quarta-feira, 16 de março de 2011

SADE... UM ANIMAL POLÍTICO?



O homem não está dissociado do seu tempo. Sofrendo influências diversas, forja sua própria ideologia e estabelece os argumentos com os quais vai defendê-la. Sua arte é objeto de sua consciência e faz parte desse rol de argumentos: o artista cria a partir da realidade e nela interfere, procurando modificá-la. A realidade determina a obra de arte e nesta sofre uma correção, um redirecionamento. Através de sua obra o artista busca transformar a realidade concreta, superando sua própria obra, tornando-a mais adequada e justa segundo o seu pensamento. Assim como o homem não está dissociado do seu tempo, a obra de arte não existe senão a partir da consciência do seu criador.

Guy Endore afirma que “em nenhum outro país, exceto a França, em nenhuma outra cidade, exceto Paris, em nenhum outro século, exceto o décimo-oitavo, poderia ter surgido um fenômeno tal como o Marquês de Sade”. A França era o reino da corrupção, do deboche e do despotismo. Os abusos não tinham limites, seja entre os aristocratas ou burgueses. O rei comandava essa orgia coletiva. Nem mesmo a Igreja escapa aos vícios. E já que o rei não vai resolver o problema, porque ele próprio está mergulhado na lama, é preciso recorrer à filosofia. O iluminismo aponta para uma postura critica aos desmandos e promove o surgimento de uma nova moral que, segundo Sérgio Paulo Rouanet visa “minar os alicerces políticos do ancien régime”. É o iluminismo que possibilita o nascimento da literatura libertina que, ainda Rouanet, “colabora na divulgação das idéias morais dos filósofos” e, “a moral não se funda na religião, porque não podemos imaginar que esse Ser augusto e infinitamente distante da mediocridade dos homens venha a preocupar-se com os pecadilhos dos insetos que somos”.

E tudo ia bem – um casamento perfeito entre filosofia e literatura –, até que “essa bela harmonia é perturbada por Sade”, que radicaliza a moral libertina e se torna, nas palavras de Endore “o novelista mais brutalmente obsceno do mundo, cujas obras jamais foram ultrapassadas em seu gênero em qualquer tempo ou lugar neste globo.” Sade é uma denúncia escancarada do vício e da corrupção.

E vamos encontrar essas denúncias, na sua forma mais extravagante, em Cento e Vinte Dias de Sodoma sua mais terrível obra – quando expõe representantes da nobreza e da burguesia corruptas cometendo os mais absurdos abusos de poder. Obra de uma magnitude extraordinária, cuja leitura é “uma experiência demoníaca, que desafia qualquer pudor, qualquer preconceito, qualquer sensibilidade” e que, infelizmente, não chegou a ser concluída, é o retrato crítico do “antigo regime”, onde ele coloca em cena um nobre, um magistrado, um financista e um religioso – sustentáculos da sociedade – se deliciando num banquete cropofílico e usando e abusando de seres humanos, como fossem simples objetos de seus prazeres. Para Fernando Peixoto, “uma obra gigante, sem dúvida a mais impressionante de Sade”. Uma feroz denúncia ao sistema como nunca antes se havia imaginado. Nenhum escritor libertino se arriscara de tal maneira. Obra de uma dimensão inigualável! Dificilmente será superada em sua densidade! O próprio Sade nos previne: “e agora, leitor amigo, prepare seu coração e sua mente para a narrativa mais impura já feita desde que nosso mundo começou, livro que não tem paralelo entre os antigos, ou entre os modernos”. E ele estava falando sério...

A crítica de Sade ao antigo regime é, sim, um grito de revolta pessoal mas traz no seu bojo uma atitude política consciente e ideológica. Depois de sofrer implacáveis perseguições, e estar preso no símbolo máximo de repressão aristocrática – a Bastilha –, expõe as mazelas de sua própria classe e os desmandos do rei, sem perder na análise o contexto histórico: “As prolongadas guerras que sobrecarregaram o reinado de Luiz XIV, embora drenando o tesouro do Estado e exaurindo a substância do povo, continham o segredo que conduz à prosperidade um enxame de sanguessugas sempre alertas em relação às calamidades públicas, que em vez de apaziguar, promovem ou inventam, para delas tirarem lucros mais vantajosos”.

São tão flagrantes as críticas de Sade a um sistema corrompido, que quando Pasolini transportou, de maneira brilhante e sem perder absolutamente nada em termos de crítica social, os Cento e Vinte Dias... para o cinema – Saló – ele vai localizar a ação durante o regime fascista da Itália de Mussolini. Sade é implacável contra o despotismo, que ele mesmo afirma odiar. É um aristocrata em luta contra os abusos do poder como fica evidenciado pelo Duque de Blangis, personagem do romance: “nada se interpõe ao meu caminho a não ser a lei, mas desafio a lei, meu ouro e meu prestígio conservam-me bem distante do alcance destes vulgares instrumentos de repressão que só deveriam ser empregados para as pessoas comuns”.

A queda da Bastilha é o marco para o novo tempo. A monarquia caminha para o seu fim. A liberdade para Sade vem junto com a revolução, e a revolução vai fazer brotar em Sade uma “intensa participação intelectual como homem político”. Sua primeira manifestação é um panfleto intitulado Súplica de um Cidadão de Paris ao Rei dos Franceses, onde afirma que a França deve ser governada por um rei, mas que este seja eleito pelo povo. Participa ativamente da construção da República na condição de Presidente da Seção de Piques. Quando se instaura o regime de terror, o Cidadão Sade vai bater de frente com Robespierre, o Incorruptível. Começa a ser acusado de moderação, pois discorda radicalmente da guilhotina e da pena de morte, “a pena de morte me é repulsiva (...) a lei que atenta contra a vida de um homem é impraticável, injusta, inadmissível”. Por essas terríveis ironias que a vida nos prepara, livra da guilhotina os Montreuil (sogro e sogra), que o perseguiram durante toda sua vida. “Podem imaginar que sou muitas coisas, mas de forma alguma um animal de sangue frio”. Está vingado... particularmente da sogra, Madame de Montreuil, que foi sua maior e mais perversa perseguidora.

Mas as coisas não vão muito bem para ele, já não é mais bem visto, consideram-no um homem “muito imoral, muito suspeito e indigno da sociedade”, ele mesmo que afirmava “meu coração é puro e meu sangue, se preciso, está prestes a correr pela felicidade da Republica”, era agora novamente perseguido por suas opiniões políticas. Sade não deixa por menos e fulmina: “Liberdade? Ninguém nunca foi menos livre, dir-se-ia um rio de sonâmbulos. Igualdade? Não há nenhuma igualdade, a não ser a das cabeças decepadas. Fraternidade? A delação nunca foi tão ativa (...) Tudo se organizou no ritual da matança”, e acrescenta com amargura: “jamais se desdenhou tanto do viver”.

Sade, mais uma vez não escapa à prisão, mas escapa por pouco da lâmina fria da guilhotina. Da prisão, em Picpus, deixa registrado: “minha detenção nacional, com a guilhotina debaixo dos meus olhos, fez-me cem vezes mais mal do que teriam feito todas as bastilhas imagináveis”. Sua resposta ao regime do terror é severa: A Filosofia na Alcova, com certeza o mais “filosófico” de seus romances, que traz um panfleto – Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos (ainda hoje se discute se foi inserido no romance a posteriori), onde levanta princípios que devem nortear a república: “Venho vos oferecer grandes idéias; elas serão ouvidas e sobre elas se refletirá. Se todas não agradarem, algumas ao menos ficarão; terei de algum modo contribuído para o progresso das luzes e ficarei contente”. Uma nova edição, revisada e ampliada de Justine (A Nova Justine), seguido de Juliette, cai como um petardo no colo dos moralistas de plantão e pretende, segundo Fernando Peixoto “unificar as idéias mais imorais e mais ímpias, a pintar o crime com corajosa audácia, mostrando-o como realmente é, ou seja, segundo ele, sempre triunfante e sublime, feliz e afortunado, ao contrario da virtude, sempre cansativa e triste, pedante e infeliz”. Em Juliette, Sade funda a Sociedade dos Amigos do Crime, uma alfinetada bastante aguda à jacobina Sociedade dos Amigos da Constituição.

Napoleão toma o poder e Sade é encerrado definitivamente no Hospício de Charenton. Mas aí também não se cala. Organiza, enquanto lhe permitido, os pacientes e realiza espetáculos teatrais. Continua escrevendo com a mesma gana de sempre, apesar da idade, de estar praticamente cego e reclamando de dores terríveis no estômago e na cabeça, além de tosses e reumatismos.

Ao contrario do dramaturgo alemão Bertolt Brecht que “traiu” sua classe – a burguesia – em favor da classe operaria, Sade não foi propriamente um “traidor” da aristocracia em favor da democracia republicana instaurada pela revolução francesa. Apesar de trabalhar arduamente pela república, não conseguia se definir claramente, como demonstra uma carta escrita ao seu advogado, em 1791, quando diz da sua maneira de pensar: “Ela não está em nenhum dos partidos, é antes um composto de todos. Sou anti-jacobino, odeio-os até a morte; adoro o rei, mas detesto antigos abusos (...) O que sou eu, agora? Aristocrata ou democrata. Queira dizer-me, advogado, por favor, pois quanto a mim não sei nada”. Para George Bataille, o Divino Marques, Donatien Alphonse François de Sade foi “um dos homens mais rebeldes e mais raivosos que alguma vez falaram de rebelião e de raiva; um homem monstruoso numa palavra, que era possuído pela paixão duma liberdade impossível”. Ninguém conseguiu calar Sade.

Um comentário:

Cristine Lima disse...

Olá, gostei muito deste seu post.
Gostaria de convidá-lo para uma visita ao meu blog. Comentários são muito bem vindos.