quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

BOAL: TEATRO PARA O OPRIMIDO


 
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 Seria demonstração clara de um tupiniquismo absurdo não figurar Augusto Boal (1931-2009) no panteão dos maiores nomes do teatro mundial, juntamente com Jerzy Grotowski, Bertolt Brecht, Konstantin Stanislavski, Antonin Artaud e Vsévolod Meierhold. É bem possível, até, que alguns que me lêem agora, pensem: “Esse cara ficou completamente maluco! Onde já se viu comparar Boal com esses monstros sagrados?” – Mas Boal não é para ser comparado com ninguém, é para ser colocado em pé de igualdade com todos esses grandes nomes. A sua importância para o teatro mundial se reflete nas centenas de grupos espalhados pela Europa, América Latina e Estados Unidos que desenvolvem um trabalho a partir de suas pesquisas; a sua importância como intelectual e agitador cultural foi reconhecida pela ONU, ao nomeá-lo Embaixador da UNESCO para o Teatro Mundial; sua importância por utilizar o teatro como veículo de libertação dos oprimidos lhe valeu a indicação, entre 197 candidatos, ao Prêmio Nobel da Paz, em 2008.

Nós brasileiros é que não admitimos que um dos nossos seja grande. E não o admitimos, muito provavelmente, por esse sentimento de povo permanentemente colonizado culturalmente e que aceita essa colonização como fato corriqueiro, em primeiro lugar e, em segundo, por não conhecer Boal e o seu pensamento/estética para o teatro constituído, como bem ressalta Fernando Peixoto, de “propostas concretas, fundamentadas numa prática intensa, na procura de um arsenal de técnicas que facilitem a utilização de determinados aspectos da linguagem teatral como arma de liberação a serviço de todos os oprimidos, seja qual for a opressão”.

Boal foi criador de uma concepção inovadora de teatro, onde estabelece novas relações ator/público, rompendo definitivamente a barreira que os separa, tornando o espectador em protagonista da ação dramática. E, ao romper essa barreira, rompe também com a relação de opressão que existe sobre esse mesmo espectador, pois o transforma num agente ativo da ação que se desenvolve, a partir de uma proposta político-poética de libertação. Seja numa atitude consciente, como no caso, por exemplo, do teatro-foro, onde participa opinando ou sugerindo os caminhos que a ação deve seguir, ou mesmo no teatro invisível, onde, provocado por uma intervenção cênica inesperada, da qual ele não sabe tratar-se de teatro, adquire a categoria de sujeito e participa efetivamente da ação dramática, determinando-lhe um novo rumo. A figura do espectador deixa de existir e os papéis se invertem, proporcionando uma profunda discussão e tomada de posição desse “novo” ator a respeito do tema tratado. Antes de usar o teatro como arte, Boal lança mão de suas técnicas para transformá-lo num poderoso veículo de agitação.

Nada, antes de Boal, havia sido experimentado nesse sentido e com tal visão das relações sociais estabelecidas entre opressor/oprimido. No seu teatro não existe o espectador como sempre foi entendido pelo teatro convencional. O encenador alemão Bertolt Brecht, de quem Boal tem uma profunda influência, propôs a transformação do espectador-passivo em espectador-ativo, mas ainda mantendo-o na condição de espectador. Boal vai mais longe do que o mestre e nos esclarece: “para mim, as palavras oprimido e espectador são quase sinônimas. Um diálogo exige pelo menos dois interlocutores (...) Nesse diálogo, a palavra espectador não é obscena: significa um dos momentos necessários ao diálogo. (...) A obscenidade começa quando o diálogo se transforma em monólogo, quando um dos interlocutores se especializa em falar e o outro em ouvir, um se especializa em emitir mensagens e o outro, em recebê-las e em obedecer-lhes – um se transforma em sujeito e o outro em objeto”.

Sua Poética, mais conhecida como Teatro do Oprimido, opera uma análise materialista e dialética da realidade. Assumidamente fundamentada a partir de conceitos marxistas, a Poética do Oprimido prima-se por colocar “o teatro [como] parte da Revolução. Ele não está a serviço [da Revolução], é o seu estudo, a sua análise, é o ensaio geral da Revolução. O Teatro do Oprimido deve terminar sempre na construção de um modelo de ação futura”.

O Teatro do Oprimido, esse conjunto extraordinário de formas variadas de teatro que visa denunciar a opressão e libertar o oprimido, é resultado dessa profunda análise da realidade opressora, própria das sociedades autoritárias, tornando-se um teatro essencialmente político, não sendo, entretanto, como afirma o seu criador, “um teatro de classe (...) [que] tem como temática os problemas de uma classe em sua totalidade (...) A melhor definição para o teatro do oprimido seria a de que se trata do teatro das classes oprimidas e de todos os oprimidos, mesmo no interior dessas classes (...) o patrão oprime o capataz, que oprime o operário, que oprime a esposa, que oprime os filhos... Essa cadeia de opressão deve ser redirigida em sentido contrario: contra o opressor e não a favor de uma nova opressão”. A isso se propõe o seu teatro!

Boal tinha a clara certeza de que “a atividade artística é natural a todos os homens e a todas as mulheres”. Obviamente que sem essa profunda compreensão da capacidade humana, a sua Poética não poderia ser aplicada, pois exige, a priori, a aceitação de que “todos os homens são capazes de fazer tudo aquilo que um homem é capaz de fazer”. Somente a partir daí é que se pode pensar na realização de um teatro em que o não-ator assuma seu novo papel e participe efetivamente de um processo inicialmente reservado aos iniciados. E não importa onde se faça: na rua, nos ônibus, nas estações de metrô, o que importa é que se faça. E se faça sempre, para que os resultados apareçam. A continuidade é fundamental para sua eficácia.

Para Boal, “o Teatro do Oprimido tem dois princípios fundamentais: primeiro – transformação do espectador, ser passivo, recipiente, depositário, em protagonista da ação dramática, sujeito criador, transformador; segundo – não tratar apenas de refletir sobre o passado, mas sim preparar o futuro”, e acrescenta: “basta de um teatro que apenas interprete a realidade: é necessário transformá-la”.



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 O homem não está dissociado do seu tempo. Sofrendo influências diversas, forja sua própria ideologia e estabelece os argumentos com os quais vai defendê-la. Sua arte é objeto de sua consciência e faz parte desse rol de argumentos: o artista cria a partir da realidade e nela interfere, procurando modificá-la. A realidade determina a obra de arte e nesta sofre uma correção, um redirecionamento. Através de sua obra o artista busca transformar a realidade concreta, superando a própria obra, visando tornar a realidade mais adequada e justa segundo o seu pensamento. Assim como o homem não está dissociado do seu tempo, a obra de arte não existe senão a partir da consciência do seu criador.

A trajetória artística de Boal foi marcada pela coerência e pela inquietação: coerência em sua pesquisa do teatro como veículo de transformação e inquietação na permanente investigação de processos de aproximação do teatro com a realidade objetiva. Não uma aproximação por meio da empatia com o herói, mas uma aproximação das relações sociais do homem enfrentando suas necessidades e possibilidades, uma aproximação para compreensão e transformação.

Desde suas primeiras experiências no Arena quando, juntamente com Vianninha, Guarnieri, Chico de Assis e tantos outros importantes nomes que se lançaram naquele momento, revolucionou de forma irreversível o teatro que se fazia no Brasil até então. O pequeno palco do Teatro de Arena, em São Paulo, transformou-se num fórum privilegiado para a manifestação do homem brasileiro e a discussão sobre sua realidade social. Uma nova maneira de fazer teatro, lançando-se mão do realismo dialético de Bertolt Brecht que seria adaptado e transformado, estava sendo inaugurada, um dos momentos mais significativos e profícuos do nosso teatro.

Perseguido pela ditadura, exilou-se e no exílio encontrou espaço e liberdade para desenvolver sua poética, que teve inicio no Brasil. As raízes de sua Poética do Oprimido estão, sim, nos espetáculos e seminários do Teatro de Arena e, particularmente, nos espetáculos históricos ARENA CONTA ZUMBI e ARENA CONTA TIRADENTES, ambos escritos em parceria com Gianfrancesco Guarnieri, quando aprofunda a técnica do sistema coringa (que mereceria um outro artigo para ser debatido).

Boal não foi apenas um encenador inquieto e insatisfeito, foi também o pensador/criador de uma poética que é referência primeira para inúmeros grupos que seguem suas propostas; foi um dramaturgo de primeira-linha nos legando uma obra extraordinária; foi romancista (Jane Spitfire); cronista (Crônicas de Nuestra América); vereador na cidade do Rio de Janeiro; agitador cultural; marxista; e um cara duma vitalidade extraordinária.

Sua morte não deve ser lamentada, deve ser reverenciada; sua lembrança deve ser cultuada como estímulo e referência às novas gerações; sua passagem pelo teatro brasileiro não se encerrou na madrugada do último sábado, pois suas idéias nos acompanharão enquanto existir um oprimido e enquanto existir o teatro para lutar por sua libertação!

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