAÇO DE ORGANIZAÇÃO E RESISTÊNCIA

1 – OBJETIVO

A partir do poema SAUDAÇÃO A PALMARES, do livro OS ESCRAVOS, de Castro Alves e do capitulo NUM SETOR DA LUTA DE CLASSES, do romance PARQUE INDUSTRIAL de Patrícia Galvão, pretende-se estabelecer a relação existente entre eles como referência a um modelo de organização e resistência de escravos e operários no Brasil.


2 – À GUISA DE PREÂMBULO HISTÓRICO

2.1 - A relação capital/trabalho se manifesta e se aprofunda nas primeiras décadas do séc. XX no Brasil. A burguesia industrial e urbana, substituindo a burguesia rural cafeeira que se encontrava em franca decadência, se assenhora da produção econômica do país, expandindo seu poder nos diversos setores, promovendo com isso o surgimento da classe operária brasileira.

No início do século [vinte] os sindicatos começam a despontar como modo de organização operária, ao lado das caixas mutuais, das sociedades beneficentes, das ligas de resistência. Seus membros – onde se destacam os estrangeiros, os trabalhadores qualificados, os semi-artesãos – são muitos deles trabalhadores que visam apenas a defender-se coletivamente contra a exploração sem qualquer projeto de subversão da ordem social. Mas a parcela mais combativa, mais capaz de unir a classe e enfrentar os patrões é constituída por anarco-sindicalistas. (SADER et ali, 1980: 2)

Os movimentos grevistas promovidos pelo anarco-sindicalismo cedem parte do seu espaço de influência ao PCB, fundado em março de 22 que, com propostas mais concretas, objetivas e científicas, através de uma análise marxista da realidade, desenvolve um trabalho de conscientização e organização mais profundo do proletariado brasileiro. O PCB, como organismo representativo dos operários, exerce uma influência bastante consistente nos sindicatos de classe que, por sua vez, são o organismo fundamental para organização e reivindicação dos trabalhadores:

O sindicato ainda é um lugar privilegiado pelos trabalhadores no seu combate pela independência de classe (...) O maior ou menor grau de independência sindical depende da força social do movimento próprio dos trabalhadores. (NOTA DO EDITOR, 1978: 7 e 14)
           
            A importância dos sindicatos nas lutas e conquistas dos trabalhadores se fez sentir ao longo da história, em diversos momentos. Trotski, destacando a importância dos sindicatos para as classes trabalhadores, acentua que:
           
Se o proletariado, como classe, fosse capaz de compreender imediatamente sua tarefa histórica, não seriam necessários nem o partido nem os sindicatos. A revolução teria nascido simultaneamente, com o proletariado. (TROTSKI, 1978: 20)

2.2 - A luta contra a escravidão no Brasil não ficou restrita à ação de intelectuais, juristas, artistas e pessoas de bem que repudiavam essa terrível relação de trabalho. Ao contrário do que sempre ouvimos, o negro não se “adaptou” ao trabalho escravo. Vários foram os mecanismos encontrados para se libertar do jugo opressor:

Onde houve escravidão, houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob ameaça de chicote, o escravo negociava espaços de autonomia, fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente. (REIS: 4).

Os quilombos foram a forma mais avançada que os negros escravos encontraram para se organizar e fugir do trabalho forçado. Local de refúgio, trabalho e resistência, os quilombos se caracterizavam também por serem “sociedades político militares, que nasceram de movimentos de insurreições, levantes, revoltas armadas (...) os Quilombos representam uma das maiores expressões de luta organizada no Brasil, em resistência ao sistema colonial-escravista” (SIQUEIRA: 3).

Palmares – Quilombo de Palmares ou República de Palmares – foi o mais importante e duradouro quilombo dentre tantos existentes no Brasil. Consta que Palmares durou mais de um século (1580-1710). Podemos categorizar o modo de organização da República de Palmares como comunismo primitivo, onde encontramos uma sociedade sem classes, onde “tudo é de todos e nada é de ninguém, tudo que plantam e colhem é depositado em mãos do Conselho” (SIQUEIRA: 11).

3 – PARÂMETROS PARA UMA COMPARAÇÃO

Estabelecer um quadro comparativo entre SAUDAÇÃO A PALMARES e NUM SETOR DA LUTA DE CLASSES, nos leva a entender inicialmente os possíveis pontos em comum entre um quilombo (particularmente o de Palmares) e um sindicato de trabalhadores. O mais importante a se observar é organização e resistência. É função de um sindicato organizar seus associados e dar-lhes força pra resistir às pressões impostas pelo capitalismo; do quilombo não se espera postura diferente no que diz respeito à organização de escravos fugidos e sua preparação para resistir aos ataques dos senhores coloniais através dos seus capitães-do-mato e da própria força policial de estado que defende seus interesses.

Há que ressaltar, porém, um fator que os coloca – sindicatos e quilombos – em dois campos distintos: os quilombos estão em estado de guerra permanente, a ameaça de destruição é constante e os negros lutam de armas em mãos para garantir sua sobrevivência; os sindicatos, apesar de enfrentarem a luta de classes no seu dia-a-dia, não estão enfrentando um processo revolucionário no qual a luta se estabelece de maneira diversa. A luta sindical passa também pelo enfrentamento da repressão policial, mas não somente: suas reivindicações se estabelecem num primeiro momento na mesa de negociações com os patrões e, em última instância, a utilização da greve como força máxima de pressão, momento no qual poderá ocorrer o confronto com o aparato policial.


3 – PERCURSOS SEMÂNTICOS

3.1 – “NUM SETOR DA LUTA DE CLASSES”

Podemos dividir o capítulo NUM SETOR DA LUTA DE CLASSES em duas partes distintas: a) descrição do espaço físico do sindicato de classe e os grupos de trabalhadores que participam da reunião e b) o debate em torno dos temas de interesse dos trabalhadores.

O próprio título já nos remete ao espaço em que a cena transcorre. Sabemos que é um espaço privilegiado para a organização dos trabalhadores, suas reivindicações e sua luta contra a burguesia. A expressão LUTA DE CLASSES nos remete ao conflito fundamental capital/trabalho, patrão/empregado ou, definindo melhor a questão de classes, burguesia/proletariado. Tomamos conhecimento também de que é um lugar pobre. Os elementos figurativos denotam essa realidade: uma mesa, uma toalha velha. Uma moringa, copos. Uma campainha que falha.

A narradora nos lança uma frase aparentemente solta, no início do capítulo – Nós nunca temos tempo de conhecer nossos filhos!  –, ameaçando um discurso de um personagem qualquer, porém interrompe a narrativa, nos remetendo a um “elemento retardador” (AUERBACH, 1976, 3), descreve o espaço e o motivo de estarem aquelas pessoas reunidas – Sessão de um sindicato regional  – para só depois, então, retornar ao discurso do personagem em questão.

Ao apresentar-nos os diversos grupos que compõem a reunião, apresenta-nos também os diversos interesses em jogo, revelando-nos que dentro do movimento operário há divisões, não só nos objetivos imediatos de cada um, mas também nos objetivos ideológicos e políticos no nível da organização proletária, pois ali estão “os que procuram na união o único meio de satisfazer as suas reivindicações imediatas, os que são atraídos pela burocracia sindical. Os futuros homens da revolução. Revoltados. Anarquistas. Policiais”.

É de se esperar – o que de fato vai acontecer no decorrer da reunião – que o encontro de diferentes grupos e interesses provoque um conflito que interfira no bom andamento da reunião. Quando se provoca o encontro de operários Conscientes. Inconscientes. Vendidos., o confronto de ideias há que se estabelecer.

A retomada da primeira frase do capítulo – Nós não tempos tempo de conhecer nossos filhos! – não é, absolutamente, circunstancial. Ela inaugura o discurso do personagem cozinheiro (interrompido anteriormente) que é caracterizado simultaneamente por elementos figurativos e temáticos. Sua descrição física e psicológica é coroada focando as mãos do personagem. Engels afirma que a mão

não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele. Unicamente pelo trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos músculos e ligamentos e, num período mais amplo, também pelos ossos; unicamente pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas e cada vez mais complexas foi que a mão do homem atingiu esse grau de perfeição que pôde dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, às estátuas de Thorwaldsen e à música de Paganini.” (ENGELS, 1975: 64)

As mãos do cozinheiro são marcadas pelo uso, são “enérgicas” e trazem a marca de sua utilização no trabalho – Estão manchadas pelas dezenas e dezenas de cebolas picadas diariamente no restaurante rico onde trabalha. O discurso do personagem descreve a trajetória diária do trabalhador explorado pelo capital. Sua vida é toda em função do trabalho – Não temos descanso dominical. A narradora confirma a veracidade de suas palavras, assumindo uma postura claramente favorável ao trabalhador – A voz da verdade, todos se agitam nos bancos duros. A sala toda sua. – A verdade é tão contundente que a sala sua devido ao calor de cada palavra dita pelo cozinheiro, que reflete a condição de cada um ali presente, com exceção do policial Miguetti, infiltrado na reunião.

Miguetti se manifesta contra o longo discurso do cozinheiro, tentando interromper seu fluxo de raciocínio e, ao mesmo tempo, visando “minar” a reunião. Mas é voto vencido, pois todos aprovam a continuidade da reunião, com destaque para o ferreiro, que denuncia a postura do policial contra os interesses da nossa classe (32). A autora faz um jogo de palavras utilizando “bate” com duplo sentido: o ofício do ferreiro é bater o ferro e sua palavra bate energicamente na assembleia. Um outro personagem – o operário da construção civil – opera um discurso que se relaciona com sua profissão, ao dizer que Nós construímos palácios e moramos pior que os cachorros dos burgueses. (33) Dando continuidade ao discurso semântico, a narradora cede voz a uma mulher – uma operariazinha envelhecida – que cuida da mãe e perdeu o emprego. Não deixa de colocar também em cena uma criança que pateticamente acompanha a reunião e parece que sente tudo o que falam.

Para encerrar o capítulo cria uma simultaneidade de imagens para nos revelar que do outro lado da cidade, no espaço reservado aos burgueses, os teatros estão cheios e as mesas fartas. E reforça a denúncia da exploração burguesa quando apresenta o abismo que separa burgueses e proletários: As operárias trabalham cinco anos para ganhar o preço de um vestido burguês. Precisam trabalhar a vida toda para comprar um berço.

A revolta está sendo preparada em fogo brando: Isso tudo é tirado de nós. O nosso suor se transforma diariamente no champanhe que eles jogam fora! (33)


3.2 – “SAUDAÇÃO A PALMARES”

Ao nos depararmos com o título SAUDAÇÃO A PALMARES, nos deparamos também com o universo semântico a ser abordado no poema, pois o título é sua síntese e definição semântica. Não esperamos outra coisa senão uma manifestação claramente abolicionista em louvor à luta e conquista de um espaço geográfico onde o negro é livre e senhor do seu destino. Somos, então, chamados a participar, juntamente como o poeta narrador, de um canto em defesa do mais importante quilombo formado no Brasil colonial. Se nos decidirmos por continuar a leitura, seremos cúmplices neste grito de amor à liberdade. Sejamos, então, cúmplices.

A primeira informação que nos é dada é a localização física do quilombo – Nos altos cerros erguido – que se encontra estrategicamente situado no alto de uma colina, espaço privilegiado para proteção contra o inimigo, porém, o mais importante encontramos no segundo verso – Ninho d’águias atrevido – pois aí, temos várias informações extremamente relevantes:

ninho – espaço de proteção e acolhimento do negro fugido do cativeiro que busca sua liberdade através de sua organização, visando à autoproteçao. Segundo o Aurélio: “Refúgio, abrigo. Toca, covil, valhacouto”. Encontramos também no Aurélio a definição de ninho como “A pátria”, o que nos remete a uma representação da África, lugar de origem dos negros, confirmada por Siqueira:

Africanos de diferentes grupos étnicos mesclam-se nos quilombos, como forma de resistir a uma determinação política anterior de separá-los de tudo o que significasse expressão identitárias de um povo: línguas, famílias, costumes, religiões, tradições. Tudo isso é retomado em todos os momentos da resistência quilombola, na reinvenção de políticas e estratégias de luta pela liberdade, sempre com postura crítica, face ao colonizador, ao escravocrata, ao imperialista. (SIQUEIRA, 4)

águias – encontramos aqui, através da comparação, uma definição do caráter e perfil psicológico das pessoas que ocupam aquele espaço. Novamente nos valemos do Aurélio, que nos define as águias como aves “notáveis pelo tamanho, vigor, acuidade de visão, e capacidade de voo”. A imagem lançada pelo narrador não difere das definições do Aurélio. A águia faz seu ninho no mais alto, para que de lá, além de proteger os filhotes dos predadores, tenha uma visão privilegiada do entorno, tanto para defesa quanto para o ataque a presas. É bastante significativa a presença de águias e condores na poesia romântica. Não apenas em OS ESCRAVOS Castro Alves vai lançar mão dessa imagem como símbolo de liberdade.

A presença do condor, símbolo da inspiração na última fase romântica, era um dos meios de concretização para os seus anseios de procura do infinito. Também a águia e o albatroz aparecem simbolizando o mesmo sentimento de busca das alturas, uma vez que os românticos não se conformavam com as limitações e os mistérios que a vida lhes impunha. (HILL, 1978: 35)

No caso dos quilombos a realidade não era diferente, pois eles “viviam nas florestas, nas matas, nas montanhas e, ao mesmo tempo, em contato com a sociedade envolvente que as rodeava, as vigiava, controlava e perseguia(SIQUEIRA, 4). Essa característica física e geográfica foi fundamental para a longa existência do Quilombo dos Palmares, localizado no estado de Alagoas.

Algumas das razões por que as Entradas ao Quilombo de Palmares não conseguiam facilmente destruí-lo eram os caminhos, a falta d´água, o desconforto dos soldados, elevadas serras, matas espessas, muitos espinhos, muitos precipícios; tudo concorria para que os soldados, que levavam às costas a arma, pólvora, balas, capote, farinha, água, peixe, carne e rede para dormir, enfrentavam dificuldades, além dos rigores do frio entre as montanhas. Isso tornava quase impossível o acesso ao local do quilombo. (SIQUEIRA, 9)

atrevido – novamente o caráter altivo e ousado do quilombola é exaltado, reforçando sua luta e defesa dos seus direitos. Atrevido: aquele que se atreve, aquele que ousa. Atrevido: o negro escravo se atreve a romper com sua condição; aquele que se nega ser escravo, ser objeto, ferramenta, animal que se compra olhando os dentes. Atrevido: o que rompe os grilhões e alça voos sem limites de bridão.

Ainda na primeira estrofe (versos 3 e 4), uma saudação é feita qualificando os moradores daquele quilombo. Aqui, devemos entender o adjetivo bandido não na definição regular, mas entendendo-o como referência àquele que rompe com uma condição de submissão a que está obrigado, colocando-se à margem do sistema vigente escravocrata. Bandido é o que subverte a ordem e cria, a partir de sua organização em quilombos, uma nova ordem onde impera a liberdade e o bem comum. E isso se confirma no poema, no verso seguinte em que esse bandido é comparado ao jaguar, animal que tem como características a força, a agilidade e a beleza.

Para encerrar a primeira estrofe, o narrador fala dos palmares (palmeiras) para nos descrever Palmares (quilombo, primeiro verso da terceira estrofe):

Foram as árvores, principais palmeiras agrestes, que deram ao terreno o nome de Palmares. Estas palmeiras são tão fecundas para todos os usos da vida humana, que delas se faz vinho, azeite, sal, roupas; as folhas servem para cobrir casa; os ramos, para os esteios da cobertura da casa; os frutos servem de sustento; além de todos os gêneros de ligaduras e amarras. (SIQUEIRA, 8).
           
As folhas dos palmares rompendo o colúmbios ares, introduzem a ideia de liberdade que será reafirmada ao longo do poema. Podemos identificar também uma referência aos índios brasileiros que sofreram com a tentativa de escravização por conta do colonizador português.

            A região dos palmares é cúmplice na luta do quilombo, pois contribui com a segurança dos negros, alertando-os, através dos ecos estridentes, da aproximação dos caçadores de escravos fugidos. Os gritos dos capitães-do-mato, os latidos dos cães e o som estridente das trompas são denunciados de árvore em arvore, de pedra em pedra e os quilombolas podem se proteger para enfrentar os corvos negros que revoam a região.
           
            Identificamos, aqui, o único momento do poema em que o narrador utiliza a figura do animal como representação do inimigo. Ele que vinha sempre e continuará sendo representação da beleza, agilidade, coragem e vigor. É importante observar, também, que os corvos são negros e revoam o refúgio de negros. O negro é colocado simultaneamente em dois espaços que se confrontam ideológica e politicamente. Uma visão dialética do negro escravo que luta por seus direitos e sua liberdade em contradição com a representação simbólica do corvo – ave tida como agourenta pela cultura popular –, que também é negro, que quer impedir o negro liberto de garantir sua liberdade.

            Na terceira estrofe, percebemos claramente uma intratextualidade, onde o narrador opera nítida referência ao poema O NAVIO NEGREIRO, contrapondo de forma extraordinária as duas situações vividas nos “navios”: no navio negreiro o negro é transportado para o seu trágico destino de ser cativo e escravo, apartado de sua terra e sua gente, tornado objeto e ferramenta de trabalho, o navio é sua prisão, a que o poeta descreve como quadro de amarguras que transporta tétricas figuras, provocando a visão de uma cena infame e vil; Palmares que abre a vela ao trovão, é a barca de granito que recebe o negro liberto do seu cativeiro no porto seguro do seu bojo; ali, o negro encontra não mais o tinir dos ferros... estalar do açoite..., mas refúgio onde viverá, mesmo que ameaçado e perseguido, em paz e liberdade.

            Palmares não é apenas um espaço físico, estático e frio, é antropomorfizado em guerreiro que de espada em punho defende aqueles que abriga. Não se contenta em ser refúgio somente. Do alto de si mesmo ganha voz e em seu discurso libertário, grita para os que ameaçam aqueles que protege:

Descei de cada horizonte...
Senhores! Eis-me de fronte!

O desafio é lançado, pois sabe sua força, seu poder e sua garra. Não vai se curvar ante a ameaça. E não para por aí: ironiza, debocha. E o poeta percebe e exalta

O riso de um monte!
E a ironia... de um chacal!

            Novamente a zoomorfização: o poeta busca na astúcia do chacal a comparação com as estratégias montadas pelos negros de Palmares para se defenderem. Local de difícil acesso (conforme ressaltado anteriormente, p. 7) e organização social.

            A quinta estrofe, onde a metalinguagem surge para apoiar e reforçar o discurso abolicionista, divide-se em duas partes: nos quatro versos iniciais o poeta desafia os poetas eunucos devassos, vendidos ao mando dos reis, que apenas cantam os marmóreos paços. Enquanto ele, o poeta dos escravos, busca outros motes e outros cantares. A mulher surge nesta e nas próximas estrofes como idealização de Palmares. Suas formas e sua beleza seminua servem de modelo a essa pátria negra que ganha seus contornos e sua sensualidade. A mulher negra, crioula do seio escuro, é a grande musa que o inspira. Mas a mulher negra não é apenas amor, é também lutar e vencer e defender o seu espaço.

            Caçadora – em contraposição ao caçador da segunda estrofe, essa mulher caçadora seminua é a negra Diana selvagem, mulher de beijo puro e de nobre amor, não a caçadora por dinheiro ou glória. Caçadora companheira e cúmplice. Caçadora que também é Amazona guerreira. Mulher e natureza se confundem para cantar a resistência e a luta.

Torna-se difícil separar, na obra alvesiana, o aspecto lírico do épico, uma vez que toda ela se constitui do reflexo de uma natureza sensível ao amor, em toda a sua gama: do amor à mulher ao da natureza e ao do seu semelhante, quando defende as causas da justiça e da liberdade, pregando igualdade entre os homens. (HILL, 1978: 34-35)

            Finalmente, para encerrar o canto, o poema retoma seus primeiros versos. Inverte a ordem e conserva o sentido, até mesmo, ampliando-o:
           
Nos altos cerros erguido
Ninho d’águias atrevido.
Salve! – País do bandido!
Salve! – Pátria do jaguar!
Salve! – nos cerros erguido –
Ninho, onde em sonho atrevido,
Dorme o condor... e o bandido!...
A liberdade... e o jaguar!

4 – CONCLUSÃO I

A obra de arte responde ao seu tempo e à sua história, e a história é feita de luta de classes (MARX, 1998: 135), portanto, a obra de arte está inserida no seio da luta de classes. Cabe ao artista engajar-se nessa luta.

Na palavra está a manifestação dos sistemas de valores, da ideologia, constituída e em constituição. Numa sociedade de classes, as práticas lingüísticas estão plenas das relações de classe. (...) a história está na língua. (BACCEGA, 2007: 32)

Castro Alves e Pagú, embora tão distantes no tempo, no espaço e nas propostas estéticas, lançaram mão da palavra e dela fizeram instrumento de luta em favor daquilo que julgavam justo e correto: a defesa dos oprimidos e explorados. Os dois se comprometeram com a luta de classes, cada um no seu tempo e em seu espaço enfrentou a burguesia e estabeleceu um discurso que não deixa dúvidas em relação à posição assumida: Castro, os escravos; Pagú, o proletário. 


Antônio de Castro Alves (1847-1871)

não foi apenas um poeta, foi um figurizador. Enfocando a escravização do negro, denunciou o estado de sujeição do homem quando escravo de interesses e circunstâncias: mais aviltante do que a subjugação física é a escravidão das ideias da qual o homem tem de se livrar. (HILL, 1978: 11)



Patrícia Rehder Galvão (1910-1962)

foi a militante do ideal. Por toda sua vida, colocou-se a serviço de ideias, ideologias e do progresso cultural, corporificando a noção de engajamento e envolvimento a um grau máximo. (FERRAZ, 2006: 7)

Romantismo e modernismo, dois discursos distintos tornados próximos por dois artistas militantes; dois artistas que não aceitaram a ordem das coisas como definitivas; dois artistas que se indignaram e transformaram o seu discurso em arma e veículo de conscientização e luta; dois artistas para quem a obra de arte não existe apenas em si, mas se completa na relação com o outro, se do outro faz objeto de seu discurso para tornar sua vida menos dura. Parafraseando Bertolt Brecht, acreditaram que “a única finalidade da [arte] está em aliviar a canseira da existência humana” (1) (BRECHT, 1991:165). Seu discurso foi o discurso da classe oprimida, pois “todo discurso está inscrito nas relações ideológicas de classe. (BACCEGA, 2007: 52).

Castro Alves e Pagú assumiram um compromisso com seu tempo e sua história e fizeram da palavra “a arena privilegiada onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, 1988: 32), e criaram, ambos, obras, embora distintas em sua forma, bastante próximas em seu conteúdo, pois trazem a marca da denúncia de uma realidade social injusta e cruel. E com essa obra lutaram por um tempo melhor.


5 - CONCLUSÃO II

            Os quilombos foram o principal espaço de resistência para os escravos fugidos. Ali se refugiaram, se organizaram e resistiram aos ataques, lutando e morrendo por sua liberdade. Ao abandonarem as fazendas nas quais eram submetidos ao cativeiro escravo, os negros abandonaram, também, aquela relação de trabalho. E, uma vez rompida, estabeleceram, dentro do quilombo, novas relações de sobrevivência. Surgiram novas necessidades e uma nova forma de organização foi estabelecida. O rompimento com a relação senhor/escravo abriu caminho rumo ao comunismo primitivo. A destruição total, não só do quilombo de Palmares, como também de todos os outros, encerra uma experiência e com o fim da escravidão esgota-se aquela forma de luta. O negro é jogado no mundo para enfrentar uma nova condição de vida para a qual não estava preparado. Agora, transformado em mão de obra barata, já nos primeiros anos do século vinte, encontra no movimento sindical uma nova forma de organização, e nele se filia, e nele se organiza.

            Quando os trabalhadores se organizam em sindicatos de classe, não abandonam a relação de exploração - capital/trabalho - a que estão submetidos. Sua organização visa à união de forças e conscientização para conquista de melhores condições de trabalho e salário. As conquistas dos operários, através de seu sindicato, são o resultado de lutas constantes, de acúmulo e aprimoramento político e ideológico. A organização sindical estabelece-se, portanto, num estágio mais avançado no que diz respeito às reivindicações e conquistas dos trabalhadores. Através de cursos, palestras, conferências e, sobretudo, o aprendizado adquirido no calor da luta diária, o trabalhador sindicalizado aprimora suas condições, não só de trabalho, mas também conquista um aprimoramento do seu nível cultural, político e ideológico. A luta forja o surgimento de um novo homem, e este novo homem luta para forjar o surgimento de uma nova sociedade. Sem exploração.


NOTA
(1) A frase, que pertence ao personagem Galileu, na peça Vida de Galileu, de Bertolt Brecht, é a seguinte: “Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Castro. Os escravos. Belo Horizonte: Editora Vega, 1977.
AUERBACH, Erich. Mimesis, 2. ed. revisada. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso – história e literatura. São Paulo: Editora Ática, 2007
BAKHITIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1988.
BRECHT, Bertolt. Teatro completo 6. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
FERRAZ, Geraldo Galvão. Apresentação. In: GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006.
GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006.
HILL, Telenia. Castro Alves e o poema lírico. Brasília: Edições Tempo Brasileiro, 1978.
ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, in MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos I. São Paulo: Edições Sociais Ltda, 1975.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Inverta, 1998





O URBANO E O RURAL SOB O DOMÍNIO DO CAPITALISMO NAS OBRAS
“O CORTIÇO” E “LUZIA-HOMEM”


 [a burguesia] afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exatidão religiosa do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno burguês. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar das inúmeras liberdades já reconhecidas e duramente conquistadas colocou unicamente a liberdade do comércio sem escrúpulos. Numa palavra, no lugar da exploração mascarada a exploração aberta, despudorada direta e árida. A burguesia despojou de sua aureola todas as atividade até então consideradas dignas de veneração e respeito.
Karl Marx / Friedrich Engels


1 – OBJETIVOS

Pretende-se, para um melhor entendimento da relação capital/trabalho, visando o projeto de iniciação científica – TRABALHADORES PROTAGONISTAS -, relacionar os personagens centrais dos romances O cortiço e Luzia-homem, proprietário e empregada, respectivamente, ambos vivendo sob o capitalismo e reagindo a ele. Através dessa relação, busca-se entender como o capitalismo influência os personagens e como, através de duas obras significativas da literatura brasileira, é possível compreender o seu processo de ascensão. 


2 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Na tentativa de traçar um perfil que, minimamente, aproxime a trabalhadora rural nordestina Luzia, do romance Luzia-homem e o proprietário urbano João Romão, de O cortiço, não temos alternativa senão partir de uma análise dialética e marxista sobre os efeitos do capitalismo na formação e deformação do caráter do homem e, mostrar como isso nos é apresentado e discutido, ainda que implicitamente, nas obras em questão.
            Separadas por apenas treze anos em suas publicações – O cortiço, 1890; Luzia-homem, 1903 –, podemos dizer que ambas se localizam no período de transição, no Brasil, do modo de produção escravista para o modo de produção capitalista.
Com o declínio do modo de produção escravista colonial e ainda nos quadros da formação social escravista, houve, portanto, um desenvolvimento de forças produtivas sob a direção da burguesia industrial emergente. Com ela e o jovem proletariado, nascia o modo de produção capitalista no Brasil. (GORENDER, 1982: 14)

A formação da burguesia brasileira se dá nesse período e aí podemos perceber a força nefanda do capitalismo e como ele embrutece o homem, não lhe deixando alternativas senão de se submeter a ele cegamente ou, compreendendo os seus mecanismos reagir, enfrentando-o com consciência e firmeza, não permitindo que ele nos devore e nos destrua, garantindo que não nos tornaremos objetos dele. Ao capitalismo não interessa a integridade humana e sim, única e exclusivamente, o que resulta da exploração da sua força de trabalho: o lucro.
No modo de produção capitalista os homens realmente são transformados em coisas e as coisas são realmente transformadas em “gente”. Com efeito, o trabalhador passa a ser uma coisa denominada força de trabalho que recebe outra coisa chamada salário. O produto trabalho passa a ser uma coisa chamada mercadoria que possui uma outra coisa, isto é, um preço. O proprietário das condições de trabalho e dos produtos do trabalho passa a ser uma coisa chamada capital, que possui uma outra coisa, a capacidade de ter lucros. Desaparecem os seres humanos, ou melhor, eles existem sob a forma de coisas. (CHAUÍ, 1985: 57-58)

            Para que exista capitalismo é preciso que exista burguesia; a existência da burguesia pressupõe a existência do proletário; a existência do proletário só se efetiva se houver mão de obra livre e assalariada, que vende sua força de trabalho para o proprietário dos meios de produção que é o burguês.
Burguês quer dizer proprietário. Burguesia quer dizer o conjunto de proprietários. Um grande burguês é um grande proprietário. Um pequeno burguês é um pequeno proprietário. Os termos burguesia e proletariado significam o mesmo que proprietários e operários, ricos e pobres, gente que vive do trabalho e gente que trabalha para os outros em troca de um salário. (LÊNIN, 1961: 107)


3 – O cortiço: escravos e assalariados – um percurso político e literário

O mais venturoso livro do naturalismo brasileiro (...)
análise da miséria econômica e social do negro e do mestiço,
explorado pelo branco português, locador de cubículos.
Fábio Lucas

O Brasil vive, na transição dos séculos XIX e XX, um período em que a sociedade escravocrata ainda tenta resistir ao avanço do capitalismo que se apresenta e irá se impor. O confronto se estabelece no seio mesmo da classe dominante. O velho tenta resistir ao novo, pois essa é a sua função na dialética da luta entre os contrários.
O novo nunca destrói o velho totalmente. A negação dialética conserva o que o velho tem de positivo, isto é, o novo enriquece-se com o melhor que o desenvolvimento anterior tinha. A negação do que é caduco é inevitável para conservar os elementos sãos e progressistas e criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento. (...) O processo de negação não se dá de forma absolutamente pura. É certo que o novo assimila o que há de positivo no velho; contudo, alguns vestígios negativos velhos podem macular o elemento novo (grifo nosso) (KRAPÍVINE, 1985: 177)

Nesse momento de transformação a mão de obra escrava convive com a mão de obra assalariada. Escravo e proletário caminham juntos, bebem da mesma água e se alimentam da mesma comida. Água e comida pertencentes agora à burguesia, assim como a terra, as máquinas e o comércio. A burguesia detém os meios de produção.
Existe burguesia onde a propriedade dos meios de produção social se concentrou nas mãos de uma classe, isto é, depois que essa propriedade foi arrancada dos elementos de outras classes e camadas sociais, depois que se gerou o capital, por via dessa concentração da propriedade dos meios de produção social, depois que se gerou o trabalho assalariado, que possibilita o aparecimento do capital. (SODRÉ, 1983: 12-13)

Em O cortiço verificamos a existência dessa realidade contraditória e em processo de transformação dialética, através da convivência dos empregados da venda e da pedreira de João Romão e da escrava, falsamente alforriada, Bertoleza que, sendo também amante do seu patrão, não sabe que continua escrava. Gorender (1982: 13) confirma nosso raciocínio ao comprovar que no processo de formação da burguesia brasileira houve esse momento em que as forças contrárias coexistiam em harmonia aparente até a transformação total: “a princípio, algumas (...) fábricas empregaram escravos ao lado de operários livres”.
Por outro lado, ressaltamos a existência de uma burguesia que busca status de nobreza, como processo de ascensão, ponto onde nos deparamos com novas e acentuadas contradições que se estabelecem dentro da própria classe dominante, que procura ser uma coisa que já não deveria mais ser ao mesmo tempo em que a nobreza tenta se sustentar para impedir o avanço burguês, o que significaria a sua destruição.
João Romão é um capitalista, vive do seu comércio e nele se enriquece. Vive também da produção da pedreira, da qual é proprietário. Um pequeno burguês que cresce através do esforço, do roubo, da extorsão e da ladinagem.
Aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão miserável; aquele sovina que nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquele animal que se alimentava pior que os cães, para por de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobiça e que parecia ter abdicado dos seus privilégios e sentimentos de homem; aquele desgraçado que nunca jamais amara senão o dinheiro. (AZEVEDO: s/d, 81-82)

            João Romão experimenta uma profunda contradição ao ser “chamado” para viver “aristocraticamente”. A inveja o movera a isso e agora não sabe como agir e reagir ao chamado, pois em toda a sua vida não pensou senão em acumular. O que mais o atormenta é como gastar o dinheiro que acumulou apenas por acumular, sem nenhuma serventia pessoal; o dinheiro gerando mais dinheiro e transformando-se em capital e o capital aplicado na ampliação da propriedade. O cortiço ampliava e ele encolhia. Encolhia como ser humano que não se preocupava com as garantias mais simples de conforto e bem estar; encolhia em seus sentimentos, pois era um avaro e a avareza não o permitia dar-se ao outro; encolhia mentalmente, pois não conseguia raciocinar senão em termos de ganhos e perdas; encolhia, enfim, porque o capitalismo o tornara um seu escravo. Um burguês-escravo. Tinha apenas uma consciência clara: “Fora uma besta!... Uma grande besta!...” (AZEVEDO, s/d: 84) O dinheiro apenas o deformara, reificando-o a cada dia. Em seu próprio corpo fora deformado, em suas roupas, em sua higiene, em seu prazer. E todo esse processo o tornara um homem solitário: não podia se aproximar de ninguém, pois não confiava em ninguém. E, sozinho, fora se amargurando.
Ao mesmo tempo, um outro sentimento promovia uma luta interna: a inveja o impulsionava e o obrigava a querer também o que era do outro, de Miranda, o baronato. E essa contradição se transformou em conflito que ele não conseguia administrar.
E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas. Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro. (AZEVEDO, s/d: 84)

João Romão não tem como fugir: o capitalismo exige, ele se adapta. Vai aos poucos conseguindo modificar sua aparência e seu jeito bruto – refina-se. Aproxima-se de Miranda, consegue a mão da filha do antes desafeto que se tornou amigo e futuro sogro. O cortiço, depois do incêndio, também se “aristocratiza”, e cresce, assim como o seu dono.
E, como a casa comercial de João Romão, prosperava igualmente a sua avenida [cortiço]. Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado: para entrar era preciso carta de fiança e uma recomendação especial. Os preços dos cômodos subiam, e muitos dos antigos hóspedes, italianos principalmente, iam por economia, desertando para o “Cabeça-de-Gato” e sendo substituídos por gente mais limpa. Decrescia também o número de lavadeiras, e a maior parte das casinhas eram ocupadas agora por pequenas famílias de operários, artistas e praticantes de secretaria. O cortiço aristocratizava-se. (s/d: 158)

            João Romão é outro homem. Mas não deixou de ser um monstro.


4 – Luzia-homem: masculinização e exploração da mulher

Luzia-Homem antecede a saga nordestina (...).
Explica o problema coletivo do retirante,
numa visão dinâmica da migração interna.
Fábio Lucas

            O antropólogo Darcy Ribeiro, em seu livro Aos trancos e barrancos, tece um comentário a respeito da personagem-título do romance Luzia-homem, que não podemos, em absoluto, apesar de toda admiração e respeito que lhe conferimos, concordar com suas palavras e a visão distorcida que manifesta em relação à personagem Luzia: “Domingos Olimpio tem a audácia de publicar Luzia-Homem, romance de uma lésbica. (1985: 78).
            E não concordamos porque entendemos que o antropólogo se equivocou em não perceber que a masculinização da personagem é resultado não de uma orientação sexual, mas sim da exploração capitalista da força de trabalho da mulher e da deformação imposta pela necessidade de sobrevivência em condições adversas.
O capitalismo não desviou a mulher do lar para a produção social com o intuito de a emancipar, mas sim com o de a explorar ainda mais ferozmente do que explora o homem. A mulher, espoliada pelo capital, suporta as misérias do trabalhador livre e carrega ainda por cima as cicatrizes do passado. (LAFARGUE, 1904: 43)

            Luzia nos é apresentada em sua primeira participação no romance, a partir de um discurso masculino. O personagem Paul, um francês a serviço no Brasil, se refere a ela como um verdadeiro burro-de-carga: “Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça.” (1946: 15)
                        Por “mulher extraordinária” devemos entender apenas uma mulher com uma força física acima do normal. “Extraordinária” não quer dizer mulher com atrativos significativos em sua condição de mulher. O narrador nos adverte, porém, um pouco mais à frente, depois de narrar algumas façanhas de Luzia, que “a extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão” (1946: 15), não era apenas um brutamontes travestido na pele de mulher. Luzia, além de forte, era mulher, e como mulher explorada em sua força de trabalho era obrigada a esconder seus dotes para cumprir suas obrigações de cuidar da casa e da mãe doente. E, somente aí, a mulher se “iguala” ao homem, enfrentando uma sociedade que sempre a colocou em condição de inferioridade, como nos aponta Lafargue:
Provaram à sua inteira vontade que a mulher é um ser inferior, incapaz de receber uma cultura intelectual superior e de fornecer a soma de atenção, de energia e de agilidade que reclamam as profissões em que ela deseja entrar em concorrência com o homem. O seu cérebro, menos volumoso, menos pesado e menos complexo que o do homem, é um “cérebro de criança”; os seus músculos menos desenvolvidos não têm força de ataque e de resistência, os seus sistemas ósseo, muscular e nervoso não lhe permitem outra espécie de trabalho que não seja o doméstico. (LAFARGUE, 1904: 41)

            Um aspecto importante e que merece ser destacado no processo de masculinização da personagem-título é o fato de se estar construindo uma penitenciária, espaço reservado na época em que transcorre a história, quase exclusivamente ao homem, já que a mulher permanece nos afazeres domésticos não tendo praticamente nenhum contato com o crime. Luzia rompe o espaço domestico, invade o reduto masculino e trabalha na construção de um símbolo masculino por excelência. E o seu trabalho se destaca perante o de todos, “cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração” (1946: 16).
            Luzia, além de ter que enfrentar um trabalho que biologicamente não lhe é adequado, enfrenta também a reação de mulheres de sua idade, que fazem questão de acentuar a sua masculinidade e sua pretensa arrogância, na verdade produto de seu gênio calado e retraído e enfrenta também as mais velhas e os homens que não conseguiam se aproximar dela para obter seus favores amorosos:
- É de uma soberbia desmarcada - diziam as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.
- A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona - murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às sua insinuações galantes.
- Aquilo nem parece mulher fêmea - observava uma velha alcoveta e curandeira de profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem. (1946: 16)

            Terezinha, amiga incondicional de Luzia, é sua única defensora:
- Não diga isso que é uma blasfêmia. (...) Por ela eu puno, meto a mão no fogo. (...) você não pode negar que ela vive no seu canto sossegada sem se importar com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moura de trabalho. Vocês, suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada no mundo... (1946: 16-17)

Luzia nega o que a sociedade impõe como regra. Faz o que muitos homens não conseguem. Não deixa de ser mulher de “formas esbeltas e graciosas”, mas é obrigada a enfrentar serviços masculinos para garantir seu sustento. Migra, juntamente com a mãe para um centro urbano, para se engajar numa “frente de trabalho” do governo.
Vinham de longe aqueles magotes heróicos, atravessando montanhas e planícies, por estradas ásperas, quase nus, nutridos de cardos, raízes intoxicantes e palmitos amargos, devoradas as entranhas pela sede, a pele curtida pelo implacável sol incandescente. Na construção da cadeia havia trabalho para todos. (1946: 12)

Neste universo masculino Luzia mantém-se incorruptível ao assédio dos homens e maledicências femininas. Ela traça seus objetivos e deles não se desvia. Engole as humilhações e passa por cima do escárnio, sem perder a firmeza de caráter e sem abrir mão da dignidade. Porém, não poderá fugir das pressões exercidas por um certo Crapiúna. A “mulher-homem” atinge o coração do soldado e ele não tem como fugir, ainda que tente negar o amor doentio:
Qual, o que!... – retorquiu Crapiúna, com afetado desdém. – Eu até nem gosto dela... Não lhe acho graça... Depois... com semelhante força... nem parece mulher... (1946: 20-21)

A estratificação social estabelece níveis de poder. Crapiúna, homem, soldado, defensor e guardião da ordem, aproveita-se justamente do poder que a farda lhe confere e rompe com os limites de sua obrigação e autoridade. Um explorado detentor de um poder tentando se sobrepor a uma explorada sem poder. A obsessão de Crapiúna se estabelece em dois níveis distintos: ele de fato é acometido por uma paixão doentia e tenta impor sua paixão a Luzia através do poder do mando. Além de ser homem, é soldado; além de ser soldado, não tem escrúpulos. E dessa condição uma nova relação explorador/explorado se estabelece.
Ela [a mulher] é explorada até pelo explorado, batida pelo homem rasgado pela palmatória, humilhada pelo homem esmagado pela bota do patrão. (MACHEL, 1973:18)

            O romance, então, traça um novo percurso, que nos lembra um pouco O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, na perseguição obsessiva da heroína pelo estróina. Percebemos aí o social convivendo com o patológico e criando curvas de interesse para nos manter atentos até o desfecho. Mesmo cedendo parte considerável do seu enfoque à relação amoroso-patológica de Crapiúna em relação a Luzia, o caráter social se mantém presente o tempo todo, seja pelo próprio espaço de convivência dos personagens – espaço de miséria e penúria –, quanto pela relação opressora homem/mulher que ganha força a cada ameaça sofrida por Luzia, nos denunciando a secular condição de inferioridade a que é submetida a mulher.
A igualdade entre a mulher e o homem é uma necessidade da História, não uma conveniência econômica. São seres humanos. A divisão existente entre homem e mulher é um problema de natureza, mas os outros problemas são colocados pela sociedade. E na sociedade, a divisão entre homem e mulher, já não é mais um problema de sexos, mas sim de quem manda e de quem obedece. (POSADAS, 1974: 127)

Luzia só se liberta com a morte. Liberta-se da opressão da miséria a que foi submetida desde que nasceu e se liberta de Crapiúna. Simbolicamente arranca um dos olhos do seu algoz e morre agarrada a ele enquanto os seus próprios, ainda que já mortos, mantêm-se como vivos.
Luzia, hirta e lívida, jazia seminua. Nos formosos olhos, muito abertos, parecia fulgir ainda o derradeiro alento. Os cabelos, numa desordem, escorriam pela rocha, forrada de lodo, e caiam no regato, cuja água, correndo em murmúrio lámure, brincava com as pontas crespas da intonsas madeixas flutuantes. Na destra crispada, encastoado entre os dedos, encravado nas unhas, extirpado no esforço extremo da defesa, estava um dos olhos de Crapiúna, como enorme opala esmaltada de sangue, entre filamentos coralinos dos músculos orbitais e os farrapos da pálpebras dilaceradas. Sobre o seio, atravessado pelo golpe assassino, demoravam, tintos de sangue, como se reflorissem cheios de seiva, cheios de fragrância, os cravos murchos que lhe dera Alexandre. (1956: 238)

Crapiúna, sem um dos olhos, “ganindo de dor (...) rolando de pedra em pedra, se sumiu no precipício...” (1946: 238)


5 – O CAPITALISMO E A DEFORMAÇÃO HUMANA COMO CATEGORIA NO DISCURSO LITERÁRIO REALISTA/NATURALISTA

O meio de produção na vida material determina
os processos da vida social, política e intelectual em geral.
Não é a consciência moral dos homens que determina o seu ser, mas,
pelo contrario, o seu ser social que lhes determina a consciência moral.
            Karl Marx

5.1 - Homem ou mulher. Patrão ou empregado. O capitalismo é implacável com o ser humano, pois essa é sua lógica mais perversa. Para acumular e lucrar é preciso desumanizar. O homem, de sujeito da história é transformado em objeto do sistema.

Alienação, reificação, fetichismo: é esse processo fantástico no qual as atividades humanas começam a se realizar como se fossem autônomas ou independentes dos homens e passam a dirigir e comandar a vida dos homens, sem que estes possam controlá-las. São ameaçados e perseguidos por elas. Tornam-se objetos delas. (CHAUÍ, 1985: 58-59)

            5.2 - Em O cortiço, João Romão, patrão, burguês, através do qual podemos observar o processo de acumulação primitiva do capital, é um ser totalmente aleijado e o seu aleijão tem origem, se desenvolve e certamente vai se deformar cada vez mais, sob o manto do capitalismo. Ele sofreu um desvio de personalidade quando ainda era empregado. Ali, percebeu a possibilidade de se transformar em patrão. A partir desse instante, adquiriu o direito de passar por cima de qualquer escrúpulo e de qualquer pessoa, pois o mais importante era acumular, ainda que se sacrificando para atingir esse objetivo. Ainda que roubando. Mentindo. Enganando. Escrúpulos às favas!
Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda com maior ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lhe, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. (s/d: 13)

            Através da acumulação João Romão atingiu seus objetivos e tornou-se um burguês. Sua mente foi dominada pelo desejo do ganho, pelo lucro a qualquer preço. Tornou-se um homem amoral, não só em relação ao dinheiro, mas para com a vida, sua e dos outros.

            5.3 - Em Luzia-homem não há propriamente um patrão. Há, sim, o Estado que promove as “frentes de trabalho” e contrata pessoas, mas estamos vivendo sob a égide do capitalismo: a mão de obra é livre e assalariada. O Estado, aqui representado pela Comissão de Socorros, não efetua o pagamento em dinheiro, mas em alimento.
Acertara a Comissão de Socorros em substituir a esmola depressora pelo salário emulativo, pago em rações de farinha de mandioca, arroz, carne de charque, feijão e bacalhau, verdadeiras gulodices para infelizes criaturas, açoitadas pelo flagelo da seca, a calamidade estupenda e horrível que devastava o sertão combusto. (1946: 12)

            Há uma percepção clara de que quem alimenta o capitalismo é a miséria que impõe ao homem a venda de sua força de trabalho a qualquer preço, pois a sobrevivência o exige. Luzia, migrante interna da miséria, não é exceção e se deforma na sua condição de mulher para conquistar sua minguada ração diária. Masculiniza-se para conseguir trabalho e, com a força dos seus músculos, superior a muitos homens, consegue aumentar sua cota de ração e alimentar a si mesma e à mãe inválida.
A pressão é tão grande que Luzia começa duvidar até de si mesma, aceitando a pecha de mulher-homem com que lhe cobrem. Aceita sua condição de mulher deformada em seu feminino:
Sim, como não hei de ser má, de ter más entranhas, se uma cobra venenosa me morde o coração! E sou culpada de tudo por ser desconfiada... soberba... maldita... Luzia-Homem é o que sou... uma bruta desalmada... (1946: 198-199)

A mãe, inválida, porém consciente, mostra à filha o seu contraditório, que Luzia, tomada pela emoção, não conseguia perceber:
Luzia, mulher e bem mulher, fraca como as outras, é o que tu és. (1946: 201)

             Luzia, mesmo sendo um objeto do sistema, ao contrário de João Romão, não permite que sua personalidade se desvie. Sua honra e sua moral não estão à venda: apenas sua força de trabalho. Digna se apresenta e digna se mantém até sua morte. Neste ponto confirmamos um abismo enorme que separa o burguês do operário. Não apenas o operário idealizado, mas consciente de suas ações.


6 – CONCLUSÃO

A obrigação do romancista não é condenar nem perdoar a malvadez;
é analisá-la, explicá-la. Sem ódios, sem ideias
preconcebidas, que não somos moralistas.
Graciliano Ramos

            Tanto em O cortiço quanto em Luzia-homem, a determinação do espaço de ação é fundamental para melhor caracterização dos personagens e definição do comportamento de cada um, reagindo ou aceitando aquela realidade determinada, com maior ou menor realismo. O caráter dos personagens não entra em choque com a realidade e a completa e com ela estabelece um vínculo através de suas relações e convivências.
O realismo, para mim, implica, para além da verdade do pormenor, a reprodução verdadeira de personagens típicos em circunstâncias típicas. (ENGELS,1979: 70)

            Se por um lado temos os moradores de O cortiço sendo determinados pelo meio, característica fundamental do naturalismo, percebemos também que neste meio os personagens, mesmo sendo animalizados, movimentam-se e reagem a ele e atingem um nível de organização que os une contra ameaças externas, contra o “Cabeça-de-Gato”, contra a repressão policial, que tenta invadir o seu espaço.
Quando o português que explora o cortiço apela para a polícia para por ordem naquele pequeno mundo de sofrimento e de discórdia, a população, retalhada por divergências e identificando talvez o proprietário explorador com os agentes da lei, com a ordem legal, tem momentos de solidariedade. (LUCAS, 1976: 60)

Em Luzia-homem, ainda que contaminado pelo romantismo, o espaço da seca, miséria e exploração formam o caldo de cultura perfeito para surgimento de relações de poder que se estabelecem, particularmente envolvendo Luzia e Crapiúna. A mulher, sempre objeto, deve satisfazer ao homem com servidão absoluta. Quando Luzia confronta-se com Crapiúna e nega seus favores, está subvertendo uma ordem que deveria ser seguida sem nenhuma oposição. A mulher se impõe e luta para conquistar seu espaço, ainda que para isso tenha que se masculinizar.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Aluísio. - O cortiço. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

CHAUI, Marilena. - O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

ENGELS, Friedrich. - Realismo e romance - Carta a Margaret Harkness, Abril de 1888. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. - Sobre literatura e arte. São Paulo: Global, 1979.

GORENDER, Jacob. - A burguesia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2ª. Edição, 1982.

KRAPÍVINE, V. - Que é materialismo dialético. Moscou. Edições Progresso, 1986.

LAFARGUE, Paul. A questão da mulher, 1904. In: MACHEL, Samora et alii. A libertação da mulher. São Paulo: Global, 1980.

LÊNIN, Vladimir. - A aliança operário-camponesa. In: SODRÉ, Nelson Werneck. -História da burguesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1983.    

LUCAS, Fábio. - O caráter social da literatura brasileira. São Paulo: Edições Quíron, 1976.

MACHEL, Samora. A libertaçao da mulher é uma necessidade da revolução, garantia da sua continuidade, condição do seu triunfo. 1973. In: MACHEL, Samora et alii. A libertação da mulher. São Paulo: Global, 1980.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. - Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Inverta, 1998.

MARX, Karl. - Uma contribuição para a crítica da economia política. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. - Sobre literatura e arte. São Paulo: Global, 1979.

OLÍMPIO, Domingos. - Luzia-homem. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1949.

POSADAS, J. A libertação da mulher, a luta de classes e a revolução socialista, 1974. In: MACHEL, Samora et alii. A libertação da mulher. São Paulo: Global, 1980.

RAMOS, Graciliano. - Linhas tortas. São Paulo: Martins, 1971.

RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos - como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1985, 2a. edição.

SODRÉ, Nelson Werneck. - História da burguesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1983.   






HOMEM E ESPAÇO: 
convivências e interpenetrações


Não se pode pensar em espaço na literatura reduzindo sua significação e simbologia apenas à referência geográfica. O espaço geográfico se limita, em primeiro plano de análise, ao espaço físico ocupado pelos personagens e/ou narrador (nos esforçando aqui para não considerar o narrador em 3ª pessoa como personagem, mas entendendo sua persona como elemento articulador passional do enredo).

O espaço físico deve ser, por sua vez, encarado de maneira descendente ou ascendente: do todo para a parte ou da parte para o todo. A trama (ou enredo) se desenvolve em um determinado país; o personagem mora ou atua em uma cidade que pertence a esse país, dentro dessa cidade existe um bairro, uma rua, uma casa e nela suas dependências, nas quais o personagem circula com segurança, pois este espaço concreto e frio apenas o ampara, protegendo-os das intempéries naturais e possíveis agressões geradas pela violência urbana.  

Num segundo plano de análise entendemos que o “espaço concreto e frio” deixa de ser apenas físico e passa a constituir uma relação de afeto com aquele que protege, ainda que o personagem esteja ali apenas de passagem (como em um quarto de hotel, por exemplo). O personagem se relaciona com o espaço e no espaço. Sua “proteção” não é apenas objetiva, é psicológica e emocional.

Sigo meu caminho para o escritório, único lugar que ainda me resta na casa. Ali me tranco e me permito momentos de certa reserva. (PAIXÃO, 2007: 3)

Como pode também o lugar ser espaço de angústia e dor para o personagem:

Evitava sempre o quarto do casal, evitava mesmo passar por perto, se recusando entrar no espaço que julgava sagrado, onde agora... Não podia suportar olhar a cama em que dormiram os anos todos. Ali só entrava à noite, quando pegava sua dor e a envolvia num frágil manto de fortaleza e a oferecia como prova de seu amor maior, no altar de sua adoração. Como num ritual se entregava. (PAIXÃO, 2006: 2)

O espaço interfere na obra determinando sua linguagem, portanto, para se falar sobre o espaço é preciso compreender que linguagem poderá explicar tal espaço. Pois ele só existe enquanto resultado de um tratamento específico da linguagem: cada espaço há que exigir uma linguagem específica para que se traduza em sua inteireza e assim revelar seu caráter e sua importância psicológica na obra, transformando-se por vezes em personagem de destaque na narrativa. Esse diálogo se estabelece e na linguagem se completa e se traduz em sua forma literária, exprimindo dentro de si mesma a aridez ou exuberância do espaço que se quer como ambiente de encenação:

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos (...) O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. En­fim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte. (ROSA, 1979: 9)

Ou:

Chegamos ao fim da ladeira. No topo, escorada na escarpa da direita e dando início a uma rua, erguia-se uma casa atarracada, térrea, pintada de um rosa sujo, com um telhado baixo, enterrado na cabeça, e janelas esbugalhadas. Da rua, me pareceu grande, mas lá dentro, nos cômodos pequenos e sombrios era apertada; as pessoas se agitavam, irritadas, em todo canto, como acontecia no navio antes de parar num cais, a criançada se alvoroçava feito um bando de pardais furtivos e havia em toda parte, um cheiro desconhecido, cáustico. Eu me vi num pátio. O pátio também era desagradável: todo coberto por imensos trapos molhados, pendurados para secar... (GORKI, 2007: 31)

Percebemos claramente, a partir dos recortes acima, como o espaço, o sertão roseano em contraponto ao urbano miserável gorkiano, se determinam e, a partir dessa determinação, constroem linguagens próprias onde movem personagens que respondem psicologicamente a essa arquitetura cênica criada.  O espaço está no homem, como o homem está no espaço.

O espaço não determina apenas o tópoi (lugar); ligado que está ao chrónos (tempo), vai interferir substancialmente no tom da obra literária. A relação tempo/espaço é que vai criar o ambiente em que o personagem se move e a ação se desenrola, criando, segundo Bakhtin, a ideia de cronotopo visa explicar cientificamente essa interpenetração tempo/espaço e vai determinar os gêneros e suas variações:

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. (...) O próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da historia. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. (...) O cronotopo como categoria conteudístico-formal determina (em medida significativa) também a imagem do individuo na literatura; essa imagem sempre é fundamentalmente cronotópica. (BAKHTIN, 1990: 211-212)

Basta lembrarmos de Fabiano, em Vidas Secas, e de como o tempo e o espaço, numa ação conjunta e coordenada, determinam logo nas primeiras páginas do romance o perfil dos personagens:
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. (...) fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu ao longe, através dos galhos pelados da catinga rala. (...) Os juazeiros aproximavam-se, recuaram, sumiram-se. A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manches brancas que eram ossadas. (...) Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés. (RAMOS, 1996: 9-10)

O espaço se faz presente em todas as artes que se dialogam numa tentativa de se entender. No celebre quadro “O Grito”, Edvard Munch consegue, através do surrealismo, deformar o espaço pelo grito desesperado da mulher, onde a ação humana altera a paisagem integrando-a ao estado emocional do personagem central: “o turbilhão ondulante da paisagem pulsa com o grito. Um universo proprioceptivo” (McLUHAN, 1975: 178-179) Demonstra cabalmente que não só o espaço modifica o homem, como o homem também pode modificar o espaço e, a partir daí, novas relações homem/espaço se estabelecem. É importante observar que a ponte e as outras duas pessoas que a atravessam não se deformam pelo grito. Mas essa análise não caberia no nosso espaço.

Trilhando, ainda, o caminho do non-sense, aportamos no teatro Samuel Becket e seu Esperando Godot, ícone da dramaturgia moderna, que nos apresenta em suas rubricas:

Uma estrada. Uma árvore. Entardecer. (1º Ato)
Dia seguinte. Mesma hora. Mesmo lugar. (...) A árvore tem quatro ou cinco folhas. (2º Ato) (BECKETT, 1976: 9 e 103)

            As folhas, nascidas durante a noite, constroem um novo signo temporal alterando o espaço que, apenas aparentemente, continua o mesmo, e que continua interferindo da mesma maneira na vida dos personagens que não se cansam de esperar e sempre ao fim e ao cabo garantem que “amanhã” Godot deverá aparecer. E suas vidas continuam, monótonas como sempre, sempre com “Nada a fazer.” (BECKETT, 1976: 9)

O espaço não é só físico, é emocional, é lembrança, é lugar de sofrimentos e alegrias. O espaço estabelece com a vida um jogo dialético em que leva o homem a confrontar-se com suas contradições e do choque entre elas extrair a síntese e dali sair para encontrar novos espaços e novas lutas a que enfrentar. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance. São Paulo: Hucitec, 1990.

BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

BORGES FILHO, Ozíris. TRICIVERSA - A questão da fronteira na construção do espaço da obra literá-ria. Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Lingüísticos e Culturais, www.assis.unesp.br/cilbelc .2008.

GORKI, Maksin. Infância. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

McLUHAN, Marshall; PARKER, Harley. O Espaço na Poesia e na Pintura através do ponto de fuga. São Paulo: Hemus, 1975.

PAIXÃO, Luiz. Para além da página 162... Xérox, inédito. Belo Horizonte: 2007.

_______. O Marido. Xérox, inédito. Belo Horizonte: 2006

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1996.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.





O SERTÃO DOS SERTÕES E VEREDAS
(com pequena travessia em Walter Benjamin)

Para Benjamin (2008, 199), Riobaldo, de Grande sertão: veredas, se enquadraria no perfil do narrador “camponês sedentário”: homem que viveu suas aventuras e hoje, recolhido em sua varanda, pois “estou de range rede” (ROSA, 1979: 11), conta suas histórias para um ouvinte atento: “o senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo”(p.33). Como acentua Benjamin, “a narrativa [de Riobaldo] não está interessada em transmitir “o puro em-si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (2008, 205). 

Vale ressaltar, e é um fato bastante significativo: Riobaldo não nos conta, a nós leitores, a sua história: apenas tomamos conhecimento dela porque “ouvimos” a conversa dos dois – ele e o seu ouvinte, que não sabemos quem e nem mesmo o seu nome. Invadimos o espaço doméstico de Riobaldo sem nos fazer notar. Somos um intruso que sequer temos autorização para freqüentar aquele lugar.

Já o narrador euclidiano seria o “marinheiro” (BENJAMIN, 2008: 199) que recolhe suas aventuras por onde passa para recontá-las depois, quando retornar, aos que ficaram. Longa jornada em que invadiu o espaço do outro para observar os acontecimentos com precisão e detalhes que lhes foram permitidos, diante das circunstâncias de guerra a que estava submetido. Seu espaço narrativo presente é o escritório, onde deu forma literária à sua história. Somos, então, convidados a conhecer os sertões onde ocorreu o massacre de Canudos. Ele nos guia por esse “passeio” e nos torna cúmplice de uma jornada que já percorreu e agora “apenas” relata. Ao dividir o seu relato em três partes – A Terra, O Homem, A Luta – estabelece limites e define influências: o espaço que determina o homem, e o homem que, forjado nesse espaço, enfrenta a luta da maneira como enfrentou.

Já Riobaldo, movimenta-se em dois espaços distintos, marcados pelo tempo: o espaço doméstico, presentificado, onde participam o próprio narrador e seu interlocutor; e o espaço externo, que faz parte de suas lembranças que ganham corpo enquanto a narrativa revolve sua memória. Em suas rememorações, explica o que é o sertão: espaço em que o jagunço mineiro vai se deslocar em suas recordações de andanças e lutas, de paixões e dúvidas que ainda hoje, tanto tempo passado, o machucam. O sertão para ele não tem tamanho, é o todo que a vista alcança e ainda mais um tanto pra lá (apenas uma versão do significado que encontramos no Aurélio digital: “região agreste, distante das povoações ou das terras cultivadas”). Em Riobaldo, sabemos então, pois sertão é onde viveu, vive: seus domínios: 
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um se pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador (...) O sertão está em toda a parte.  (p. 9)

Em Euclides, o narrador nos apresenta o arraial de Canudos, através de uma descrição geográfica, denunciando sua estrutura de defesa natural por meio das serras que o cercam:
O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os – todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se em plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande. Em roda uma elipse majestosa de montanhas... (CUNHA, 2003: 24)

O espaço-sertão de Riobaldo difere do espaço-sertão de Antônio Conselheiro, não apenas por uma localização geográfica e ainda que ambos sejam espaços em que foram forjados homens prontos para a luta – luta de vida e morte –, e onde se vão estabelecer os combates. Em Riobaldo, guerra de movimentos – o espaço recortado por caminhos, trilhas, picadas e rotas de fuga; em Conselheiro, guerra de trincheiras – o espaço como escudo protetor da cidadela de Belo Monte: as serras que o envolvem como um ninho, e sua desorganização arquitetônica que contribui para dificultar a ação do inimigo.

Mas espaço não é apenas reservado à humana gente. Espaço é locus. “O diabo na rua, no meio do redemunho...” (ROSA, 1979: 11) Não é na rua que o diabo vive, apenas perambuleia: na rua, procura o seu espaço de atuação: “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem” (p.11) e só aí ele tem razão de existir, já que sua função na Terra é desviar o homem de seu caminho, perverter seu caráter e apoderar-se de sua alma. E seu espaço não é um espaço qualquer; não é qualquer um que está apto a recebê-lo como inquilino: “ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!” (p.11).
Antônio Conselheiro também fala da vinda do anti-Cristo, que tem sua representação na força republicana armada que marcha para destruir a comunidade canudense. O diabo não luta por um espaço no homem, mas para por abaixo o espaço do homem, construção do seu próprio sonho. “O satanás trouxe a república. E a república traz a morte com o seu rasto de fogo”. (PAIXÃO, 2004: 2) O “anti-Cristo” não luta para contaminar, luta para impedir que o sonho se alastre e contamine outros que buscam esperança em Belo Monte. Ao “anti-Cristo” interessa deter a expansão do espaço: 
A fúria do anti-Cristo, despejará todo seu ódio contra esse povo inocente. Para destruir nossa gente, não há limite de ódio. A república não vai nos dar paz. Pelos montes e serras bolas de fogo serão atiradas contra Belo Monte. Cabe a Belo Monte resistir e lutar. (PAIXÃO, 2004: 8)

Travessia da vida. Travessia do Cambaio. “A vida é travessia. As coisas estão sempre mudando. A vida é um processo incessante de metamorfose.” (BAGGIO, 2005: 169) A vida é espaço a ser vencido: seja no lá dentro da gente ou nos externos geográficos. A luta é a mesma: luta renhida contra o Cão, o Tinhoso, Aquele que não há. Em Euclides, espaço-tocaia. Geografia que se alia aos moradores de Canudos para resistir aos ataques do Cramulhão da República recém instalada. A luta se faz até onde se consegue resistir:

Firmara-se, de antemão, a derrota dos fanáticos. (...) As massas do Cambaio amontoavam-se na frente, dispostas de modo caprichoso, fundamente recortadas de gargantas longas e circulantes como fossos, ou alteando-se em patamares sucessivos, lembrando desmedidas bermas de algum baluarte derruído, de titãs. (...) A Serra do Cambaio é um desses monumentos rudes. (...) Toda a expedição caiu, de ponta a ponta, debaixo das trincheiras do Cambaio. (CUNHA, 2003: 163-165)

Em Riobaldo, a travessia é o todo da vida: espaço interior; metafísico. Suas lutas. Suas paixões. E, agora, seu narrar e sua vitória maior: sobre o demo: “o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. (...) Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.” (ROSA, 1979: 460)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAGGIO, Marco Aurélio. Um abreviado do grande sertão: veredas. Belo Horizonte. Santa Clara: 2005.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – magia e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense, 2008.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Nova Cultural, 2003.

PAIXÃO, Luiz. Canudos – texto do espetáculo teatral. Belo Horizonte: xérox, 2004.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.




LITERATURA COMPARADA DOIS PONTOS
(tentativas de entendimento e conceituação, com ajuda não autorizada de Jorge Luís)


Literatura Comparada é síntese entre contrários que se manifestam em suas diferenças e concordâncias e, sendo síntese, pode mais uma vez ser colocada em comparação (pois se tornou uma nova tese), obtendo-se a partir daí novas formulações. Não há limites para comparação, o que não quer dizer também que tudo pode ser comparado com tudo. Remak nos adverte oportunamente que “é preciso ter síntese, a menos que o estudo de literatura se queira condenar à eterna fragmentação e isolamento” (1994, p. 177). O diálogo com outras formas de organização e manifestação do pensamento humano se nos apresenta bastante amplo e as tentações “irresistíveis para almas fracas” (BRECHT, 1991, p. 165), ainda assim poderá ser aplicado o comparativismo se os argumentos são consistentes para sustentar a reflexão que se pretende:

o comparativismo tem indicado, sob variadas perspectivas, que a transferência de sentidos nunca é total entre sistemas literários e culturais distintos. As diferenças são elas próprias reinscritas ou reconstituídas em todo ato de comunicação e transmissão, o que acaba por revelar a instabilidade de toda divisão de sentido baseada num dentro e num fora, num centro e numa periferia. (SOUZA e MIRANDA: 1997, p. 48)

A literatura comparada propõe uma nova perspectiva de análise da obra literária: se estabelece a partir do confronto com outra (ou outras) obra (literária ou não). A comparação não se realiza apenas em suas convergências ideológicas e/ou estéticas, mas também através de suas diferenças e, no momento em que se confrontam e se comparam, o que surge, enquanto referência teórica é uma terceira, que adquire novo valor que não lhe pertence isoladamente, pois sua existência está condicionada à comparação entre as anteriores;

o comparativismo é campo fértil e vasto para abrigar estudos de natureza vária, seja das relações entre culturas literárias e artísticas alem fronteiras geográficas, seja entre literatura e outras formas artísticas ou mesmo de outras áreas do conhecimento. (ALLEGRO: s/d, p.4)

A partir do diálogo estabelecido, como não se prende meramente ao caráter formal das obras comparadas, deixa patente que

seu objetivo final deve ser, assim, investigar que tipos de diálogos e olhares se estabelecem entre diferentes regiões e diferentes ambientes culturais e como tais diferenças interagem (ou não); que possibilidades tais comparações abrem para um estudo (criterioso) de fontes e influências; que importância ganha o leitor nessa aventura; qual o papel reservado ao tradutor, criador que é da ‘ponte necessária’ para a transmissão da cultura entre povos. (ALLEGRO: s/d, p.4)
Se entendemos como Croce (1994, p. 61) que o comparatismo é uma “forma de pesquisa”, devemos entender também que esse método se encontra à nossa disposição não como uma fórmula rígida e estática, mas em constante transformação; não podemos em um processo comparativista nos deixar levar por “um ato lógico-formal” como queria Carvalhal (2007, p. 6). A história mesma da Literatura Comparada é um exemplo dessa dinâmica que lhe é própria enquanto método de análise: em seu deslocamento histórico, verificamos sua transformação que, ainda hoje, não está concluída, sujeita que está às leis do movimento, assim como o seu processo de análise que não se prende a uma relação causa/efeito: o processo aplicado na comparação de determinadas obras não será o mesmo para  comparação de outras obras que exigirão enfoques diferenciados.

Obviamente, não podemos considerar a Literatura Comparada uma disciplina isolada que se completa em si mesma; para discuti-la é preciso discutir, antes, literatura, pois a comparatividade é um método de análise literária. Onde o suporte teórico para comparatismo? Na teoria da literatura ou na crítica literária? Em ambos, pois os três se completam? A transdisciplinaridade – síntese extraída a partir do encontro de duas disciplinas que não se excluem; antes, provocam o surgimento de uma terceira, também não excludente das anteriores, pois fruto delas – é marca que determina a mobilidade comparatista. Tal fenômeno ocorre simultaneamente e nenhuma das obras comparadas detém primazia sobre a outra, ainda que uma delas seja não literatura, mesmo que estejamos em todo o processo discutindo literatura.

Por outro lado, não podemos criar-lhe uma camisa de força dentro da chamada “literatura em geral”, reduzindo-a a “uma mera subdisciplina que investiga dados a respeito de fontes estrangeiras e reputações de escritores”, como acentuou Wellek (s/d, p. 245) já em 1958, em seu documento fundamental sobre A crise da literatura comparada, onde ressalta também que

a tentativa de comprimir a “Literatura comparada” em um estudo de “comércio externo” de literatura é decerto infeliz. A literatura comparada seria, em matéria de estudo, um grupo incoerente de fragmentos sem ligação, uma rede de relações constantemente cortadas e separadas de todos significativos. O comparatista como comparatista neste sentido restrito podia estudar apenas fontes e influências, causas e efeitos, e estava mesmo impedido de investigar uma única obra de arte na sua totalidade, uma vez que nenhuma obra pode ser reduzida inteiramente a influências estrangeiras ou considerada como ponto de irradiação de influência somente para países estrangeiros. (p. 245)
Essa reflexão tão substancial parece que ainda não se resolveu e, é de se admirar, portanto, que vinte anos depois Silviano Santiago retome as críticas de Wellek, numa clara demonstração que nem tudo havia mudado, pelo menos no Brasil:

É preciso de uma vez por todas declarar a falência de um método que se enraizou profundamente no sistema universitário: as pesquisas que conduzem ao estudo das fontes ou das influências. (SANTIAGO: 1978, p. 19)

Extrapolando os estreitos limites do estudo das fontes e influências, a Literatura Comparada rompe fronteiras geográficas, estéticas e ideológicas; cria novas possibilidades de análise do texto literário. A comparatismo abre uma perspectiva para um entendimento da obra a partir do seu confronto, quando vários pontos, antes relegados a segundo plano, chegam à superfície, em função de uma nova leitura histórica que nos é proporcionada.  E, nesse aspecto, buscamos apoio em Borges que, em seu Pierre Menard, autor do Quixote, nos aponta e nos esclarece diversos aspectos referentes à Literatura Comparada.

            O interesse de Pierre Menard pelo xadrez (revelado em estudos que constam na listagem de suas obras encontradas em seu arquivo particular) nos alerta para esse caráter comparatista do personagem borgeano: no xadrez é comum estudar e repetir “entradas/aberturas” e/ou “jogadas” que se tornaram célebres entre os enxadristas. Talvez Menard não seja enxadrista, mas conhece profundamente o jogo, já que discorre sobre a possibilidade de eliminação de uma das peças do jogo e é também autor de “uma tradução com prólogo e notas” de um livro sobre xadrez. (BORGES: s/d, p. 491) Essas “aberturas” e/ou “jogadas” não são repetidas mecanicamente, mas dentro da realidade do jogo, que tem suas particularidades, pois cada jogo é único apesar de semelhanças que eventualmente possam acontecer.

            Menard executa a “abertura de Cervantes” e re(escreve) o seu “próprio” Quixote três séculos mais tarde que, através dos capítulos “encontrados”, lhe permite (e a nós, também) uma análise que interfere no significado do Quixote original, da mesma maneira que o original interfere na leitura do Quixote menardiano. Passado e presente estabelecem uma nova relação de influência mútua: da mesma maneira que o passado constrói um futuro (para nós, o presente, pois estamos em 1934), o presente nos permite uma nova leitura do passado alterando-o, pois que confere a ele uma nova dinâmica, já que é analisado sob uma nova óptica.

            “A verdade histórica, para ele [Menard], não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu” (BORGES: s/d, p. 496). A Literatura Comparada, assim como Pierre Menard, estabelece um diálogo entre passado e presente e, ao estabelecê-lo, permite desvendar o passado e o “reconstrói” (CARVALHAL: 2007, p.67) sob outra e nova ocular, trazendo à tona temas que em sua época estavam subjacentes e não poderiam ser percebidos senão com a distância crítica que o tempo possibilita, pois adquirimos um conhecimento histórico que o próprio autor da obra em questão talvez não conhecesse pois não lhe fora ainda revelado.

            A relação tempo/espaço na Literatura Comparada atinge outra dimensão, e nos revela o que ainda não havia sido revelado, em uma e outra obra em estado de comparação; uma e outra obra que a partir dessa leitura criarão condições para o florescer de obra-síntese; uma e outra obra que já não serão as mesmas, pois mistérios foram revelados pelo confronto; uma e outra obra que terão seus percursos alterados pelo simples fato de se encontrarem e se traduzirem mutuamente; uma e outra obra em caminhos que se cruzam e se completam e se transformam e se oferecem a novos caminhos a se cruzarem...



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALLEGRO, Alzira L. V. Das relações entre literatura comparada e tradução literária: algumas considerações. www.unibero.edu.br. s/d

BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor de Quixote. In: Obras completas, volume 1: 1923-1949. [Rio de Janeiro]: Globo, s/d, xerografado.

CARVALHAL, Tânia Franco (org.). Literatura comparada no mundo: questões e métodos. Porto Alegre: L&PM, 1997.

________. Literatura comparada. 4ª ed.; 6ª imp. Revista e ampliada. São Paulo: Ática, 2007.

CROCE, Benedetto. A “Literatura Comparada”. In: COUTINHO, Eduardo F. e CARVALHAL, Tânia Franco (orgs.) Literatura comparada – textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu. In: Teatro completo 6. Trad. Roberto Schwarz. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos – ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978.

WELLEK, René. Conceitos de crítica. São Paulo: Cultrix, s/d.






QUEM CONTA UM CONTO...
... nem sempre escreve um conto!

Ao longo dos anos o gênero conto vem sofrendo transformações estruturais significativas. Não se pode ingenuamente acreditar que um conto de Edgard Allan Poe, perpassado de tensão e mistério possua as mesmas características de um Tchekov, que trabalha a monotonia e quase a inutilidade da burguesia russa da virada do século XIX para o XX, ou ainda de um Dalton Trevisan, que trabalha as misérias humanas constituídas por uma condição social determinada e, em seu último livro, Desgracidas, condensa uma história em pouquíssimas linhas que, às vezes, não passam de quatro ou cinco. Por outro lado, ainda que passível dessas transformações profundas, o conto mantém algumas premissas estruturais que sobrevivem desde que Poe publicou A Filosofia da composição, em abril de 1846, considerado o primeiro ensaio crítico sobre o conto e suas estruturas e formas.
 O conto é um dos gêneros mais instigantes da literatura, pois consegue reunir a narrativa da prosa, herdada do romance, e a precisão lexical e sígnica da poesia, onde a palavra detém um poder maior do que no romance. Percebe-se também que gravitam em torno do conto aqueles que o odeiam e os que o amam, ainda que seja um amor incondicional. É difícil ser indiferente ao gênero. Muitos se arriscam nessa aventura que é escrever contos. A tendência, em grande parte das vezes, é o fiasco, pois para escrever um conto é preciso mais que boa vontade e capacidade de manipular as palavras; escrever um conto exige do autor um conhecimento profundo de técnicas que lhes são próprias, para que dali surja uma história capaz de nos prender por alguns instantes, como queria Poe: “Se uma obra é muito extensa para ser lida de uma só sentada, devemos resignar-nos a eliminar o efeito, soberanamente decisivo, da unidade de impressão; porque quando são necessárias duas assentadas, interpõem-se entre elas os assuntos do mundo, e o que chamamos de conjunto ou totalidade cai por terra”.
Entendendo que o conto, independente de sua filiação estética, carrega em sua estrutura elementos que lhes são comuns, Cortázar nos apresenta a eles de maneira lúcida e consistente, no artigo a que chamou de Alguns aspectos do conto, fruto de uma palestra proferida em Cuba. A bem da verdade, são muito mais que alguns aspectos, pois nos revela partes importantes e significativas dos mistérios mais subterrâneos da confecção de um gênero literário que, em sua aparente facilidade de composição é, na verdade, de uma extraordinária dificuldade composicional. Revela os meandros sem, contudo, impor uma camisa-de-força que impeça a livre manifestação ou fluidez do gênero.
O conto exige, além da capacidade de síntese, tensão e surpresa, habilidade para revelar o comportamento humano em tão pouco espaço. Cortázar se refere a ele como “esse gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário”. E não superlativa as dificuldades a serem defrontadas nessa batalha para desvendar seus segredos; da mesma maneira que não cria ilusões em permitir que se acredite ser um gênero de fácil acesso: sua estrada é sinuosa e esburacada, sempre pronta a nos desviar do caminho, pois não permite sinalizações que nos orientem.
Quando o compara à poesia sugere exatamente uma redefinição do conto enquanto luta travada com a palavra e sua formalização numa lógica contrária à lógica cotidiana, ou seja, a palavra no conto aproxima-se em valor à palavra na poesia, se afastando da realidade, ao mesmo tempo em que se afasta dialeticamente do romance. Conto não é um romance pequeno. Conto possui um valor estético diferenciado daquele romanesco. O conto redimensiona a realidade no momento em que a “reflete e refrata”[1],  de maneira bastante singular, pois a condensa e lhe confere uma totalidade única (única no sentido de particular, não de una).
Ao se auto-intitular contista vinculado à estética do “fantástico”, estética que se opõe “a esse falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo filosófico e cientifico do século XVIII”, reclamando inclusive uma forte influência de Jarry, Cortázar deixa claro que os pressupostos para se compor um conto são os mesmos para o realismo ou qualquer outra vertente estética: “tenho a certeza de que existem certas constantes, certos valores que se aplicam a todos os contos, fantásticos ou realistas, dramáticos ou humorísticos”. Ao falar de “constantes”, o autor se recusa a uma visão simplista e redutora da noção de leis que regem o conto, pois essas seriam engessadoras de qualquer liberdade estética a que o contista se propusesse. Em arte não existem verdades absolutas; no entanto, para se considerar suas componentes fundamentais, é preciso compreender que essas componentes se organizam internamente e a esses meios de organização é que se chama de “constantes”, já que fazem parte de uma estrutura que tenta resistir a determinadas violações, sob o risco de se fazer uma obra de qualidade no mínimo duvidosa. Autores como Quiroga ou Piglia confirmam, sob outras denominações, a existência dessas “constantes” como exigências para a confecção de um bom conto, que nos acompanha desde Allan Poe com sua A filosofia da composição.
Ao estabelecer uma comparação do conto com a fotografia, Cortázar acentua o limite imposto ao gênero, que tem por tradição a característica de ser breve e conciso, fixando em suas margens um “fragmento da realidade”, um instante preciso em que sua história é revelada e suas conseqüências conhecidas através do desvelamento da ou das personagens: “o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito alem do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto”.
No conto não se pode perder tempo: não há espaço para grandes descrições ou análises de caráter que signifiquem longas narrativas; o perfil psicológico do personagem deve conter o máximo de profundidade com o mínimo de palavras. Situar os conflitos e contradições dos personagens de tal maneira que permita ao leitor completar o seu perfil com o que lhe é sugerido pelas próprias ações, onde o leitor tenha uma relação ativa com a leitura: a partir das informações que recebe seja capaz trazer à tona o que não foi explicitado, mas está no nível imediatamente abaixo da superfície[2]. Ao contrário do romance que descreve todas as nuances comportamentais e sentimentos do personagem, onde apenas um olhar pode ocupar uma página ou mais no seu detalhamento, no conto, muitas vezes, uma página é todo o espaço disponível para se contar toda a história do personagem, já que “o tempo e o espaço (...) têm de estar como que condensados, submetidos a uma alta pressão espiritual e formal”.
A significação no conto é quase monolítica, conseguida num fôlego só, num único respirar. Sendo sua ação única – não obrigatoriamente, mas, acredito, aconselhável[3] – a tensão precisa ser lançada na primeira linha e se manter unitária até seu final, quando finalmente respiramos aliviados. O cuidado com o encadeamento preciso de ideias e palavras determina o aproveitamento e aprofundamento do tema. “O contista sabe que não pode proceder acumulativamente, que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade, verticalmente, seja para cima ou para baixo do espaço literário”. A verticalização impõe uma apuradíssima técnica que permite depuração de tudo que não seja conto naquela obra que se constrói. Esse impulso único, a que Cortázar chama de intensidade, “consiste na eliminação de todas as ideias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige”, e acrescenta que a “intensidade que se exerce na maneira pela qual o autor nos vai aproximando lentamente do que conta. Ainda estamos muito longe de saber o que vai ocorrer no conto, e, entretanto, não nos podemos subtrair à sua atmosfera”.
O trato com o tema, “temas significativos”, deve merecer atenção especial, pois “um mesmo tema pode ser profundamente significativo para um escritor, e anódino para outro (...) pode-se dizer que não há temas absolutamente significativos ou absolutamente insignificantes”. Percebe-se que para Cortazar um tema somente atingirá o seu efeito junto ao leitor se for trabalhado com a devida intensidade e tensão, e essa tensão vai depender de como o escritor aborda e desenvolve o tema determinado anteriormente. O antes e o depois do tema é um processo estabelecido através de um jogo que o escritor tem que superar: “o que está antes é o escritor, com a sua carga de valores humanos e literários, com a sua vontade de fazer uma obra que tenha um sentido; o que está depois é o tratamento literário do tema, a forma pela qual o contista, em face do tema, o ataca e situa verbal e estilisticamente, estrutura-o em forma de conto, projetando em último termo em direção a algo que excede o próprio conto”.
Uma pergunta salta: o que distingue, então, um bom conto de um mau conto, já que os temas estão todos aí e os escritores prontos a lhes dar forma? – “Um conto é ruim quando é escrito sem essa tensão que se deve manifestar desde as primeiras palavras ou desde as primeiras cenas”. Por tensão podemos entender segurar o leitor, e para segurar o leitor, além de uma boa história, é preciso alguma coisa a mais. Nesse sentido, repito com Quiroga: “num conto bem feito, as três primeiras linhas tem quase a mesma importância das três últimas”. Mas o problema não é só as três primeiras e as três últimas, entre elas é que se esconde o segredo... pois quem conta um conto, nem sempre escreve um conto!...

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem – problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 3ª ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974.
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: O laboratório do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.
POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. Cópia xerografada sem referências.
QUIROGA, Horácio. Decálogo do perfeito contista. Org. Sérgio Faraco. São Leopoldo (RS): Unisinos, 1999.
TCHEKHOV, Anton. As três irmãs / contos. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Abril Cultural, 1979.


[1] Aqui, utilizo os termos no sentido que lhes deu Bakhtin.
[2] Não trato aqui das teses defendidas por Piglia das duas historias (ou níveis) simultâneos; o que pretendo demonstrar é que o contista ao narrar o personagem não o faz completamente, cabendo ao leitor, a partir dos limites impostos pelo autor, completar o seu perfil psicológico, num exercício de imaginação ativa.
[3] O que não cria uma contradição com o que foi dito acima. Cf. nota 2.