quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

VEREDAS PARA UM TEATRO POLÍTICO


O teatro brasileiro sofre, ainda hoje, um preconceito absurdo em relação ao chamado teatro político que, se não nasceu nos anos de chumbo, impostos pela ditadura militar na madrugada de primeiro de abril de 64, teve aí o seu maior referencial. E esse preconceito é resultado da postura mesma do teatro em relação ao processo político imposto a partir de então. Como resposta e resistência ao golpe, o teatro se armou com todas as suas forças e não se calou diante ameaças constantes, como também não se calaram diversos segmentos da sociedade brasileira, sejam eles artísticos ou não. Mas o teatro, por suas próprias características, foi das artes a mais perseguida. Como bem ressaltou o saudoso Yan Michalski, “Seria exagerado dizer que o teatro foi erigido em inimigo público número um; mas dizer que foi erigido num dos inimigos públicos mais declarados, e, por conseguinte, tratado com sistemática desconfiança, hostilidade, e não raras vezes com brutalidade, é constatar uma verdade histórica inegável”.

Ao longo de todo o período de obscurantismo e perseguições políticas, o teatro procurou formas, as mais diversas, para escapulir das garras do monstro da Censura Federal, e dizer, viva-voz, o que pensava. Sem medo e sem se intimidar um instante sequer, trouxe para a cena discussões profundas e fundamentais, denúncias severas e críticas mordazes ao regime; lançou mão da metáfora e da parábola como seus principais recursos; às vezes, situando a ação dramática em outro tempo e espaço, ou mesmo criando situações absurdas, mostrou os desmandos cometidos pelos generais de plantão. Porém, as perseguições foram terríveis. Prisões! Exílios! Muitos resistiram bravamente; outros, nem tanto. Alguns chegaram mesmo a apoiar o regime.

Nos primeiros meses de 73, Fernando Peixoto, um dos maiores símbolos de resistência e luta do nosso teatro, traça um quadro bastante pessimista e cáustico do momento por que passa a cena brasileira: “o teatro no Brasil, hoje, não está morto por milagre. Todo o processo cultural nacional está interrompido. As perspectivas são difíceis, os horizontes quase fechados. Existe em todo país uma indisfarçável crise de pensamento e ação. Intelectuais e artistas estão paralisados. Atores, encenadores, cenógrafos, dramaturgos, alguns produtores independentes – são todos vítimas queimando numa imensa fogueira. São poucos os que ainda conseguem, mantendo a lucidez e coragem, transmitir sinais de dentro das chamas. Muitos intelectualmente morrem sem consciência. Para outros, a consciência é a causa mortis”.

A luta contra a ditadura militar ganhou contornos irreversíveis com a mobilização das massas trabalhadoras e, mesmo a classe média, que em 64 marchou com a família tendo Deus como o principal guardião da liberdade, percebeu o erro que cometera e engrossa o coro contra os desmandos, e a derrota do regime de força é inevitável. O teatro brasileiro desata o nó da garganta e grita seu grito de liberdade. Uma enxurrada de peças desabafo são montadas, mas sem outro objetivo senão aquele de mostrar para os generais que somos livres, inúmeras obras censuradas são agora levadas à cena, o que possibilita a quem não viveu aquele triste momento um contato com essa dramaturgia e esse teatro que foram tão perseguidos. Foi uma vitória ver as peças de Plínio Marcos ou Vianninha encenadas. O nosso teatro precisava disso para refletir sobre si mesmo e os novos caminhos a seguir, agora, sem a tesoura censura. Porém, logo após este momento, a dramaturgia brasileira cai no marasmo e na perplexidade e não sabe como reagir. Poucos são os momentos vitoriosos de uma dramaturgia vigorosa e responsável e de um teatro que provoque a reflexão. O besteirol acaba se consagrando a grande vedete. E ainda pagamos um preço muito alto para a sua inútil existência.

Junte-se a isto a queda da União Soviética e o movimento mundial contra o comunismo. Neste sentido, falar de teatro político, hoje, quando grassa no mundo um globalizante sentimento anticomunista jamais imaginado, chegando mesmo a suplantar os tempos da guerra fria e do Comitê de Atividades Anti-americanas, é quase um pecado. Como se o teatro não fosse, em sua essência mesma, político. É preciso não confundir as coisas para não banalizar a discussão. Jorge Andrade, sem dúvida, o maior dramaturgo brasileiro, foi taxativo: “o palco não é um palanque”. O palco é, sim, um foro privilegiado para discussões das relações sociais. É no palco que o confronto artista/público se revela de forma inteira e complexa. Arte absolutamente viva que é, o teatro estabelece uma relação diferenciada com o seu público e o nível de discussão atinge proporções que nenhuma outra arte possibilita. É nessa relação que o fenômeno teatral se realiza e se democratiza, criando vínculos com a platéia e ampliando, assim, o grau de consciência e liberdade de cada um.

É preciso, sim, saber distinguir o teatro político do teatro de protesto, que, muitas pessoas, algumas por ignorância, outras por preconceito ou mesmo má-fé, insistem em confundir. Ainda que tenham uma mesma origem, os dois se diferenciam substancialmente em sua proposta estética e imediatismo da discussão proposta. Novamente Fernando Peixoto nos esclarece e aponta as diferenças fundamentais entre um e outro: “o verdadeiro teatro político propõe não apenas um simples ato esquemático de indignação e protesto, mas uma reflexão. Atores e espectadores, palco e platéia, trocam um diálogo que procura ser transformador. O teatro não transforma diretamente a sociedade, mas pode ajudar a transformar os homens, que são os que transformam as relações sociais. (...) O chamado teatro de protesto, geralmente pobre em recursos de produção, válido e extremamente importante, sobretudo em circunstâncias especiais, quando é necessário usar o espetáculo como uma arma específica a favor de uma causa urgente, quase sempre despreza, em instantes onde isso não seria necessário pois a urgência não é premente, a linguagem cênica. Ou a utiliza com estrema pobreza”.

O teatro brasileiro passou por profundas transformações no final dos anos 50 e início dos 60, particularmente com o grupo do Teatro de Arena, quando a procura por uma identidade nacional e cultural orientou sua pesquisa estética com o objetivo de trazer o homem brasileiro para a cena, com todas as suas contradições. O golpe de 64 interrompeu um dos momentos politicamente mais ricos do nosso teatro, que compreendia a manifestação cênica como resultado de uma análise dialética da realidade, para, dando-lhe contornos artísticos interferir na própria realidade e transforma-la, confirmando o que nos aponta Ernst Fischer, quando diz que “a arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser íntegro, total. A arte capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suporta-la como a transforma-la, aumentando-lhe a determinação de torna-la mais humana e mais hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria, é uma realidade social.”

O estado democrático abre uma perspectiva real de aprofundamento nas discussões essenciais da realidade, seja no campo político, seja no campo ideológico. A análise das contradições sociais e políticas pode ser efetuada de maneira clara e objetiva. Essas contradições que, no estado democrático parecem estar superadas, não sofreram transformações ao longo dos anos, particularmente, se nos fixarmos na história recente do nosso país, quando reconquistamos o estado de direito, através da mobilização e da luta contra a ditadura. Essa vitória, que nos permitiu avanços políticos, não proporcionou os mesmos avanços no campo econômico, social ou mesmo ideológico. Pouco ou quase nada modificou nas respostas às necessidades básicas da população, pois o Estado insiste em privilegiar aqueles que se locupletaram dos desmandos e abusos do poder durante os vinte anos de regime militar. A luta, porém, deve continuar, cada vez mais voltada para as conquistas populares.

Rediscutir a nossa história, buscar a compreensão de erros e acertos de determinado momento, traçar um painel, ainda que não definitivo (nem o teatro pode alimentar tal pretensão!) do comportamento e contradições vivenciados naquele determinado período é, para mim, motivo do teatro que sempre fiz, faço e continuarei fazendo. Sustento que o chamado teatro político não perdeu e nem perderá seu espaço, pois as contradições do capitalismo ainda estão por ser superadas: se o socialismo errou não quer dizer que o capitalismo acertou. Debruçar sobre o processo de formação da sociedade brasileira para entende-la e, conseqüentemente, lutar para transforma-la. Bertolt Brecht afirmou com muita segurança: “Nosso teatro precisa estimular a avidez da inteligência e instruir o povo no prazer de mudar a realidade. Nossas platéias precisam não apenas saber que Prometeu foi libertado, mas também precisam familiarizar-se com o prazer de liberta-lo. Nosso público precisa aprender a sentir no teatro toda a satisfação e a alegria experimentadas pelo inventor e pelo descobridor, todo o triunfo vivido pelo libertador.”

Falar em teatro político, hoje, é falar de resgate de nossa identidade nacional e cultural, pois uma não existe sem a outra e, para reafirmar nossa identidade nacional não podemos ignorar o processo histórico, a formação mesma do povo brasileiro, de sua luta, suas conquistas e suas derrotas. A análise dialética da nossa sociedade como ponto de partida fundamental para o seu amplo entendimento. E sem esse entendimento estaremos reféns da nossa própria ignorância. Não estamos soltos no tempo e no espaço, buscamos ser síntese da nossa história, não como herança imutável, mas movimento dinâmico e em constante transformação. Não é possível entender a nós mesmos sem entender a nossa história. A formação da sociedade brasileira, em todos os seus aspectos, precisa ser entendida e discutida hoje, sem o medo da tesoura implacável da censura federal. Neste sentido, arte e realidade se encontram para tentar entender o momento atual. No espetáculo CANUDOS, no qual enceno um dos mais trágicos episódios da história brasileira, busco um entendimento para a complexa discussão em torno da reforma agrária no país. Não se pode hoje falar da luta pela terra sem recorrer à luta da Antônio Conselheiro e a resistência de Canudos, como um dos momentos mais significativos dessa mesma luta; uma experiência ímpar que nos legou um modelo absolutamente revolucionário de organização social. Como bem ressalta Edmundo Moniz, “lutando contra o latifúndio, desafiando a monarquia e a república, derrotando o exército várias vezes, Antônio Conselheiro, à frente dos camponeses insubmissos, tornou-se a figura mais destacada dos que se bateram, entre nós pela revolução agrária”. A ditadura tentou apagar a história de Canudos e esconder a sua vergonhosa campanha e conseqüente derrota militar, mas sempre na época da seca, na vazante do açude de Cocorobó, a segunda Canudos ressurge das águas como que a nos lembrar a luta dos que tombaram e a vergonha dos que usaram do fogo para destruir a Canudos de Antônio Conselheiro.

Falar em teatro político, hoje, é resgatar, sim, a dignidade de nossos heróis esquecidos, aqueles que se alevantaram na luta por uma sociedade mais justa e humana e que, muitos deles, a ditadura tentou apagar de nossa memória, apagando com isso a nossa própria identidade. A cidadania implica no grau de conhecimento do nosso passado. Falar em teatro político, hoje, antes de ser ultrapassado e fora de hora, deveria ser prática constante em cada instante que se discute o fazer teatral, pois se estamos falando de teatro estamos falando de política pois estamos falando do homem inserido em sua própria história.

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