terça-feira, 27 de setembro de 2011

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O TEATRO DOS NOSSOS DIAS (I)


O homem acumula seus conhecimentos e os transforma, criando novos conhecimentos, e os socializa com outros seres humanos. Dessa interação de conhecimentos, outros novos conhecimentos serão adquiridos e o homem avança em seu processo evolutivo. Seus valores culturais são transmitidos de geração para geração, que os desenvolve, aprimorando-os, às vezes; preservando-os como tradições, em outros momentos. A cultura é dinâmica e acompanha a própria dinâmica da existência humana.

                        Neste sentido é que devemos pensar o processo de aquisição da linguagem humana, que surge no próprio desenvolvimento da raça, através do surgimento do FoxP2, resultado de uma mutação genética ocorrida cerca de 180.000 anos atrás, já no domínio do Homo sapiens. Foi essa mutação que proporcionou um aprimoramento da articulação humana, com o desenvolvimento de musculaturas maxilares que permitiram a formação de sons mais elaborados. Outros animais não sofreram esse processo de mutação, nem mesmo os outros primatas que possuem ancestral comum com o homem.

O advento da fala e a consequente conquista da linguagem verbal permitiram ao homem um avanço extraordinário em sua comunicação e relações sociais. A fala se tornou um de seus principais instrumentos de sobrevivência. O aprimoramento da linguagem verbal passa a ser impulsionador das civilizações. No teatro, não foi diferente: arte da palavra falada sobreviveu aos tempos através de suas peças. Não temos registros de como os gregos encenavam suas tragédias ou comédias. É através das obras de Ésquilo, Sófocles, Eurípides ou Aristófanes e Menandro que podemos entender as transformações pelas quais passaram a cena grega. Sabemos de muitas coisas; tudo através das palavras, e apenas palavras. O que a escrita não registrou – e só registrou as falas dos personagens – não sabemos. Podemos apenas imaginar, com os olhos de hoje. E, através dos textos, tentar decodificar elementos cênicos ali descritos.

            O que nos chegou do teatro de Shakespeare? Suas peças. E assim também o foi com Molière e Corneille, Goethe ou Tchekov! A história do teatro em sua quase totalidade se fez exclusivamente pela palavra escrita – a dramaturgia! O surgimento da fotografia já nos permitiu um pouco mais, assim como a película, a fita de vídeo e, hoje, o DVD. Apesar de serem linguagens estéticas bem diferentes, através do registro da imagem podemos saber um pouco mais dos espetáculos; entender os mecanismos criativos do encenador e, não apenas, da obra do dramaturgo. Hoje podemos registrar o teatro em sua quase inteireza. Sendo o teatro uma arte viva, que só se realiza efetivamente na relação ator/público, alguns aspectos, certamente, serão impossíveis de se registrar. Mas já demos um passo bastante significativo.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
            Paradoxalmente, para uma arte feita da palavra, várias foram as experiências para se excluir a palavra da cena. Fora a mímica e a pantomima – espécies que se utilizam apenas do corpo como instrumento de expressão, através do gesto, postura, movimento e máscara facial – o teatro é, essencialmente, uma arte visual e auditiva. A negação da palavra tem sido fruto de diversas pesquisas ao longo dos anos. Um dos pioneiros a querer romper com a “ditadura” da palavra foi o ator e encenador francês Antonin Artaud, que propôs uma desconstrução da palavra e, mesmo, sua destruição, substituindo-a por outros códigos e outras estruturas semióticas.

            Se tomarmos o teatro ao longo de sua existência, desde suas origens na Grécia antiga, verificamos que ele nunca foi cópia fiel da realidade, como pretendem alguns. Teatro não é imitação, é recriação! Foi a partir da segunda metade do século XIX, com o advento do naturalismo, que surgiu o ilusionismo, com a criação da teoria da quarta parede. Mas o naturalismo, ao mesmo tempo em que pregava uma ilusão cênica, trouxe para o palco uma realidade crua que ainda não tinha sido mostrada em sua completude: colocou em cena todos aqueles personagens que sempre estiveram alijados do teatro e buscou uma análise da sociedade, denunciando as pressões que o capitalismo já exercia sobre os homens, transformando-os em objetos produtores de lucro. O expressionismo reagiu esteticamente e aprofundou a crítica social e econômica. Denunciou a transformação do homem em máquina.

            A essência do teatro se resume em confrontar ator e público; o resto é acessório! O fenômeno teatral não se realiza fora dessa condição. Cenário, figurino, iluminação, trilha sonora são absolutamente desnecessários. Tudo pode ser descartado, até mesmo o diretor ou encenador; só não se descarta o ator. Resgatar no teatro a sua essência é permitir a expressão do ator em sua totalidade e teatralidade. E resgatar sua essência é aproximá-lo do ritual, que é onde o teatro surgiu. Das dionisíacas (festas em louvor ao deus grego Dioniso, deus do vinho e da fertilidade), encontro do homem com o deus, a magia da representação divina permite a invenção do teatro. O homem se faz deus e o personifica! Criador e criatura se fundem para mostrar aos seus iguais o grande mistério da existência! No ritual o homem se defronta com seus limites e a superação deles.

            É no ritual que vamos encontrar elementos que, talvez, expliquem um pouco mais os processos humanos e sociais. No ritual não pode haver senão honestidade. A arte só se manifesta em sua plenitude quando a honestidade precede qualquer experimentação estética. Fora disso, nos apropriando de Peter Brook, o que há é o “teatro morto”. Morto porque se vende por qualquer dinheiro; morto porque a vaidade determina os caminhos a percorrer; morto, enfim, porque não se preocupa em trazer para a cena a integridade humana, mas trazer um homem fragmentado, sem desejos ou vontades. Um homem não contraditório que não atua sobre seu próprio destino. Voluntarista, se deixa levar sem agir e sem refletir.

            O que vemos hoje, quando o besteirol domina todos os espaços, é uma negação da arte como agente transformador, seja em sua expressão estética ou nos temas a serem debatidos com o público. O teatro silenciado pelo interesse imediato da bilheteria esgotada. Um teatro que não tem voz, apesar das palavras jorrarem aos borbotões das bocas inábeis que, entre uma piada e outra, deixam escapar um sorriso de deboche contra a própria luta do teatro. A palavra perde sua função e se coloca a serviço do emburrecimento daqueles que procuram a diversão “descompromissada”, sem saber que não existe “descompromisso” no teatro. O besteirol não consegue atingir a profundidade de um pires.

            O teatro não encontra seu caminho porque não permitem que ele surja como resultante de uma experiência coletiva e inquietante. Porque os custos de produção exigem um tempo exíguo para um processo que necessita de amadurecimento, e amadurecimento não se alcança da noite pro dia. Porque a experimentação cedeu lugar para a banalidade das fórmulas prontas. Tudo numa mesma fôrma, que segue uma receita publicada em qualquer pasquim. E assim vamos levando! E assim o teatro vai se afundando cada vez mais num buraco cavado pela sua própria negação enquanto arte compromissada com seu tempo e sua história.

            O imperialismo – último estágio do capitalismo – impõe uma horizontalização de comportamentos. A globalização nivela por baixo. E o teatro hoje, como é praticado, é um mero reflexo desse processo. Ao negar uma análise mais profunda da realidade e do comportamento humano, o besteirol apenas reforça, com sua aparente inutilidade, um projeto político e ideológico que se traduz nas suas entrelinhas. Todo teatro é político, portanto, o besteirol não pode se esconder sob o manto da imparcialidade: ao se calar, está falando muito, basta ter ouvidos atentos para escutar o seu silêncio, que se manifesta no preconceito, na discriminação e racismo. Tudo isso colocado numa aparência de deboche; mas tenhamos bastante claro: apenas aparência.

            O teatro vive talvez seu momento de maior incerteza quanto ao seu futuro: a que nos leva o besteirol, que hoje domina a cena em nossa cidade? O que ficará desse teatro que hoje apenas lota as casas de espetáculo? Será suficiente lotar as casas de espetáculo? Isso se traduz em mais público para o teatro que não é besteirol? Ou somente a ele é destinado esse público que quer apenas rir para fugir um pouco da realidade a que é confrontado? E, ao fugir da realidade não estarão essas pessoas, que formam esse público, num processo dialético, fugindo de si mesmas para serem novamente sufocadas nos confrontos que inevitavelmente lhe estão reservados. A realidade é dinâmica e, como tal, se não estamos preparados para entendê-la, ela há que nos sufocar implacavelmente.

            O teatro não promove a transformação social, mas transforma o homem, que é o agente da transformação social e política. O besteirol a que hoje assistimos, apenas embota a reflexão, que é parte do processo de transformação! Hoje, a palavra no teatro está vazia, pois não contribui para que o homem avance em suas conquista; hoje, a palavra no teatro está negada em sua essência, que é ser o veículo de comunicação e entendimento entre os homens, para que através do diálogo, optem por andar juntos em direção de uma vida melhor. O desserviço do besteirol não tem tamanho e não há como mensurar os prejuízos impostos.

É absolutamente urgente e necessário afirmar a palavra como instrumento de libertação, a serviço de um tempo em que o homem se complete e que, no dizer de Bertolt Brecht “o homem seja amigo do homem”; que o homem caminhe para atingir sua plenitude. É absolutamente urgente e necessário que o teatro e os fazedores de teatro reflitam sobre a função primeira do teatro: revelar os arquétipos para que o homem se encontre e defronte com suas emoções. Voltar com o teatro às suas origens é fazer o teatro encontrar consigo mesmo; é resgatar o fogo e a chama sagrados que insistem, ainda, em arder; é buscar estabelecer novas relações entre palco e platéia; é romper os limites estreitos que a vida impõe; é fincar a certeza da capacidade transformadora do teatro. O homem criou o teatro para sua libertação!


Nenhum comentário: