sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

ARENA DE BRASILIDADE


Depoimento ao PROGRAMA AGENDA, da Rede Minas

A segunda metade da década de 1950 foi extremamente produtiva para a arte e a cultura brasileiras. A euforia “juscelinista” contagiou a todos. O “desenvolvimentismo” não prevaleceu apenas na indústria e setores da economia formal. As liberdades democráticas formaram um solo fértil para uma diferenciada manifestação do saber e do fazer. Na música, a Bossa Nova embalou a jovens e maduros com um novo ritmo e uma nova concepção poética: falar de amor, sim; mas de outra maneira, foi o que nos ensinou Vinicius de Moraes, quando rimou amor com dor sem o pieguismo tão tradicional em nosso cancioneiro. No cinema, destacam-se, entre outros, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade, que vão determinar os rumos do Cinema Novo. RIO 40 GRAUS, de Nelson Pereira dos Santos, de 1955, é um marco no cinema sócio-político brasileiro.

O teatro brasileiro, capitaneado pelo TBC – Teatro Brasileiro de Comédia, estava marcado por profundas influências européias, estava preso a um modelo que em nada refletia nossa realidade e suas contradições. O TBC contribui sensivelmente para a ampliação da qualidade do nosso teatro; estabelece uma relação profissional com todos os artistas; contrata encenadores europeus (particularmente, italianos) que trouxeram técnicas e conhecimentos e, inegavelmente, impuseram um diferencial ao nosso ator. O TBC deixa sua marca na história, mas comete um pecado muito grande: não tem uma política de valorização e mesmo estímulo à formação do autor brasileiro. Obviamente, a ausência do autor nacional no palco impede que os problemas da nossa gente sejam discutidos.

Em 1958 a história mudou! O teatro não seria mais o mesmo! O Grupo Arena de São Paulo, que vinha atuante desde 1953, atravessa uma crise financeira sem precedentes e, para encerrar suas atividades em grande estilo, resolve encenar um peça de autor brasileiro. Escolhe Gianfrancesco Guarnieri, membro atuante do grupo. A peça, ELES NÃO USAM BLACK-TIE. Guarnieri, militante do Partido Comunista Brasileiro, aplica sua prática política e seu conhecimento teórico para elaborar um texto complexo e dinâmico. Traz para o palco os conflitos, os anseios, as necessidades, as possibilidades e as lutas do homem do povo e, junto com ele, sua prosódia, seu modo de viver, suas ambições e suas fraquezas. Através de um microcosmo familiar, discute a greve, a traição, a firmeza ideológica e as condições a que os operários eram submetidos financeira e economicamente.

 Uma busca exaustiva para encontrar uma linguagem que corresponda às nossas necessidades, aliada ao sucesso de BLACK-TIE, que teve sua estréia em 22 de fevereiro de 58, dão ao Arena um novo fôlego que o permite arriscar-se em vôos mais altos. O mês de abril define, para o teatro, um novo divisor de águas, com a realização do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, em São Paulo. Nascido da experiência vitoriosa de ELES NÃO USAM BLACK-TIE, o Seminário tem como objetivo o desenvolvimento de um teatro comprometido com a realidade sócio-política brasileira.  A busca de uma identidade nacional, que passa necessariamente por uma identidade cultural, inaugura uma dramaturgia voltada para as questões sociais mais prementes. BLACK-TIE, ao trazer para o palco o movimento operário brasileiro, aponta esse caminho e traz mais do que simplesmente um teatro engajado politicamente: mostra que é possível e urgente uma reflexão sobre o homem brasileiro que, até então, esteve quase que completamente alijado do teatro.

O Seminário torna-se espaço democrático de discussões estéticas e políticas, embora muitas vezes marcadas pelo radicalismo. Hegemonizada pelo pensamento de esquerda, (afinal, não só Guarnieri era militante comunista; Vianninha também pertencia aos quadros do PCB, assim com Milton Gonçalves e vários outros), a discussão vai ganhar contornos ideológicos e promover uma reflexão profunda sobre o papel da arte e, particularmente do “teatro como expressão da realidade nacional”, tendo o materialismo como processo de análise dessa realidade. O Seminário se debruça não apenas sobre os aspectos técnicos e estruturais da dramaturgia, mas também e, principalmente, sobre os aspectos sociais e políticos da sociedade brasileira.

O exercício exaustivo de escrever e reescrever suas obras por diversas vezes, a partir das críticas elaboradas no Seminário, levaram os autores a um conhecimento e aprofundamento da consciência sobre a realidade para transportá-la para os palcos. Não se tratava de uma transposição mecânica dos movimentos sociais e personagens caracteristicamente brasileiros, mas de uma análise materialista e dialética, que possibilitasse uma reflexão sobre as contradições do capitalismo e sua conseqüente superação.

Simultaneamente às discussões de dramaturgia, o Arena promove também “laboratórios” de interpretação, baseados no processo de Stanislavski – diretor russo que sistematiza técnicas aplicadas ao trabalho do ator. Nada mais lógico: se se procurava uma dramaturgia que refletisse o brasileiro em sua plenitude, era necessário estabelecer novos parâmetros para a criação de personagem e interpretação dramática. Stanislavski orienta seu trabalho a partir da observação do comportamento humano e sua recriação no palco. O ator tinha, a partir de seus estudos e formulações, ferramentas fundamentais para o seu trabalho criador. Orientado pelo realismo/naturalismo, na perspectiva de se ter a realidade objetiva como referência, Stanislavski cai feito uma luva para o Arena, que vai desenvolver toda sua pesquisa exatamente a partir da análise da realidade brasileira.

Dramaturgia e interpretação caminhando juntas num mesmo rumo, embora que colocadas em um espetáculo que se baliza por duas estéticas contrárias: o realismo do texto e da criação dos personagens e os recursos não realistas exigidos pela encenação num palco não convencional, com o claro rompimento da teoria da quarta parede. Essa contradição, em vez de prejudicar, vem contribuir decisivamente para o desenvolvimento de uma estética própria, que já vinha sendo aplicada desde o surgimento do grupo.

Um ano depois, mais precisamente, em 17 de março de 1959, estréia a primeira peça nascida a partir do Seminário: CHAPETUBA FUTEBOL CLUBE, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, com direção de Augusto Boal. CHAPETUBA traz para o palco o futebol como pano de fundo para se discutir a corrupção. Vianninha, peça fundamental no Arena, era um arguto investigador e um dramaturgo extremamente criativo, além de excelente ator. Sua peça tem uma dimensão humana fantástica. Personagens repletos de contradições. Em nenhum momento permite que o maniqueísmo se sobreponha à análise do comportamento e da própria realidade em que foi baseado.
Gente Como a Gente, de Roberto Freire e A Farsa da Esposa Perfeita, de Edy Lima, ambas em 1959; Fogo Frio, de Benedito Ruy Barbosa, e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, 1960; O Testamento do Cangaceiro, de Francisco de Assis, 1961, são algumas peças, fruto do Seminário, que foram encenadas no espaço de apenas três anos. O Arena marca sua presença definitiva no teatro brasileiro, a partir de suas experiências formais e discussão da realidade. Na verdade, sofre nítidas influências do realismo socialista (embora, alguns de seus integrantes o neguem), e não podia ser de outra forma, já que a transformação da sociedade se daria, incontestavelmente, pela revolução socialista.

Em 64, o Golpe Militar, obriga o Arena se reorientar esteticamente para continuar fiel aos seus princípios políticos e ideológicos. Busca em nossos heróis – Zumbi, Tiradentes – referencia para uma discussão sobre as liberdades democráticas. Novas propostas são incorporadas e resiste até 68, quando o AI-5 recrudesce a repressão política, atingindo todos os artistas brasileiros e, muito particularmente, os artistas de teatro. Daí pra frente, o Arena vai sofrendo os revezes e tentando sempre resistir, sem abrir mão do caráter político-ideológico do seu teatro; em 71, Boal, seu principal líder, tem que deixar o país e, no exílio, aprofunda sua pesquisa de um teatro político – são diversas técnicas que são conhecidas como TEATRO DO OPRIMIDO, que têm no Arena sua origem.

O golpe de 64 representou um corte brusco numa pesquisa extraordinária, que surgira com o Seminário de Dramaturgia. Momento em que a dramaturgia brasileira estava se aprofundando e amadurecendo. Nunca antes se tinha vivenciado um momento tão efervescente. Tínhamos as condições propícias para um grande avanço do fazer teatral. Uma dramaturgia consistente seria substituída por um teatro imediatista, que se utilizou do palco para gritar “Abaixo a Ditadura!”, e assim o fez. E gritou em alto e bom som! E foi importantíssimo! O teatro se transformou numa trincheira de luta, mas perdeu. Poucas obras conseguiram furar o terrível cerco da Censura Federal, e trazer discussões mais profundas sobre a nossa realidade e nosso povo. O Arena nos deixou um legado: a consciência e a possibilidade de um teatro genuinamente brasileiro, que ainda influencia dramaturgos e encenadores preocupados com um teatro comprometido com a análise de nossa sociedade. E isso, nem todos os tacões da ditadura militar conseguiram abafar.

Deixamos a última palavra com Guarnieri, reafirmando sua fundamental importância para com um teatro compromissado com seu tempo e sua história: “O espírito do Arena foi tão importante que moveu para sempre os seus integrantes. Negamos a arte pela arte não a arte com responsabilidade social”.

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