sexta-feira, 1 de julho de 2011

A CRUELDADE DO VIVER


Depoimento ao PROGRAMA AGENDA, da Rede Minas


No dia 4 de março, de 1948, Artaud foi encontrado morto, caído ao pé da cama, abraçado a um sapato, no hospício de Ivry. Era o fim de um dos mais inquietos e instigantes nomes do teatro do século vinte. Morria, ali, o criador do TEATRO DA CRUELDADE. Morria, ali, o homem que determinou que era preciso ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS, e cumpriu sua promessa. Morria, ali, o gênio visionário, que deixou sua marca indelével no teatro contemporâneo. Aquele que afirmou, e também cumpriu: “Ali onde outros propõem obras, não pretendo nada além de mostrar meu espírito”. Aquele que, até na hora da morte, deixou interrogações para os que ficaram e para os que viriam: qual o significado daquele sapato abraçado ao peito no seu último instante?

Irascível! Iracundo! Apaixonado! Sofredor de todas as dores do mundo, Artaud levou para o teatro a sua vida, o seu grito inumano de desespero e, para sua vida, o teatro: “A tragédia no palco não me basta mais, vou transportá-la para minha vida”. E assim o fez, num vislumbre que só os gênios e os loucos conseguem. E ele era gênio... e era louco! E fez do teatro a ponte que unia seus extremos. E dessa união rompeu com tudo que era velho, arcaico e conservador. Desprezou as regras! Rasgou todas as cartilhas! Teatro e vida se misturaram e se completaram e o resultado disso é um jorro quase irracional de uma maneira absolutamente nova e revolucionária de pensar o teatro. O visionário tornou-se profeta!

“Perdeu-se uma idéia do teatro”, escreveu Antonin Artaud (1896 – 1948), em maio de 1933. Mas qual “idéia” deveria ocupar o lugar dessa que se perdeu? Que teatro era esse que deveria como a peste, varrer tudo, para novamente recomeçar, e recomeçar pisando os escombros deixados por aquele teatro morto, que há muito já definhava e nem tinha se apercebido. Para Artaud, “o jogo teatral é um delírio e, uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido”.

Quando publica O TEATRO E SEU DUPLO, propõe um confronto radical com tudo que estava sendo feito na Europa, a começar pelo rompimento com as obras clássicas: “as obras primas do passado são boas para o passado; não servem para nós”, além da total “rejeição do teatro como divertimento”. Seu teatro seria construído por imagens, sons e gritos, onomatopéias, jogos de linguagem a partir da sua própria desarticulação, além de um sistema de códigos corporais e gestuais, “constituindo com as personagens e os objetos verdadeiros hieróglifos”, organizado para que o espetáculo lembrasse as “imagens do sonho no cérebro”.

 Artaud não foi um teórico do teatro, ele teve “visões”. E essas “visões” não tiveram a aplicação necessária para serem aprofundadas e se tornarem uma metodologia, um conjunto de técnicas e proposições que pudessem servir de guia para o exercício prático cênico, tanto para o ator quanto para o encenador. São lampejos que estimulam a criatividade, que provocam o desejo de experimentar o que seja Artaud. Nada mais que isso. Mas isso não diminui o valor dos seus escritos e do seu pensamento sobre o fazer teatral. No Primeiro Manifesto do Teatro da Crueldade, como de resto em todos os seus textos, ele não nos deixa uma formulação, mas apontamentos sobre a utilização dos diversos mecanismos cênicos.

Artaud pensa o teatro voltado à sua essência ritual. Uma experiência única e transformadora. Rompendo com o realismo/naturalismo, traz para a cena imagens e impressões que devem provocar novas sensações na platéia e, com isso, estimular transformações e tomadas de posições, tirando o espectador da inércia contemplativa em que estava atolado.

Dentre as várias propostas para atingir esse objetivo, trata da relação palco/platéia, ponto fundamental em seu pensamento. Propõe a utilização de um novo conceito de espaço cênico, até então nunca utilizado, onde atores e público não estejam mais separados por “dois mundos fechados, sem comunicação possível” e, para que isso se efetivasse na prática, seriam suprimidas “a cena e a sala, substituídas por uma espécie de lugar cênico, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo e que se [tornariam] o próprio teatro da ação”. Público e atores vivenciariam uma experiência diferenciada e quase única para os dois e, dessa nova relação, em que se rompia a estratificação arquitetônica do chamado “palco à italiana”, o mais usado ainda hoje em todo o mundo, deveria ser “restabelecida uma comunicação direta entre espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e atravessado pela ação”.

Hoje sabemos que Artaud, em sua intuição, estava certo, mas ele não teve tempo nem condições para aplicar seus pensamentos sobre o teatro. Essa proposta absolutamente inovadora e revolucionária só voltaria a ser considerada e colocada em prática a partir dos anos sessenta, por nomes como Grotowski, Peter Brook, Julian Back e Judith Malina, dentre tantos outros que herdaram Artaud, embora alguns, como é o caso de Grotowski ou mesmo Peter Brook, só entrarem em contato com o pensamento artaudiano depois de trabalhos já realizados. Mas Artaud já estava presente em suas obras e tinha se antecipado, como se antecipou em quase tudo que propôs, seja na relação direta com o texto dramático e sua abordagem, seja, por exemplo, na utilização de “manequins, máscaras enormes, objetos de proporções singulares [que] estarão em cena na mesma condição das imagens verbais”, vemos claramente nisso os bonecos gigantescos do grupo Bread and Puppet.

Artaud não se permite conceber “uma obra como separada da vida”, mas ao mesmo tempo não admitia o teatro onde o que estava em cena era apenas um reflexo, ou uma cópia quase que fiel da realidade cotidiana, o que acaba se esgotando em si mesmo. O teatro não como diversão, mas “no qual imagens físicas violentas trituram e hipnotizam a sensibilidade do espectador que se vê no teatro como uma presa de um turbilhão de forças superiores”. E, para atingir esse objetivo, cria o conceito de Duplo (ainda que não muito bem definido, pois permite várias leituras diferenciadas!) e estabelece novos parâmetros para o encontro teatro/vida, em que o mágico, o ritualístico, o extraordinário, são determinantes dessa nova relação, “se o teatro é um duplo da vida, a vida é um duplo do verdadeiro teatro”. Para Artaud, o teatro “deve ser considerado como um Duplo não desta realidade cotidiana e direta, da qual ele, aos poucos, se reduziu a ser uma cópia inerte, tão vã quanto adocicada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, na qual os Princípios, tais como os delfins, no instante em que mostram suas cabeças se apressam em retornar à obscuridade das águas”.

Já o conceito de Crueldade foi muitas vezes percebido erroneamente como sangue ou sadismo, mas para Artaud a Crueldade está vinculada com a própria renovação que propunha no que diz respeito ao “rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta”. Artaud pretende uma nova santificação do teatro e uma pureza só encontrada nos rituais, onde a honestidade está acima de meros valores comerciais. Crueldade também quer dizer sofrimento da alma exposta e triturada do ator perante uma platéia que também deve expor e deixar triturar sua própria alma, em retribuição. “O Teatro da Crueldade foi criado para devolver ao teatro a noção de uma vida apaixonada e convulsa; e é nesse sentido de rigor violento, de condensação extrema dos elementos cênicos, que se deve entender a crueldade sobre a qual ele pretende se apoiar”. Mas quando necessário a Crueldade poderá e deverá ser “sangrenta”, “a afirmação de uma terrível e, aliás, inevitável necessidade”, pois o seu teatro é uma resposta dura e implacável a todo sofrimento a que foi acometido, seu teatro transporta para o palco “a miséria do corpo humano”. Artaud se explica: “a guerra que pretendo fazer provém da guerra que fazem a mim”.

A obra de Antonin Artaud, seja no teatro ou na poesia, seja como ator ou encenador, seja mesmo como artista plástico, é uma obra que traz dentro de si a marca do sofrimento. Já em 1915, portanto, aos 19 anos de idade, é acometido por uma crise de depressão e destrói vários de seus textos. Pela primeira vez é internado em um sanatório. Daí até sua morte, são inúmeras curtas internações e diversos tratamentos para desintoxicação. A partir de 1938 permanecerá internado até sua morte. “A crueldade consiste em extirpar pelo sangue e até sangrar a esse deus, o azar bestial da animalidade humana inconsciente, lá onde se encontrar”. Internado em Ivry, Artaud sofria de dores terríveis provocadas, provavelmente, por um câncer no ânus. Para se livrar, fazia uso do láudano e cloral, drogas sintéticas que, inevitavelmente provocariam dependência e, em doses excessivas, provocariam a morte. Artaud sabia disso. Teve a liberação do seu medico para usar a droga livremente. Existem alguns biógrafos que defendem o suicídio, embora nada se possa provar. Talvez overdose acidental.

“Artaud continua ainda incompreendido em seu pensamento e em suas propostas para o teatro. Crueldade, magia, duplo, sangue, esperma, hieróglifos, gritos e gemidos... Parece tudo tão simples! Ele tenta explicar: “O teatro da crueldade não é o símbolo de um vazio ausente, de uma espantosa incapacidade para realizar-se em sua vida de homem. É a afirmação de uma terrível e aliás inelutável necessidade.” Como não compreender seu grito desesperado de dor e agonia? Mas Artaud não era assim tão previsível! Ele mesmo havia declarado que era preciso “romper a linguagem para tocar na vida”. O seu teatro foi uma incansável busca por essa nova linguagem que deveria surgir do seu próprio rompimento. Artaud ficou sozinho. Como companhia apenas seu sapato, seus papéis, canetas e as drogas. É provável que tenha se matado? Talvez. Mas com certeza a morte para ele foi apenas o fim do sofrimento. Um mês antes de morrer, a transmissão radiofônica de seu poema PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS, foi proibida pelo diretor da rádio estatal. Mas cópias clandestinas foram feitas e se pôde ouvir Artaud, gritando, gemendo, grunhindo, cumprindo o que prometera.

POST-SCRIPTUM - Quem sou eu? / De onde venho? / Sou Antonin Artaud / E basta que eu o diga / Como sei dizê-lo / Imediatamente / Vocês verão meu corpo atual / Partir em pedaços / E se recompor / Sob dez mil aspectos notórios / Um corpo novo / Onde vocês não poderão / Nunca mais / Me esquecer.

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